Mauro Pandolfi
Para Elaine
Final
de tarde. Volto da padaria carregado de pães, cuca (uma delícia!) e
sonhos (fantásticos, como os nossos sonhos!). Passo na frente do boteco
do Ilgo e quem vejo. Bem largado, sorriso aberto e um copo de gim na
mão. Meu amigo Rai Carlos, o vidente cego. Entrei e fui dar um abraço.
"Meu querido Mauro num boteco? O mundo tem salvação!", diz ele,
gargalhando, levantado da cadeira e dando um beijo no meu rosto.
'Boteco é do passado. Estou voltando da padaria. Mas,
já que estou aqui, vou beber contigo. Não gim. Uma cerveja". Espero a
provocação: 'cerveja é para os fracos'. Disse e acrescentou: "o
gim abre as fronteiras da percepção. Clareia a lucidez e deixa navegar
um pouco na loucura. Gim é a bebida dos loucos, dos sonhadores, dos
visionários. Bebida santa, mais que o vinho. Os primeiros
fabricantes foram monges dominicanos. Saboroso", explica. Dá um gole e
completa. "As bagas de zimbro tem o sabor, o aroma, a fortaleza das
florestas do hemisfério norte. Eu amo gim! Ei, Alemão traz outro! "
Rai
é um homem sereno. Ele beira a felicidade. Encontrei mais risonho do
que sempre. "Que felicidade é esta?",
indaguei. "Vivo do futuro, em aconselhar as pessoas a tomarem decisões.
Explico o que pode vir, acontecer. Sei que alguns me chamam de
charlatão, aproveitador, mentiroso. É um dom de Deus. Uso para ajudar as
pessoas. Só isto! Sou um detetive da alma, um conhecedor do coração, um
sensitivo. A sensibilidade me faz ver. E, para minha surpresa, incomoda
demais os duros, os 'retos', os éticos, os doutos", comentou. Eu sei quem você é!
disse. E, onde entra esta tua felicidade? perguntei. Virou o copo de
gim, respirou fundo e abriu o coração.
"Voltei
ao passado. Revi os meus 17 anos. Tempo de uma paixão avassaladora
que atravessa a minha vida. Tive vários 'casamentos', eu chamo assim.
Afinal, viveu junto, é casamento. Alguns duraram dias. Teve um que durou
quatro anos. Mas, a paixão sempre aparecia nos meus sonhos. Bastavam
encontrar alguém, me visitava ao dormir. Isto me desequilibrava,
angustiava, deprimia. O tempo me ensinou a controlar. E, a vida
amorosa foi seguindo feliz, complicada, alegre, triste, como de todos.
Nunca tivesse uma paixão, Mauro?", perguntou.
A
cerveja desceu bem. Vai bem com sonho, que já estava na mesa, o que
gerou uma reclamação do Alemão ('trazer comida de casa, é sacanagem!').
Poxa, tenho até hoje. O Grêmio é a minha grande paixão...Fui cortado por
Rai. "Sem bobagem! Grêmio não é paixão. É obsessão. Inexplicável
obsessão, vício, doença! Eu falo de alguém, de uma mulher. Teve?",
indagou. Várias, disse. Momentâneas, duradouras, de um olhar, de um
beijo roubado. Algumas..."Não, Mauro! Isto é desejo, encantamento,
tesão. Eu falo daquelas que marcam a alma, a existência, que ardem o
coração e povoam, eternamente, a imaginação. Eu tenho uma dessas. E, ela
me apareceu outra vez. Há 40 anos que não a via, sentia o seu perfume,
escutava os seus passos, a doce voz", contou. Fiquei em silêncio. Pensei
na Elaine, no que foi, do que é na minha vida. Do prazer em estar ao
seu lado, do amor, admiração e do respeito por ela, e, pela lógica do
Rai, da paixão .Fiquei esperando o resto da história. Passou um tempo,
um gole de gim e veio.
"Abriu
a porta da minha casa. Os passos não eram estranho. O perfume, a alma
reconheceu. A mão me cumprimentando lembrou a textura macia da pele que acariciava o meu rosto. A
voz embalou a conversa. Gelei, Mauro! O coração disparou e tremi a voz.
Era a bela Raquel. Não me reconheceu. Começamos a conversar. Falou do
passado, da perda do marido, da solidão, dos filhos, dos netos, da vida,
da esperança. Foi uma conversa difícil. Misturei os tempos. Falava e
tinha as imagens dela do passado. Duas horas de retorno, de emoção. Ela
não me reconheceu. Pagou a consulta e foi embora. Fiquei tonto. Parecia
um guri reencontrando a amada. Fiquei sem ação, sem saber o que fazer.
Levei um tempo para entender o que passou", revelou. E, em seguida,
disse: "Sabe o que sobrou daquela paixão, meu amigo Mauro? Uma foto.
Guardo com cuidado. Com saudade, acaricio, passo os dedos, tentando
achar algo táctil para ver melhor. Guardo com encanto". E, agora, meu caro. Vai procurá-la? perguntei.
Ele falou: "Ela ligou no dia seguinte.
Estava com dúvida. Suspeitou que me conhecia. Riu, chorou, se emocionou.
Eu, também. Contou com detalhes a sua vida. Disse que ficou
desesperado quando o pai decidiu ir embora. Não conseguiu me avisar. Ela
não sabia onde eu morava. Era eu quem a encontrava. Falou que era
apaixonada. Mas, sublimou a paixão. Conheceu Antônio e construiu um
amor. Tão bem construído, que se tornou paixão. Ela inventou uma
paixão!"
Interrompi
abruptamente. Paixão não se inventa, Rai!. Ela surge.O amor é
inventado, curtido, transformado. Paixão é o encontro da alma com a
imaginação. Arrebenta, arrebata, machuca, devora, te torna um homem
forte, te completa, é instinto. Amor é outra coisa....
Desta
vez, Rai quem interrompe. "Amor e paixão não são tão distintos assim.
Há mais cumplicidade do que você pensa. O amor é o afeto dividido,
vivido. É o prazer em compartilhar pequenos atos, fatos, o cotidiano. É
adorar o jeito de olhar, de como sorri, do jeito que faz o café. É
transformar o dia a dia em uma eterna aventura romântica. Não pede
arrebatamento. Requer paciência. Amor é par. Paixão é ímpar. Não há
necessidade do outro. Pode ser só imaginária. É intensamente real.
Vivida a dois é o encontro de alma com alma. Do que somos, do que
imaginamos ser, do que sonhamos. Paixão nunca acaba. Ela marca a vida. O
que aconteceu comigo? Despertou? Ou tinha acabado? Nunca pensei em
reencontra-la. Nem lembrava, não havia mais nada. Ao vê-la, tudo voltou!
A paixão não termina nunca. Ela fica escondida, esperando um descuido
da alma, uma fissura no coração. Explode do nada. A paixão é cretina,
perversa, mágica, vital. Estou vivo, Mauro! Não vai dar em nada, eu sei!
Porém, me fez reviver algo adormecido, sublimado, distraído. Amor é o
vinho. Tem a suavidade, o aroma, é cultivado. O amor é para quem ama a
vitória. Paixão é o gim. Intenso, forte, agressivo. É para os fortes.
Para quem gosta de emoções. Adoro este sofrimento; Paixão é para quem
saboreia as derrotas", filosofa.
Rai
me encanta pela habilidade com as palavras. É sábio. Então aproveito
delas. Pela tua lógica, o Grêmio não é obsessão, vício e doença. É
paixão. Pura paixão! As derrotas, perdemos quase sempre, me deixam mais
encantado, fascinado, interessado.Tem jogo do tricolor, estou com o
rádio ou a tevê ligada. Sofro. Mas, vivo. O Grêmio me faz viver... Rai
corta frase com a gargalhada. 'Ganhaste! Concordo, é paixão! Uma paixão
que compartilhamos. Meu querido Mauro, hora de ir embora. Estou feliz
por
ter falado contigo, contado a história. Vou para casa namorar o
telefone, esperar a ligação, ou curtir no meu canto a minha paixão.
Ouvir os meus blues noite inteira. Até mais. Beijos na família. Até
logo, Alemão". Recolhe a bengala e parte sorridente.
Também
vou para casa. Caminhando e pensando em Rua Ramalhete do Tavito ."...Muito
prazer, vamos dançar. Que eu vou falar no seu ouvido. Coisas que vão
fazer você tremer dentro do vestido. Vamos deixar, tudo rodar, e o som dos
Beatles na vitrola..."
Mauro, meu amigo, com alguns dias de atraso, obrigado pelo belo texto e um 2016 suave para você também!
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