quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Gim

 

Mauro Pandolfi

                                                           Para Elaine

Final de tarde. Volto da padaria carregado de pães, cuca (uma delícia!) e sonhos (fantásticos, como os nossos sonhos!).  Passo na frente do boteco do Ilgo e quem vejo. Bem largado, sorriso aberto e um copo de gim na mão. Meu amigo Rai Carlos, o vidente cego. Entrei e fui dar um abraço. "Meu querido Mauro num boteco? O mundo tem salvação!", diz ele, gargalhando, levantado da cadeira e dando um beijo no meu rosto. 'Boteco é do passado. Estou voltando da padaria. Mas, já que estou aqui, vou beber contigo. Não gim. Uma cerveja". Espero a provocação: 'cerveja é para os fracos'. Disse e acrescentou: "o gim abre as fronteiras da percepção. Clareia a lucidez e deixa navegar um pouco na loucura. Gim é a bebida dos loucos, dos sonhadores, dos visionários. Bebida santa, mais que o vinho. Os primeiros fabricantes foram monges dominicanos. Saboroso", explica. Dá um gole e completa. "As bagas de zimbro tem o sabor, o aroma, a fortaleza das florestas do hemisfério norte. Eu amo gim! Ei, Alemão traz outro! "
Rai é um homem sereno. Ele beira a felicidade. Encontrei mais risonho do que sempre. "Que felicidade é esta?", indaguei. "Vivo do futuro, em aconselhar as pessoas a tomarem decisões. Explico o que pode vir, acontecer. Sei que alguns me chamam de charlatão, aproveitador, mentiroso. É um dom de Deus. Uso para ajudar as pessoas. Só isto! Sou um detetive da alma, um conhecedor do coração, um sensitivo. A sensibilidade me faz ver. E, para minha surpresa, incomoda demais os duros, os 'retos', os éticos, os doutos", comentou. Eu sei quem você é! disse. E, onde entra esta tua felicidade? perguntei. Virou o copo de gim, respirou fundo e abriu o coração.
"Voltei ao passado. Revi os meus 17 anos. Tempo de uma paixão avassaladora que atravessa a minha vida. Tive vários 'casamentos', eu chamo assim. Afinal, viveu junto, é casamento. Alguns duraram dias. Teve um que durou quatro anos. Mas, a paixão sempre aparecia nos meus sonhos. Bastavam encontrar alguém, me visitava ao dormir. Isto me desequilibrava, angustiava, deprimia. O tempo me ensinou a controlar. E, a vida amorosa foi seguindo feliz, complicada, alegre, triste, como de todos. Nunca tivesse uma paixão, Mauro?", perguntou.
A cerveja desceu bem. Vai bem com sonho, que já estava na mesa, o que gerou uma reclamação do Alemão ('trazer comida de casa, é sacanagem!'). Poxa, tenho até hoje. O Grêmio é a minha grande paixão...Fui cortado por Rai. "Sem bobagem! Grêmio não é paixão. É obsessão. Inexplicável obsessão, vício, doença! Eu falo de alguém, de uma mulher. Teve?", indagou. Várias, disse. Momentâneas, duradouras, de um olhar, de um beijo roubado. Algumas..."Não, Mauro! Isto é desejo, encantamento, tesão. Eu falo daquelas que marcam a alma, a existência, que ardem o coração e povoam, eternamente, a imaginação. Eu tenho uma dessas. E, ela me apareceu outra vez. Há 40 anos que não a via, sentia o seu perfume, escutava os seus passos, a doce voz", contou. Fiquei em silêncio. Pensei na Elaine, no que foi, do que é na minha vida. Do prazer em estar ao seu lado, do amor, admiração e do respeito por ela, e, pela lógica do Rai, da paixão .Fiquei esperando o resto da história. Passou um tempo, um gole de gim e veio.
"Abriu a porta da minha casa. Os passos não eram estranho. O perfume, a alma reconheceu. A mão me cumprimentando lembrou a textura macia da pele que acariciava o meu rosto. A voz embalou a conversa. Gelei, Mauro! O coração disparou e tremi a voz. Era a bela Raquel. Não me reconheceu. Começamos a conversar. Falou do passado, da perda do marido, da solidão, dos filhos, dos netos, da vida, da esperança. Foi uma conversa difícil. Misturei os tempos. Falava e tinha as imagens dela do passado. Duas horas de retorno, de emoção. Ela não me reconheceu. Pagou a consulta e foi embora. Fiquei tonto. Parecia um guri reencontrando a amada. Fiquei sem ação, sem saber o que fazer. Levei um tempo para entender o que passou", revelou. E, em seguida, disse: "Sabe o que sobrou daquela paixão, meu amigo Mauro? Uma foto. Guardo com cuidado. Com saudade, acaricio, passo os dedos, tentando achar algo táctil para ver melhor. Guardo com encanto". E, agora, meu caro. Vai procurá-la? perguntei.
Ele falou: "Ela ligou no dia seguinte. Estava com dúvida. Suspeitou que me conhecia. Riu, chorou, se emocionou. Eu, também.  Contou com detalhes a sua vida. Disse que ficou desesperado quando o pai decidiu ir embora. Não conseguiu me avisar. Ela não sabia onde eu morava. Era eu quem a encontrava. Falou que era apaixonada. Mas, sublimou a paixão. Conheceu  Antônio e construiu um amor. Tão bem construído, que se tornou paixão. Ela inventou uma paixão!" 
Interrompi abruptamente. Paixão não se inventa, Rai!. Ela surge.O amor é inventado, curtido, transformado. Paixão é o encontro da alma com a imaginação. Arrebenta, arrebata, machuca, devora, te torna um homem forte, te completa, é instinto. Amor é outra coisa....
Desta vez, Rai quem interrompe. "Amor e paixão não são tão distintos assim. Há mais cumplicidade do que você pensa. O amor é o afeto dividido, vivido. É o prazer em compartilhar pequenos atos, fatos, o cotidiano. É adorar o jeito de olhar, de como sorri, do jeito que faz o café. É  transformar o dia a dia em uma eterna aventura romântica. Não pede arrebatamento. Requer paciência. Amor é par. Paixão é ímpar. Não há necessidade do outro. Pode ser só imaginária. É intensamente real. Vivida a dois é o encontro de alma com alma. Do que somos, do que imaginamos ser, do que sonhamos. Paixão nunca acaba. Ela marca a vida. O que aconteceu comigo? Despertou? Ou tinha acabado? Nunca pensei em reencontra-la. Nem lembrava, não havia mais nada. Ao vê-la, tudo voltou! A paixão não termina nunca. Ela fica escondida, esperando um descuido da alma, uma fissura no coração. Explode do nada. A paixão é cretina, perversa, mágica, vital. Estou vivo, Mauro! Não vai dar em nada, eu sei!  Porém, me fez reviver algo adormecido, sublimado, distraído. Amor é o vinho. Tem a suavidade, o aroma, é cultivado. O amor é para quem ama a vitória. Paixão é o gim. Intenso, forte, agressivo. É para os fortes. Para quem gosta de emoções. Adoro este sofrimento; Paixão é para quem saboreia as derrotas", filosofa.
Rai me encanta pela habilidade com as palavras. É sábio. Então aproveito delas. Pela tua lógica, o Grêmio não é obsessão, vício e doença. É paixão. Pura paixão! As derrotas, perdemos quase sempre, me deixam mais encantado, fascinado, interessado.Tem jogo do tricolor, estou com o rádio ou a tevê ligada. Sofro. Mas, vivo. O Grêmio me faz viver... Rai corta frase com a gargalhada. 'Ganhaste! Concordo, é paixão! Uma paixão que compartilhamos. Meu querido Mauro, hora de ir embora. Estou feliz por ter falado contigo, contado a história. Vou para casa namorar o telefone, esperar a ligação, ou curtir no meu canto a minha paixão.  Ouvir os meus blues  noite inteira. Até mais. Beijos na família. Até logo, Alemão". Recolhe a bengala e parte sorridente.
Também vou para casa. Caminhando e pensando em Rua Ramalhete do Tavito ."...Muito prazer, vamos dançar. Que eu vou falar no seu ouvido. Coisas que vão fazer você tremer dentro do vestido. Vamos deixar, tudo rodar, e o som dos Beatles na vitrola..."

PS: Aos que passam os olhos, aos que curtem, aos que compartilham, aos que comentam, aos que leem (todos os seis leitores!) um FELIZ NATAL E UM 2016 SUAVE.

Um comentário:

  1. Mauro, meu amigo, com alguns dias de atraso, obrigado pelo belo texto e um 2016 suave para você também!

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