segunda-feira, 27 de abril de 2020

Memórias...(5)


"No presente, a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa que não nos serve mais".
Entendi Belchior ao assistir uma partida do Internacional de Lages e notei que o primeiro amor é só uma bela lembrança. Mas, ainda guardo na alma o sorriso do menino ao entrar em campo no Vermelhão.


Mauro Pandolfi 

Domingo de melancolia. De saudades do beijo de minha mãe. Do colo gostoso, do riso fácil, das boas histórias. Seguro as lágrimas e viajo nas minhas memórias. Este é um tempo de memórias. Sou um guri, um piá, que dividia o domingo com a família em festa e a festa do futebol. Vermelhão de Copacabana era destino. Lá encontrei o meu primeiro amor, que prometia ser eterno: o Internacional. Bastava atravessar a rua a, chegar no alambrado, se identificar e a aventura começava. Entrar com os jogadores, cumprimentar a torcida, tirar a foto, ficar atrás da trave como gandula. Meu domingo era feliz. Durou pouco tempo, dois anos no máximo. O Inter trocou o rústico Vermelhão pelo moderno Municipal. Ficou longe de casa, continuou perto do coração. O Vermelhão foi sendo abandonado, esquecido, suas arquibancadas de madeiras demolidas com suas histórias de vitórias e derrotas. Virou uma espécie de Coliseu. Os guris, os pias, os garotos, ocuparam o Vermelhão. Jogos que não tinham fim. Só a escuridão terminava uma partida. Jogar lá, no campo de tamanho oficial, com as traves e o que sobrou das redes, a grande arquibancada de concreto sempre lotadas no nosso imaginário era um aviso do futuro que suspirávamos. Parecia um sonho. Foi só um sonho.
O tempo é um engano da vida. O passado nunca passa, o futuro não chega e o presente é este sombrio tempo que vivemos. Uma foto, este texto que republico, foi, de um certa maneiro, encontrar o buraco de minhoca e sobreviver mais um dia.



O primeiro amor

Mauro Pandolfi

Quando menos espero, o passado aparece. Numa história, num encontro com amigo de um outro momento, num filme, numa fotografia. E, foi numa foto que voltei no tempo. Na capa do DC, de quarta-feira, dia 06 de abril, vi um velho ídolo de infância: Anacleto Oliboni, com a antiga camisa do Inter de Lages. Os campeões de 1965 foram homenageados antes da partida, pela Copa do Brasil, contra o Sampaio Corrêa. O resultado não importa, não interessa, é o de menos. O que vale é a festa, o reencontro com a glória, os mitos e a história nunca esquecida. Talvez, que jamais será repetida.
O Inter é como a primeira namorada. Uma camiseta branca, a gola em vê, as mangas em vermelho, o símbolo, sobre o coração, desenhado, era a minha roupa favorita aos seis anos. Calção branco e as meias vermelhas completavam o traje. Roupa de festa aos domingos. Atravessava a rua, rompia os portões e entrava no campo com os jogadores. O desejo que durava uma semana. O futebol, eu descobri assim.
O Vermelhão de Copacabana era o meu Coliseu. Já no abandono, sem a permissão para jogar, gostava de olhar para ele. A grama que se tornou mato. Da tribuna de madeira sobrava apenas os alicerces. No fundo, ainda imponente, a grande arquibancada de concreto. No alto, o placar. Fui em vários jogos, o garoto do placar, como diziam os narradores. As traves resistiam. Pareciam permanecer para que todos lembrassem que lá o futebol era vida. No último dia de Lages, num julho de 75, invadi aquele espaço abandonado, cercado por uma frágil cerca. Olhei as ruínas. Lembrei da inauguração, do dia que entrei com o Olímpico de Blumenau, dos meus gols, do sonho de jogar futebol. Foram poucos minutos. O suficiente para imagem ficar permanente na memória e, por encanto, surgir nos sonhos com a inútil esperança de o tempo voltar.

Anacleto Oliboni é mais que um nome sonoro. É mágico. Um dia me contaram que ele marcou um gol de bicicleta. Perplexo, atônito, surpreso, tentava imaginar o lance. Como era possível? Aí, me explicaram. O gol virou mais mítico. E, Anacleto, mais ídolo. Lá por 73, foi o meu treinador. Ele me chamava de Paladino. Sempre ia treinar de com roupa preta. Paladino era um pistoleiro, um caçador de recompensa de uma série de tv, que vestia-se de preto e era o herói de todos os guris daquele tempo. Outro treinador, foi o mitológico Setembrino. Um zagueiraço, um mestre no desarme e no ensinamento. Zezé e Ricardo fazem parte deste universo. Assim como Dair. Era conhecido como Barata. Para zoar, gritávamos....Barata sem roda! Barata eram os 'charutos', os carros de corrida, ou os velhos calhambeques. O último Inter que acompanhei é pura poesia. Gosto de recitar os nomes, como se declamasse versos. Luís Fernando, João Carlos, Aírton, Mário José e Eduardo; Vitor Hugo, Gaspar e Luís Carlos; Ademir, Parraga e Manequinha. Poxa! O passado não passa, mesmo!
O passado não passa. Porém, o tempo não para. O Inter, do meu tempo de piá, é só uma ilusão. O de hoje, quase nada tem a ver. A cor continua vermelha. O símbolo é outro, mais bonito. O Municipal virou Tio Vida - Tio é uma maneira carinhosa de se referir a pessoas especiais, queridas, amigos. Junto com o 'Tio' vem uma diluição, geralmente, do sobrenome. Ganhou até um mascote, o Leão Baio. Ainda não vi ao vivo um jogo do Inter. Quem sabe, é como o primeiro amor. Aquele que não existe mais. Mas, que basta um olhar, um sorriso, ele desperta forte e encantador. Não tinha terminado. Estava só escondido num canto da alma a espera de um chamado.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Memórias...(4)

 

"Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso (...) ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo"
Entendi a frase de Caio Fernando Abreu ao rever 'Garrincha, a alegria do povo' e notar que o drible, a negaceada, o mesmo bailado de Carlitos, é eterna, imortal, para sempre, pois tudo termina num belo sorriso.

Mauro Pandolfi

Domingo de 2020 travestido de domingo de junho de 1970. Na poesia e na loucura. Na beleza da bola e no desvario do  insano milico expulso por demência berrando pela ditadura. Vi Pelé e sua realeza. O futebol em seu grande momento. No auge da transformação, o teatro de grama e paixão é a grande arte. Quase todos os mitos do futebol estavam presentes na rememoração do extraordinário. Menos, Mané Garrincha. O maior ausente de toda esta reverência da memória. Intrigado com tal ausência, tentando entender o sumiço, já de madrugada, no silêncio da casa, fui ao youtube em busca de Garrincha. Assisti, quase todo, o genial filme "Garrincha, a Alegria do Povo", de Joaquim Pedro de Andrade. E, não consigo entender como os 'intelectuais' do futebol, os modernos e nem tão modernos, ignoram Mané Garrincha na lista dos maiores craques de todos os termpos. Triste. Muito triste. Injusto!
Mané Garrincha foi o mais original, o mais encantador, o mais poético. Não era um driblador solitário. Era um bailarino de danças únicas, que ninguém repete. Um Chaplin, dito assim várias vezes, parecendo Carlitos nas idas e vindas do corpo, das pernas, que iludia todos os Joões que ficavam, feito pedras, no meio do caminho. A vida foi o marcador mais cruel, duro, violento contra o Mané. Ele descobriu que fora do campo, quase nunca, foi Garrincha. Foi, quase sempre, João.
Republico um texto que lembro de Garrincha. Nada biográfico, nada histórico. Quem sabe, poético. Foi um dia de saudades. Saudades do que não vi.

Asas do Desejo

Mauro Pandolfi
 
Acordei cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido, um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava. Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático. Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a minha resposta. Ele riu. Levantou e disse:  'Vem cá que vou explicar a magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O encantamento do jogo".
A chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui, neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo. Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço pequeno, miúdo e cria ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns, retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra no outro". Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva emendou para o gol.
Vou de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos. Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo. Perguntei  o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible, do povo.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Memórias...(3)

 

"A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo".
O meu olhar sobre o futebol tem muito das veias abertas pela lucidez poética de Eduardo Galeano.

Mauro Pandolfi

Na solidão do isolamento, o futebol é a minha fuga para a  liberdade. Viajo pelo passado, pela glória, pela mitologia, pela eternidade. Tento escapar da dita racionalidade, do olhar crítico, do 'rigor histórico', da desconstrução. Viajo na poesia, no encantamento, no reencontro com o menino de Lages que sonhava com com estes heróis, lendas, não uso mito - a palavra está desgastado ao designar um ser deplorável, desprezível, um carniceiro. A Copa de 1970 me traz de volta uma ilusão de vida, de sonho de futuro, que foi apenas um lírico sonho. O futuro foi apenas o possível. Ao sol e à sombra - como me ensinou Eduardo Galeano - que futebol é feito um drible de Garrincha (Cadê Garrincha? O mais fantástico craque esquecido, ignorado, nunca lembrado, virou um Joâo!). Inesquecível! . Ou, quem sabe, uma prosa mais lúdica, como uma jogada de Dirceu Lopes (menos lembrado ainda!) desenhada como uma obra prima, feito de passes, deslocamento, espaço, tempo. Genial! .
Como o tempo é de reprises, republico um texto que brinco com as escalações dos times que rimam feito paixão. Afinal, futebol é um teatro de grama e paixão.


Versos do Futebol

"Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do futebol, o jogo brasileiro é, portanto, um futebol de poesia".
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini considerava o gol uma invenção e o drible uma subversão da prosa do jogo europeu.
Mauro Pandolfi
A definição que mais gosto, e uso, sobre futebol, é 'teatro de grama e paixão'. Ali, no gramado, tudo que envolve o sentimento humano é revelado, mostrado, nada é sonegado. A derrota e a vitória se misturam com a dor e alegria. Os 'nossos monstros secretos' são desnudados aos gritos, desabafos, xingamentos. Mas, também, vejo poesia no futebol. Épicas, líricas, românticas, versos livres, concretos, parnasianos. Não é no jogo, nos lances, nas manifestações. São as escalações das equipes. Parecem poemas sendo declamados quando são anunciadas ou, melhor, repetidas pelos torcedores apaixonados. Alguns dos 'poemas' da bola que me encantam.

Épica.

Nada é igual a esta: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino. Sonora, rítmica, inesquecível. O 'verso' Pelé é mais que perfeito.
Uma outra  'poesia' inesquecível: Valdir Peres; Leandro, Luisinho e Júnior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder. O poema começa torto. Mas, aos poucos revela magia, encantamento, tristeza. Lindo!

Lírica.

Repetia, eufórico, em meus jogos de botão. Leão; Eurico, Luís Pereira, Alfredo e Zeca; Dudu e Ademir; Edu, Leivinha, Cesar e Nei. O verso 'Dudu e Ademir' é um dos mais belos do futebol. Estético, sofisticado, soberano.
Ás vezes, no silêncio da casa, saudoso, repito estes versos: Raul; Leandro, Mozer, Marinho e Júnior: Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico. Fantástico poema que tem 'uma segunda estrofe' mágica, envolvente, musical.
Esta 'poesia' me provocou angústia, derrotas, tristeza. Porém, sempre reverencio os 'versos' magistrais: Manga; Cláudio, Figueroa, Hermínio e Vacaria: Caçapava, Paulo César Carpegiani e Falcão; Valdomiro, Flávio e Lula. Paulo César Carpegiani é um 'poema' completo. Um maestro regendo um coro.

Romântica.

Em dias tristes declamo em alto e bom som esta 'poesia' que me fez superar a 'dor e a tristeza' de uma infância sem vitórias: Corbo; Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Vitor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder. Tão envolvente que uma parte do 'verso' final (André) eternizei em meu filho.
O mais repetido, vivido, vivenciado em minha adolescência. Cansei de declamar a caminho do 'teatro de grama e paixão'. Luís Fernando; João Carlos, Aírton, Mário José e Eduardo; Vitor Hugo, Gaspar e Luís Carlos; Ademir, Parraga e Manequinha. Esta 'poesia' é o melhor retrato da  saudades de Lages.

Concreta.

E, para terminar, a mais vistosa, lúdica, 'poesia concreta' do futebol: Castilho; Píndaro e Pinheiro. Diz tudo. A solidez, a força, a virtude em três palavras.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Memórias...(2)


"Lembrar é fácil para quem tem memória. Esquecer é difícil para quem tem coração".
Entendi a frase de Shskespeare ao rever Brasil e Itália de 1982 e descobri que o coração é mais afetuoso que as memórias guardadas na mente.

Mauro Pandolfi

O tempo sombrio do presente tornou o futuro uma ficção distópica e nos restou o passado para sobreviver, resistir, sorrir. Procuro um velho  jogo de futebol para afastar os pensamentos  a respeito do Jim Jones do planalto central no seu desejo do suicídio coletivo. O facínora não é uma lenda. É o fruto da barbárie que a democracia nos deu de presente. Sem utopia, busquei a esperança de um outro país, de um novo tempo, de um sonho que 'explodiria' nas ruas deste cantão. Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo eram os símbolos da virada, da vitória do talento, da liberdade, contra a mediocridade da ditadura. Revi a derrota contra a Itália.  Não foi doída pelo resultado como pensava que seria.  A dor foi no que nos transformaram. A utopia, o sonho, a esperança sumiram pelas vias da história. Procuro um vestígio, uma pista, uma saída. É um labirinto. No espelho da tevê, na imagem da memória, encontro Paolo Rossi, o mortal matador daqueles dias de 1982. No susto da imagem do telejornal, aparece o vídeo do mortal matador de agora. Paolo Rossi roubou o meu olhar poético da bola.  O messias extermina a vida com o seu poder criminoso. fundamentalista, fascista. O tempo é cruel. O presente acabou, o futuro não virá. Só mes resta o passado...
Há jogos que recuso ver cenas, lances, gols, ele inteiro. Deixo ele intacto na memória, na alma, no coração. Brasil e Italia, de 82, é um destes jogos. Guardo a emoção, o choro, a tristeza, a quase desistência do futebol. Não sei se foi o tédio, ou o cansaço dos filmes e séries, revi o jogo. Foi estranho. Foi frio. Foi distante. A narração era falsa. Os sentimentos também. A dita 'racionalidade' confronta o que sempre guardei do jogo. Menos espetacular do que a lembrança. A Itália melhor do que a vã memória me dizia. Um time soberbo. Organizado, estruturado, planejado nas planilhas de um estrategista, com jogadores fabulosos. Bruno Conti foi determinante. Desconstruiu a frágil marcação brasileira.  O time preciso daquele tempo. Por isto, venceu. A prosa ganhou. O presente sempre vence.
Tempo e espaço controlados. Movimentação lúcida e lúdica, inovações, poesia. O time de Telê não era daquele tempo. Era do futuro, de hoje. Tão fora do tempo que berravam na tevê: bota ponta, Telê? O jeito de jogar é de agora. Troca de passes, de posições, de jogo, de gostar da bola. Um conceito que Guardiola, Klopp utilizam hoje. Todos em todos os lugares, em nenhum lugar pré determinado, ousado, quase um suicídio para um futebol tão pragmático. É uma derrota vitoriosa. Lembram mais de quem perdeu do que quem ganhou. É assim o que se chama futuro. O futuro sempre perde quando é só futuro. Mas, o tempo o torna vencedor. Hungria de 54, Holanda, de 74, Brasil, de 82, os grandes vencedores do futebol. O título é só um consolo para quem não tem nada para deixar. Só a faixa de campeão!
Não perdi o encanto. Ao contrário, aumentou. Rever este passado que prometia um futuro maravilhoso, me fez encontrar cenas que vivi como menino. A poesia do jogo é uma delas. O Boldo não era o Maracanã. Era Sarriá. Lá, o futuro também prometia ser outro. Não foi!  A música Poema, de Cazuza e Frejat, embalou o meu fim de semana. talvez, escutarei toda a quarentena. "Porque o passado me traz uma lembrança. Do tempo que eu era criança. E o medo era motivo de choro. Desculpa pra um abraço ou um consolo". O futebol é o meu abraço e o meu consolo.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Memórias...


"Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos..."
Na quarenta descobri o significado da frase de Caio Fernando Abreu. No 'exílio' entendi que as memórias, as lembranças me mantém vivo, forte, resistente, esperançoso e evita a loucura.

Mauro Pandolfi

Não queria publicar nada neste tempo. A vida é o que importa. Tudo é secundário. Tudo!! Sobreviver é a melhor forma de resistir a este governo (sic) que flerta com o genocídio. Que trata a vida com números. Os mortos podem ser somente estatísticas. No entanto, não fale em estatística com alguém que perdeu quem ama. Isto é tragédia. Para fugir da loucura do pensamento fui mexer nas caixas onde guardo parte de minhas memórias. Descobri um velho texto. Uma coluna, quando substitui JB Telles, publicada no Diário Catarinense lá por 1987.  Aliás, propício a este dia, primeiro de abril. Compartilho com vocês.

Um  Achado!
Estava lá! Perdido entre o Camus e Sartre. Escondido atrás de ingênua restauração. O esparadrapo na lombada impedia a queda de folhas. A capa amarela escondia um desenho de Miró. Uma alegoria sobre a bola. Longos traços, finos traços que se encontram no ar. O livro que define futebol. "A Lenta Morte de uma Arte chamada Futebol", de Dahlor Tadrae, não era uma lenda! Sempre desconfiei que fosse mito. Nas minhas mãos uma edição portuguesa de janeiro de 58. De uma pequena editora chamada 'Greira'. João Saldanha tinha falado num programa de rádio. Armando Nogueira referiu numa crônica. Rui Carlos Ostermann explicou num comentário. procurei em sebos de várias cidades. Encontrei numa bucólica cidade do interior do Rio Grande do Sul. Uma livraria espremida entre um brechó e uma cantina no final da avenida Comandante Kramer, em Erechim. O limite da lenda.
Um inglês perplexo. Um jornalista com espírito de historiador. Um curioso apaixonado pela bola. Tadrae criou uma bela revista de futebol nos anos 50. A 'Daily Sports' revolucionou o olhar sobre a bola. Investigativa e poética. A bola de futebol era uma bola de cristal para Tadrae. Um ilusionista. Crítico mordaz, não gostava de cartolas ("ainda vão matar o futebol, essa gente", disse sobre os dirigentes).O humor era leve. Tinha uma filosofia que está na orelha do livro: "Aconteça o que acontecer é fundamental manter o bom humor". Tadrae achava o futebol a grande arte e o estádio, um imenso palco da vida.
Conta a história do futebol. Temia a morte da arte. Tadrae culpava o capitalismo pelo fim da alegria. "O profissionalismo vai acabar com a brincadeira de todas as crianças, de todos os adultos apaixonados pelo futebol, de todos os artistas, afinal, onde entra o dinheiro tira o prazer, some a alegria e a diversão, sobrevive o lucro e a ganância". Tadrae considerava a camisa de um clube um manto sagrado. "Espero não estar vivo para ver isto, a propaganda roubando o brazão. Será muito triste."
Veio ao Brasil. Conheceu o Maracanã. Ficou empolgado com os craques. "No Brasil, o ótimo jogador é chamado de craque. Não sabia muito bem o que quer dizer esta expressão, mas entendi quando fui ao estádio. O craque é um quase marginal, parece estar em conflito o tempo todo. Tem uma linha de observação e ação completamente diferente dos outros, é outro tempo, é mais espaço num reduzido campo". Deslumbrou-se com Garrincha. "Finalmente descobri um ponteiro-direito melhor do que Stanley Mathews. Um driblador que desconhece marcadores e adversários. Não entendo porque os jornalistas o chamam de individualista, como querem um ponteiro que não drible? O mundo precisa conhecê-lo". O mundo conheceu. Nunca mais esqueceu.
A maior surpresa de Tadrae foi Pelé. "Nunca tinha visto nada igual no futebol, tanto equilíbrio e precisão, quantos olhos ele tem? Neste jogo, ele driblou dois e foi derrubado, o árbitro marcou falta, todos nós vimos ele cair, ou pensamos ter visto, mas Pelé recuperou o equilíbrio, driblou dois e fez o gol. O árbitro pediu desculpas. Não sei o que dizer o que é Pelé! Um Deus, um Rei, um mago, um ser de outro planeta? Acho que ele não existe".
Dahlor Tadrae teve uma morte prosaica. Andava sobre um chafariz. Perdeu o equilíbrio, bateu a cabeça e morreu afogado numa pracinha no interior da Inglaterra em 31 de janeiro de 1960.

Assim como achei o livro, perdi. Talvez, num canto qualquer na casa de minha mãe ou caiu numa destas mudanças de minha vida. O que sobrou do livro foi esta coluna e algumas anotações em uma agenda, que não perdi!