sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O sonho e a batalha

O sonho e a batalha

"Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que, não sei onde, alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi".
Clare é a personagem de 'A mulher do viajante do tempo', de Audrey Niffemegger, que acompanha o marido Henry, que tem um distúrbio genético, que faz seu relógio biológico flutuar entre o futuro e o passado, levando a momentos extraordinários de sua vida. Escrever é pouco isto. Navegar no passado, para inventar o futuro, não devolver o presente  e descobrir que o amor, a paixão, resiste a tudo, principalmente, ao tempo.

Mauro Antônio Pandolfi


'Maurinho, Levanta!' Era a voz de minha mãe. Mas, o que ela está fazendo aqui em casa? Não me avisou que vinha! A Elaine poderia ter me chamado!  Ao sair da cama, vi tudo diferente. O quarto era outro. A casa não era a minha. Não vi a minha cama e nem a Elaine. Percebi uma velha camisa no Grêmio na porta da geladeira, que em outro tempo, servia de armário. Me senti mais leve, mais rápido, mais disposto. Ao chegar no banheiro notei as diferenças. Era cabeludo, a barba não era branca, e no banho, a barriga era quase um tanquinho. Que milagre foi este? 'Mauro, vem!' Agora era voz do pai. Como é bom ouvir a voz firme dele. Certa vez vivi este insight, com uma outra turma, este flerte com o buraco de minhoca,  devaneio ou só um sonho... E, foi ótimo!
'Pronto! Estou aqui! disse para a mãe ao chegar na cozinha. O beijo gostoso tinha sabor de café. O pai estranhou o meu meu abraço forte, amoroso e o beijo ruidoso da careca. 'Saudades de você, véio!' Ele riu, não entendeu nada, ouvi o resmungo dele para a mãe: 'é a ressaca!'. O Márcio, guri e lindo, vestia uma camisa do Grêmio. O Mário, revi ele rapaz e bonito, conversa animadamente com o primo Juca, que abriu um sorriso ao me ver. 'Afinal, vocês vão ganhar alguma coisa?' 'Vamos!" foi o máximo que consegui responder. Tudo era estranho e mágico, ao mesmo tempo.
Olhei as paredes! Entendi o dia: Três de maio de 1981. A casa estava forrada de fotos, de posters, de cartazes, de frases falando do Grêmio Campeão Brasileiro. Gargalhei alto, assustando as gatinhas Vila e a Toga e o meu pai. 'Que foi? Tá louco? O que tu bebeu ontem, Mauro?' É somente alegria em estar com vocês, ver o Grêmio ser campeão brasileiro. Até cantei: 'É a vida, é bonita e é bonita. Viver e não ter a vergonha de ser feliz". 'Que lindo, Maurinho! É um poema teu?', perguntou a mãe. Disse para ela que não. 'No futuro, a senhora vai gostar muito desta música'. Não disse nada, só riu.
O almoço foi estupendo, como eram aqueles almoços. Comida saborosa, histórias deliciosas, risos. A vida é mais do que bela. É iluminada! Logo veio o jogo. Juca saiu antes. Como era um cara especial, o querido Juca! Colorado, não quis acompanhar, secar, estragar a festa dos gremistas. Estávamos tranquilos, calmos, quietos, sentados no mesmo sofá. Afinal, bastava o empate. Tudo mudou quando Paulo Roberto levantou a bola para a área. Renato Sá escorou de cabeça. Baltazar acariciou no peito, enquadrou o corpo, o chute foi mortal. A bola não tinha estufado a rede e os gritos já invadiam a sala. Um misto de 'gol!', 'é campeão!', 'Grêmio!!'. A nossa pequena festa durou até a madrugada. Dormimos poucos. O outro dia era segunda. Trabalho e escola. Felizes, como nunca tínhamos sido antes no futebol!
O relógio despertou. Poucos antes da sete da manhã. Reconheci o som. Era o celular da Elaine. A vida voltou ao normal. 'Que dia é hoje?', perguntei. 'Não lembra mais do 26 de novembro? Achei que era inesquecível? Me enganei?', me provocou. 'Jamais!', respondi. A nossa maior vitória. 'Impossível! O substantivo masculino do imponderável se transmutou em um outro extraordinário: inacreditável!' Foi assim num texto para este Crônicas Por Tubo defini a Batalha dos Aflitos, sábado de 2005. O jogo que nos  tornou 'Imortal' - termo que detesto - e capaz de todas façanhas para servirem de modelo para toda a Terra. 'É hoje o jogo contra o Bahia, não é? Vão repetir a história - aliás, como farsa ou tragédia, como você sempre diz - ou confirmar a queda?'. Fiquei em silêncio. Ela entendeu o meu silêncio. Me deu um beijo, se despediu e foi trabalhar. Não sei o dia de hoje. Apenas, gostei que o buraco de minhoca que abriu foi de um dia feliz. Depois de tanta tristeza, merecia um dia de festa. Tenho dúvida se haverá festa logo mais, em Salvador. Porém, como dizem por aí, enquanto tem bambu, tem flecha! E, como descobri no futebol e na vida, o impossível não existe. 
Dá-lhe Grêmio!!!

Esta crônica é uma singela homenagem a Francisco Dalla Costa. O futebol não teve tempo para se encantar com o talento do Chico, o garoto que virou lenda e brilha no meu campo dos sonhos.

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Solidão, queda, silêncio

 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Um brinde ao tempo

 

"A minha memória move-se em círculos, espirais e saltos de trapezista"
A paixão pelo Grêmio me faz parecido com o pensar de Isabel Allende. Ser gremista me ensinou, de forma saudável, cair, levantar, sonhar, voar, chorar, sentir emoções, entender a vida, saber navegar na transversal do tempo..

Mauro Antônio Pandolfi



Uma postagem no feicebuque propõem uma reflexão sobre a vida. 'Qual o melhor período que você viveu?' era a pergunta inicial. Aos 61 anos, imerso numa espiral, achei que trombaria com os 'fantasmas' bem guardados em 'minhas gavetas', com os sonhos perdidos, os desejos sempre adiados e com o que me dá orgulho e prazer de reviver em lembranças, nas conversas, na saudade. Não fugi de tudo. Reduzi ao Grêmio. Qual o Grêmio me cativou mais, que me encantou, que me fez sofrer e, por incrível, ser mais apaixonado, que deixou os domingos, ou as quartas, mais feliz? Isolado no quarto, escutando Vangelis (a trilha de Blade Runner, para ser mais exato), no escuro, refaço a espiral do meu amor profundo pelas três cores de uma imensa diversidade. Aqui vou eu, Grêmio!!
A primeira imagem que surge é a do Maurinho desviando das pessoas, indo em direção ao alambrado, para ver o treino, para ver Alcindo. Sete anos e uma paixão pelo futebol, pelo Internacional de Lages, o que se tornou um paradoxo, que foi sumindo com o tempo. Ele está agarrado a tela e vê o que vai mudar a sua vida. Os craques do Grêmio treinam passes, toques, chutes a gol.Apenas um não está de branco. Usa uma camiseta linda, juntando três cores que serão mágicas para toda a vida, com o número 13 às costas. A bola veio alta, ele domina no peito, gira o corpo, solta o chute potente, a bola explode no travessão (o som que ainda ouve nos lapsos de memória). Extasiado, Maurinho pergunta ao homem ao seu lado: quem chutou? Alcindo! Foi a resposta. Assim nasceu a paixão. O melhor momento do Grêmio? Pode ser!
Juntava os trocos que a mãe me dava para comprar a Placar. Perto do colégio tinha uma banca que sempre tinha a edição da semana anterior. Raramente conseguia comprar a edição atual. Abria ansioso a revista em busca do poster. Esperava encontrar a foto do Grêmio. Nas paredes do quarto, lado a lado, os times que me encantavam: Botafogo do Marinho, o Cruzeiro de Dirceu Lopes, o São Paulo de Pedro Rocha, o Santa Cruz do Luciano, o Remo do Aranha. Nunca teve um do Grêmio naquelas paredes. Era o tempo do 'Império Vermelho'. Aquelas derrotas fortaleceram a paixão. E uma vitória como aquela do Grenal do Zequinha, em 1975? A vibração do tio Luiz, alegria dele, a vibração, é um momento inesquecível! A noite foi pequena em Erechim. O primeiro poster que vi do Grêmio foi em 1976. Lages já era saudades. E, doía muito!
André foi meu salvador. O herói que eternizei em minha vida. Demorou, mas aprendi a vencer, comemorar um título. Este de 77, com o vôo dá liberdade de André, tive câimbras. Era a tensão, o medo da derrota, a esperança de um novo tempo. Que veio tão tranquilo com Baltazar, em 1981, e chega em Renato, também imortalizado na minha vida, numa madrugada no Brasil, tarde no Japão, na espiral do tempo. Aí, é o melhor momento do Grêmio na minha vida? Quem sabe!
A vida não para. Segue o seu rumo, oferece caminhos, atalhos, encruzilhadas. Percorri todos. Os erros de escolhas são também os acertos que determinam o que somos. O Grêmio é um bom retrato do que vivi. Tempos fartos, gloriosos, divididos com a aridez, os desencantos. A glória e a derrota parceiras na existência. Em belas chegadas e em partidas tristes. Da Libertadores de Carlos Miguel, Jardel e Paulo Nunes ao rebaixamento com Tavarelli e Cocito. Sofri, chorei, vivi emoções, num sábado de novembro de 2005. Vibrei como nunca tinha vibrado. A epopéia dos Aflitos é a maior vitória que vi no campo da bola. Mas, não o melhor Grêmio de minha vida. Ou, é?
O texto está longo. Chego ao encantamento definitivo. Foi o meu exílio voluntário. Não saia de casa em dia de Grêmio. Trancava-me no quarto, rádio ligado, os dedos no celular buscavam informações. o dia era de Grêmio! A vida pulsava, o coração batia feitoum bongô, os gritos da Geral. Me preparava para o recital. O Grêmio de Roger e Renato foi a melhor poesia desde Alcindo naquela tarde de Lages. Intenso. Mágico. Extraordinário. Para sempre. No entanto, como a espiral da vida e do tempo, a eternidade dura um átimo. Ela sobrevive na memória. O melhor momento do Grêmio na minha vida? O mais fascinante, sim. O melhor? Não sei!
Derrotas, vitórias, conquistas, quedas, ícones, lendas, histórias, vivências, reflexões, surpresas, enganos, certezas abaladas, dores, alegrias, amor, ódio, desejo. A espiral do tempo nos envolve num vai e volta que une tudo e separa ao mesmo tempo. O que somos, o que fomos é o resultado disto tudo. O melhor Grêmio de minha é a história que vivi, que acompanhei, que mexeu com as minhas emoções, que me fez chorar ou sorrir. O melhor Grêmio é o que a transversal tempo criou, revelou, mostrou.
Um brinde ao tempo!

PS: este texto foi escrito antes da vitória contra a soberba do Flamengo. O Grêmio estragou o 'passeio', inviabilizou a 'terceira dose' e resgatou a fúria que eu controlava numa espécie de zen budismo. Senti-me vivo, pulsante, intenso. Foi só uma vitória. Mágica no momento. Comum para a memória.

 

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O passado mora ao lado



"A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente".
Não terá Jardel, Paulo Nunes, Arce, Luan, Arthur ou Grohe na tela da tevê. Apenas o 'buraco de minhoca' de Einstein que me levará ao imaginário de um campo dos sonhos no encontro dos lendários tricolores Renato e Felipão.

Mauro Antônio Pandolfi

Fui na ciência em busca do entendimento do passado que nunca passa. Poderia ter me agarrado na poética de Mário Quintana: 'o passado não reconhece o seu lugar. Está sempre presente'. Há poucos 'Grêmios' eternos no meu baú de memórias. O mais emocionante, o que arrebata a minha alma, é o de Telê Santana de 1977. Aquele time é o meu poema favorito. O que declamo em dias tristes. Corbo; Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Vitor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder. Está definitivamente em minha vida. André é o nome de meu filho mais velho. Gosto do 'Grêmio Show, do Otacílio, Valdo, Lima e Cristovão e da modernidade de Tite com os seus três defensores, que não eram zagueiros, e Marcelinho Paraíba. Mas, os que ficaram feito tatuagem, os que me levaram ao delírio, ao encantamento foram o mais moderno e o mais poético. Seus artesães se enfrentam na Copa do Brasil. Renato Portaluppi e Luís Felipe Scolari num duelo que é só um jogo qualquer. O mítico encontro é somente um passado que mora ao lado, provocador destas linhas.
Quase nada sobrou do Grêmio de Renato. Tudo foi esgotado. A destruição nada poupou. Do conceito aos jogadores. Destroçado, perdido, sem rumo, o tricolor trava uma luta árdua contra o rebaixamento. Os seus principais 'meninos', as 'promessas', foram esmagados pelo fracasso final de Renato e de seu substituto Thiago Nunes. Matheus Henrique foi vendido ao Sassuolo, como um volante medíocre, e Jean Pyerre transformado em pária pela torcida furiosa e a mídia que adora devorar os ídolos, de preferência, fatia por fatia, para ser mais dolorido. Neste Brasileirão o Grêmio é um amontoado de ideias a procura de um time, que parece longe dos passados que moram ao lado, e dos 'fantasmas'.que se enfrentam na Arena.
Nada para de pé no fracasso. Ideias são substituídas a todo instante. Os conceitos são líquidos. Fluídos que evaporam. A 'modernosidade' de Thiago Nunes não resisitiu aos lugares-comuns do futebol. Perdeu, perdeu, empatou, perdeu. Caiu! Sobraram os destroços deixados por Renato. Thiago Nunes foi o equívoco. Quem sabe, o menor deles. Não teve tempo, nem para reagir, nem para mostrar a mediocridade enganosa. Para substituir a lenda, uma outra lenda. O Grêmio resgatou Felipão. A novidade em Luís Felipe é a ausência do bigode. Ah, sem o Murtosa. Porém, perigosamente auxiliado por Paulo Turra, um destes jovens forjados nos campos do 'Texas'.
Já tinha esquecido como era. Há tempo que não via um jogo do Grêmio torcendo pelo resultado. Pela única bola ao gol, pelo lance fortuito, pelo sofrimento, por um goleiro milagroso. Tem sido dolorido torcer para o Grêmio sem a poética do jogo bonito. Aos trancos, Felipão tenta armar um time. Parece suspirar pelo seu de Grêmio vitorioso, moderno, de 95 e 96. Estão no encadeamento do jogo, tentando encaixar aquele conceito, em suas 'peças', nas contratações, nas entrevistas. No entanto, 25 anos é o tempo que separa o ontem e o hoje. Mas, como disse Quintana e Einstein, o tempo é uma ilusão. Torço que este 'buraco de minhoca' seja um túnel mágico e que nenhum trem venha no sentido contrário.
Do time Campeão da Libertadores e do Mundial ficou a felicidade, a bela capa da Placar (a foto do Planeta Terra com as três cores mais belas) e o Renato no meu coração. Ele é quem completa o nome de meu filho André. André Renato! Faltou um terceiro atacante. Porém, isto é uma outra história.

 

domingo, 18 de julho de 2021

Gigantes

 


"Eles são personagens de nossas vidas. Os que vimos foram nossos heróis. Os que não vimos jogar fazem parte de uma história compartilhada, de um passado comum a toda irmandade do futebol, não importa a idade".
Mais do que craques de uma história fantástica, os 'gigantes' são personagens do teatro de grama e paixão construída com lirismo, seja pelo autor da frase, Luís Fernando Veríssimo, ou por João Máximo e Marcos de Castro, dois esgrimistas das palavras,  que reverenciam os semideuses de uma mitologia fascinante. Ora, heróis; ora, trágicos.

Mauro Antônio Pandolfi

Ir caminhando ao trabalho tem suas vantagens. Uma delas, é a saúde. O corpo precisa de movimento, de exercício, de suor. A outra, é passar por ruas pouco, ou quase nunca, percorridas de carro ou de ônibus. A cidade se abre, se descortina, se revela, se desnuda. As suas ruas e seus moradores mostram a trágica vida brasileira, a miséria ampliada pelo vírus, pelo verme. Mas, há também as vitrines e suas ilusões. Seja um doce, um celular, uma calça desbotada em um brechó, um restaurante à quilo, um boteco onde o tempo não tem pressa. Foi na vitrine de um sebo que vi um 'tesouro'. Um livro que povoou o meu imaginário de menino apaixonado pelo futebol. O livro falado na Placar, nos comentários de jornais ou nas jornadas esportivas dos rádios. 'Gigantes do Futebol Brasileiro', de dois amantes da bola, que ao contrário dos jornalistas esportivos - loucos por resultado - olhavam o futebol como poesia. Quem sabe, João Máximo e Marcos de Castro não soubessem driblar, nem chutar ou tabelar. Mas, com as mãos inventaram a genialidade dos deuses mágicos que habitam, flutuam, tornam-se divinos nos templos sagrados do futebol. Eternos!
Gosto de almanaques. Destes que tem verbetes. Leio aos pedaços, sem ordem. Vou escolhendo, nem sempre ao acaso. A gênese do futebol brasileiro está neste livro. Se você procura sabedoria, ela está em Domingos da Guia. Ele tornou o defensor um deus. Alguém que amava a bola como um meia. Se deseja ousadia e rebeldia tática, há Fausto. Há o início de tudo com Frienderich, o primeiro Pelé! A sequência com Tim, o mais extraordinário estrategista, com Romeu, o que nunca errava um passe e a exuberância do diamante negro. O magnífico Lêonidas da Silva que transformou a referência em uma marca. Textos poéticos, deliciosos, como era belo o futebol que nunca vi. Entendi a perfeição do prefácio de Luís Fernando Veríssimo. Não é somente grama neste teatro. Tem a paixão, a vida, destes personagens, ora heróis, ora dramáticos. Demasiadamente, humanos.
Tenho mania de dividir os almanaques em blocos. O segundo é o meu preferido. É o período que gostaria de viajar no tempo e viver num estádio. Aqui se constrói o conceito do futebol brasileiro, o lendário jogo perfeito dos craques. Entendi o fascínio de meu pai com Heleno de Freitas. O mais dramático personagem do teatro de grama e paixão. O que explodia em talento e raiva. Há o craque de Pelé, Zizinho. Se Pelé o elege, nada mais precisa ser dito. Um velho amigo, marinheiro de tantos portos, o considerava melhor que Pelé. Ele ia ao Maracanã para ver o mestre Ziza. O príncipe Danilo e seu jogo vistoso e o goleador Ademir, vivo, arisco, como um poema de João Cabral de Melo Neto completam o bloco. Vejo este quatrilho no meu 'campo dos sonhos'.
No terceiro bloco do livro, a arte se transforma em futebol. É a mais perfeita tradução da mitologia inventada por alguém que dormia com a bola. Seja como carinho, seja como lascívia. Amantes inseparáveis. Uma geração que nunca mais se repetiu. Tornaram o futebol brasileiro uma fantasia, um imaginário que acreditou nascer em cada esquina um craque, uma sofisticação de uma era dourada, de Brasil moderno, do Cinema Novo, da Bossa Nova, dos cinquenta anos em cinco. Um tempo que foi muito rápido. E, intenso!
Nilton Santos tornava o futebol simples, fácil, mágico. Didi inventava lances, ousadia, sem perder a elegância de um dândi. Gérson media o passe com a precisão de um matemático. Calculava o peso, a força, a velocidade como físico. Porém, o passe era de poeta. Rivelino era a fúria sem os dramas de Heleno. A potência de uma bomba. Meu favorito é Tostão. Fino, delicado, sublime, flutuava pelo ataque. Ninguém foi tão Cruyff como ele. Ou, será que, Cruyff foi um Tostão europeu? Eu era menino, tinha o álbum de figurinhas, não perdia uma partida no rádio ou na tevê, e só depois de adulto entendi o que assisti. Não eram partidas de futebol. Eram concertos, shows. Espetáculos que mato as saudade num vídeo do you tube. Há Pelé e Garrincha neste bloco. Basta dizer Pelé e Garrincha. Nada mais. Tudo já é explicado.
O último bloco é o reencontro com jeito brasileiro de brincar e os sobreviventes desta brincadeira. Os autores citam Falcão e Zico. Nunca houve um volante como Falcão. Ele é a soma de Fausto, Danilo e Gérson. Elegante, altivo, preciso. Tão genial que uma bola só não cabia em seu talento. Ganhou o apelido de 'bola-bola'. Assim explicava melhor a intimidade com ela. E, o que dizer de Zico? O Maracanã não era só o seu campinho particular. Era a sua academia, sua biblioteca, seu museu. Há inúmeras obras de arte que numa visita no Maracanã é possível ver, rever. Basta apenas fechar os olhos, deixar a poesia levar. Ou, no you tube, se você for cético, assistir as maravilhas do 'galinho de Quintino'.
Ao folhar o livro, notei que as páginas sobre Romário e Ronaldo estão de cabeça para baixo. Defeito de impressão ou ato falho? São sobreviventes de um tempo árido, onde o gol foi um detalhe. Cada um, ao seu modo, ganhou o mundo. Um rápido; outro, cerebral. Um mágico na pequena área; outro dono do campo inteiro. Os herdeiros de um jeito de jogar que nunca vai desaparecer. Um menino, uma menina, uma bola, uma paixão. Aí, sobrevive o futebol brasileiro.
O livro é ótimo e apaixonante. Mas, fiquei frustrado. Há os deuses de uma mitologia, de uma história que é de todos nós. Não só dos craques. Fizemos parte desta história. Sofremos, choramos, vibramos com eles. Fomos para as ruas, soltamos fogos, nos reconhecemos neles. Eu sinto a falta de dois craques que ajudaram a me forjar como torcedor, homem, brasileiro. Dois gênios que comemoravam gols com o mesmo gesto. O braço erguido, o olhar feliz. Contestadores e sonhadores. Desafiaram a ditadura e pensaram num outro país possível. Um foi Rei de uma nação. Outro foi o filósofo que inspirou a Democracia de outro povo. Reinaldo foi o mais soberbo centroavante da história. Para ser Reinaldo, tem que juntar Careca, Romário e Ronaldo. Ele é os três em um só. Nunca vi alguém como Sócrates. Inteligência apurada, um toque sutil, de calcanhar, grandeza e ética.  Uma lágrima escapou ao lembrar deles.
Esta edição é 2011. Há alguém deste tempo, caso tenha uma terceira edição, entraria no livro? Há um só candidato: Neymar. Tem as 'asas na chuteiras' - expressão de Chiko Kuneski - que uso indevidamente para falar de Neymar. Tem o talento destes 'deuses'. Não tem o caráter do jogo. Nem fora dele. Não tem a alma de um menino que brinca com a bola. Tem a boçalidade de 'quem é o dono da bola'. Tem a estupidez típica deste tempo sombrio. Neymar será somente mais um perdido na multidão do estádio. Que pena!
Ir caminhando ao trabalho tem suas desvantagens. Há o cansaço, o suor, o risco de atravessar a faixa de segurança e encontrar um motorista que vê a vida como um beque de roça.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Sonhos, memórias, os duelistas...

 

'Todos nós temos nossas máquinas do tempo. Algumas nos levam pra trás, são chamadas de memórias. Outras nos levam para frente, são chamadas sonhos'.
A frase do grande ator Jeremy Irons é o melhor retrato deste meu tempo, angustiado, entre as dores das perdas, o desespero do genocídio, a incerteza e a esperança de um outro tempo. Enquanto isto, as memórias me protegem.

Mauro Antônio Pandolfi

O fascínio com o futebol desapareceu. Não sei se é o exílio. Quem sabe o flerte com a depressão que o tempo sombrio me oferece. Já pensei na nostalgia da vida, no meu olhar romântico, mais leve, humorada, com alguns sonhos e uma tênue esperança de um futuro perdido no pretérito. Raras partidas despertam um encantamento. Infelizmente, nenhuma do Grêmio. Se tornou um time vulgar, comum, sem a poesia do jogo bonito encenada por Luan e seus amigos. Alemanha e Portugal, na Eurocopa, provocaram lembrança dos belos espetáculos do teatro de grama e paixão. Vi a fúria interminável de Cristiano Ronaldo. Por instantes, alguns bem eternos, o brilho nos olhos, a força de super-homem, os desejos de recordes, o talento superior aos demais. Quem sabe, até de Messi. Assisti Argentina contra o Chile pelas eliminatórias - a cova américa recuso ver - e Lionel Messi é um espectro. Não sei se é a frágil parceria ou se o tempo chegou para ele. Messi ainda guarda a maravilha poética de seus gestos, dribles, passes, chutes. Há cada vez menos Messi nos jogos. Nunca é invisível. Recusa a normalidade do teatro de grama e paixão. Busca a ousadia. Porém, o corpo não obedece. Não tem a fúria muscular de Cristiano Ronaldo. É um homem normal, não é máquina. Os dois, em minha paixão perdida, vivem um duelo, que tudo indica será por toda eternidade. Relembro um texto da última copa quando se enfrentaram. É a falta de ideias que ausência de fascínio provoca. É o tempo em que a memória substitue o sonho.

Os duelistas


"As pessoas não se precisam, elas se completam... não por serem metades, mas por serem inteiras, dispostas a dividir objetivos comuns, alegrias e vida".
A poética de Mário Quintana é um belo retrato de minha frustração com os mitos modernos do futebol. Lionel Messi e Cristiano Ronaldo nunca jogaram juntos, nunca trocaram um passe, nunca se abraçaram depois de um gol. Vivem a vida em um duelo de poesia, como se fossem metades de uma bola.

Mauro Pandolfi

Pênalti! Onze metros para o fuzilamento. A bola, o gol, o goleiro, o matador. A rede da trave não é de proteção. É do balanço que encanta as almas dos amantes do jogo. Os lances são idênticos,  quase iguais. Olhares diferem os duelistas.  A certeza e o medo. Há  tempos que Cristiano Ronaldo e Lionel Messi travam um duelo de genialidade, eficiência, imortalidade. Desta vez, Cristiano Ronaldo venceu. Marcou três gols em De Gea, para alguns o melhor do mundo. Messi perdeu para um goleiro que dirige filmes. Olhando a batida, a defesa, fico em dúvida:  mesmo mostrado ao vivo para o  mundo, suspeito de uma montagem do diretor! Não estou convencido do erro de Messi. Em tempos de teoria de conspiração, contribuo com esta.
Cristiano Ronaldo tem a leveza de um pássaro. Flutua, voa, sem pressão. Todos querem ver o seu jogo. Ele flui em campo. Anda pelos lados, pelo centro, toca a bola com a certeza do passe, do gol. O futebol  em Cristiano Ronaldo é um jogo de acertos. E, como acerta. É trivial marcar de  pênalti. Incomum é o erro de De Gea no segundo gol. Genial foi a cobrança da falta. Do olhar de águia, do suspiro mágico, precisão, da bola em curva, da rede balançando, do rosto feliz. O tempo aprimorou Cristiano Ronaldo. A intensidade do jogo substitída pela inteligência. Ele não é só o maior finalizado da história. A Copa pode transformar Cristiano Ronaldo no maior de todos os tempos. Ou, no mínimo, o herdeiro legítimo de Pelé. 
Lionel Messi também lembra um pássaro.  Mas, não tem leveza no vôo.  Suas asas carregam um país, uma obsessão, uma injusta comparação. O defeito de Messi é sua genialidade. Acreditam que a sua presença é o sufciente  para vitória. Não importa o time, a organização, os parceiros. Basta Messi. Há quatro copas que é assim. Há quatro copas que a Argentina fracassa. É também o fracasso de Messi. O ferrolho islandês, este moderno sistema defensivo de fechar a área, roubar todo espaço, a retranca retrô, anula o movimento ofensivo de toques curtos, rápidos, bonitos. Sampaoli tirou Messi de perto gol. Aos invés de jogar atrás da última linha, o o colocou na frente da segunda. Sampaoli não errou. Era a única chance de talento, vivacidade, imaginação, lances ofensivos de seu time. A vitória esteve nos seus pés. As faltas foram parar longe, sem perigo. O pênalti já estava perdido no seu olhar. Não havia confiança. Havia o medo. O futebol em Messi é um jogo de acertos e erros. Contra a Islândia, errou.
Cristiano Ronaldo foi estupendo. Lionel Messi foi comum. Portugal e Argentina tiveram o mesmo resultado. Um empate heróico e um empate devastador. Todos esperam Portugal nas oitavas. Muitos desconfiam da Argentina na próxima fase. Cristiano Ronaldo já fez o suficiente nesta Copa para ganhar mais uma vez o prêmio de melhor do mundo. Quase ninguém acredita em Portugal. O título será uma surpresa maior que a Eurocopa. Uma façanha que nem o gigante Eusébio conseguiu. De Lionel Messi espera-se apenas o título. Pode vencer os 'os outros duelos' contra Cristiano Ronaldo. Pode fazer muitos gols. Transformar a 'água em vinho', subverter a lógica do fracasso, inventar um finalista. Se não for campeão, será um símbolo da derrota. Para os argentinos sempre menor que Maradona, Kempes...

 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

O Maquinista da poesia

 

 

"Prezado amigo Afonsinho. Eu continuo aqui mesmo. Aperfeiçoando o imperfeito. Dando um tempo, dando um jeito. Desprezando a perfeição..."
Poucos cantaram tão bem o futebol, a rebeldia, a paixão como Gilberto Gil. Dois ídolos que já foram posters no meu quarto e hoje habitam as memórias que guardo, sei de cor e amenizam o exílio forçado.

Mauro Antônio Pandolfi

Nei e Afonsinho. Aprendi este verso no jogo de botão que comprei, no Bazar Almirante Soares, em Lages lá por 1969. Era só um menino que amava o futebol, o Inter de Lages, o Grêmio e o Botafogo, exatamente nesta ordem. Junto veio o Flamengo. Uma 'dura conquista' de meses, guardando as moedas que ganhava ao ir no armazém e na padaria. Valeu a pena aqueles meses de sonhos. Meus primeiros times, oficiais, de botão. Já estava cansado das 'improvisações'. Eram tão espetaculares que vinham com a foto dos jogadores. Depois vieram outros times, outros modelos de botões, com a Placar criei novos esquadrões, bolei campeonatos, vivi uma infância que inventou a paixão pelo futebol. A lágrima que caiu no teclado é só a saudade do Maurinho. Nada mais.
Esta poesia nunca esqueci. Do verso que começa torto com Cao. Continua sem ritmo com Moreira, Chiquinho, Leonidas e Valtencir. Nei e Afonsinho é um primor. Preciso e quase perfeito. O êxtase desta poesia tem a sonoridade que poucas tem no futebol daqui: Rogério, Jairzinho, Roberto e Paulo César. Tão sublime verso que povoa os meus sonhos infantis até hoje. Quase nada lembro daquele Flamengo. Não há poesia em Doval, Bianchini, Dionísio e Rodrigues Neto. Tenho dúvida se algum rubronegro declama cheio de saudades estes versos..
Descobri quem era Afonsinho na música de Gilberto Gil. Nunca foi Pelé e nem se aproximou de Tostão. Eu tinha uma pequena foto dele na parede de meu quarto, a contracapa da Placar. Já amava os Beatles e os Rolling Stones - mas 'arrastava a asa' por Suzy Quatro -, além da Placar, lia a Pop, a revista de rock, cinema, quadrinhos, artes. Lá conheci Jards Macalé, a Mafalda e um diretor de cinema chamado Pier Paolo Pasolini, um italiano que dizia que 'futebol brasileiro era poesia, o restante era prosa'. A Pop revelou a rebedia de Afonsinho. Se recusou a cortar a barba, o cabelo, berrou por liberdade no futebol e foi proscrito dos grandes clubes. Um rebelde como aqueles que o Maurinho sempre adorou. Seja como adolescente, jovem ou velho, que tenta fugir da senilidade, seguindo ainda uma rebeldia perdida no tempo. 'Ay que endurecer, pero...'
Uma outra poesia descobri cortando as fotografias da Placar. O fantástico time do Olaria, que fez eu pintar, de azul parte dos botões brancos. É outra poesia encantada, que gosto de recitar. Pedro Paulo; Haroldo, Altivo, Miguel e Alfinete; Roberto Pinto e Afonsinho; Osni, Antoninho, Luís Carlos e Salvador (se a memória não me traiu, era assim a bela canção da Rua Bariri). Foi o 'castigo' para o idealista Afonsinho. O jovem estudante de Medicina, que lutou pelos direitos dos jogadores, nunca foi o que prometia como um craque no meio-campo. O reacionarismo do futebol brasileiro cortou os seus desejos, minando seu imenso talento criativo.
Hoje, é ainda, um subversivo, um 'rebelde'. Afonsinho é o criador de um time chamado de 'O Trem da Alegria'. Nos anos setenta e oitenta oferecia uma saída aos desempregados - como ele - do futebol. E, nestes tempos sombrios, sobrevive e ainda joga as suas peladas em algum campo dos sonhos. No canal do you tube Museu da Pelada reencontrei Afonsinho. Barba e cabelos brancos, o olhar melancólico de sempre, o doce sorriso ao explicar a sua missão como 'maquinista' do trem': "Estou em busca da poesia perdida do futebol!" O idealismo nunca morre para um sonhador. Nem a rebeldia.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

À sombra da estátua

 

 

"Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E, às vezes, quando se quebra, a multidão o devora  aos pedaços".
Poucos entenderam a alma e a poesia do futebol como Eduardo Galeano. Como gremista sinto que devorei Renato em fatias para ser mais cruel. A crueldade foi maior comigo do que com ele.

Mauro Antônio Pandolfi

Me senti estranho. Nunca antes na história do Grêmio a demissão de um treinador abalou as minhas convicções, certezas, imaginários. Naveguei entre a tristeza da queda do ícone com racionalidade dos péssimos desempenhos do time dos últimos anos. Poesia ou realidade? Foi a dúvida que marcou meu fim de semana. O Grêmio tornou-se um pastiche dele mesmo. Pouca coisa. Quase nada. Nada lembrava o melhor Grêmio de minha vida. Renato Portaluppi foi o artífice e também o demolidor daquele time envolvente. Não soube se reinventar. Sugou a força vital daquele time até a última gota. E, terminou num arrodião de um certo Independiente Del Valle, que jogou feito aquele Grêmio de 2017. Rodou a bola, brincou com jogo, conectou tempo e espaço, exatamente como o belo Grêmio de Luan e Arthur. Por instantes, por ilusão, por desejo,  vi Arthur e Luan jogando no outro lado. Era só um engano. Meu e de Renato. Era só o fim de um tempo, ciclo, era, como quiserem chamar. Para um gremista,  Renato jamais será um treinador vulgar. Não é a estátua que o eterniza. É o jogo que o torna gigante, imenso, imortal. A estátua apenas fornece a sombra para uma selfie.
2017 é o ano que nunca terminará para um gremista. Está tatuado na alma, nas memórias. Eternamente jogará no imaginário teatro de grama e paixão que move a vida. Ou, num Campo de Sonhos, como no filme. O melhor Grêmio que vi jogar. O mais envolvente, o mais sedutor. O time que provocou um exílio voluntário. Em dias de jogos, nada fazia. Somente esperava o tempo passar para a ver a grande arte. Deixer de ir ao cinema, visitar os amigos, passear na praia só nos domingos de manhã. Assinei o Premiere para ver todos os espetáculos. Curti como nunca aquele Grêmio. Nem as derrotas provocavam tristezas. Queria aproveitar cada minuto daquele momento que sabia ser êfemero. O tempo e a vida perpetuam a alegria, a poesia do jogo, a beleza, a emoção, só como saudades. E, como dói esta saudade!
A cada ano que passou o Grêmio foi se diluindo, até se destruir por completo. Perdeu a inspiração, a organização tática, a ousadia e se tornou um time banal, desorganizado, frágil, perdido em conceito tático desconstruído, que Renato fingiu, ou ignorou, não perceber. Neste tempo, a 'multidão' trucidou jogadores, comissão técnica, dirigentes. Massacraram jovens, como Bressan e Ramiro. Nem o genial Luan escapou da 'fogueira'. Medalhões decadentes, descompromissados, jogadores comuns não sobreviveram. Quem arcou com o fracasso milionário? Os ultimos torrados foram os promissores Jean Pyerre e Pepê. Perto da 'fogueira' estão Matheus Henrique e Alisson. O último queimado pelos 'savonarolas' - nós, os torcedores - foi Renato. Desde aquele 5 a 0 do Flamengo, Renato foi devorado, em fatias, ano após ano, derrotas após derrotas, vexame após vexame, para ser mais cruel, para doer mais nos gremistas. Num sadomasoquismo que não consigo entender. Teria sido amor, esperança ou o ódio por imolar o ídolo eterno tão devagar?
Renato Portaluppi foi quem me mais provocou ilusões no teatro, aquele que embala sonhos, de grama e paixão. O mágico que brincou com um balão mágico e encontrou a sábia cabeça de Cesar e bailou, em vez de filosofar, com alemães numa madrugada/manhã em Tóquio. Tão encantador que tatuei seu nome na alma e na vida. Faz a dupla, com o libertador do Grêmio dos anos vermelhos, André, no nome de meu filho mais velho. Escrevendo este texto, tentando fugir da emoção, de um suposto sentimento de culpa, descubro que a queda não foi um adeus. Foi um até breve. Não sei! Espero que não! É dolorido demais devorar um ídolo.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Losers

 
"Quem vai acreditando numa vitória é um idiota"
Ao contrário do torcedor do Turquay United, Jonh Louis, quem acredita na vitória pode ser somente um apaixonado que não percebeu que as ilusôes se perderam na bola, na vida.
 
Mauro Antônio Pandolfi
 
Nunca vi um jogo do Taguá. Nem entrei no estádio. Passei várias vezes por ele. O Plácido Scussel fica perto da velha casa da tia Circe. Cheguei no portão de entrada há alguns anos. Só encarei as suas ruínas. O Taguá faz parte do meu imaginário de futebol. O poético clube de meu pai é um dos times de minha vida. Um dos mais inesquecíveis. 'Sofri' muito com ele. Tantas vezes pareceu ameaçador. Na infância imaginava um esquadrão. O temível time que derrotaria o Grêmio, segundo o pai. Tempos depois, descobri que era um desejo, um delírio, um desvario dele. Uma vitória retumbante do Grêmio, lá vinha o pai: 'se enfrentar o Taguá, perde!" A profecia era acompanhada pela sua gostosa gargalhada. Nas derrotas, parecia mais cruel: 'imagina se pegar o Taguá? Vai perder!' Nem sempre respeitava o 'nosso' sofrimento e ficava em silêncio. A lágrima que caiu no teclado ilumina a saudade.
E, quem disse que os desejos são fantasias? Foi num setembro de 1991. O Grêmio vinha de uma vitória retumbante no Grenal. Renato estava de volta. As vitórias eram promessas. O pai ficou calado todo o dia. Olhavámos, respeitosamente, também, em silêncio para ele. Só um leve riso irônico. A vingança que logo viria. Devastadora! Mas, não é que o lanterna do gaúcho, o que só perdia, ganhou. Dois gols de Duia. O maior herói do Taguá - que tem apenas um título em sua história -, que não virou estátua, só é reverenciado pela memória dos moradores de Getúlio.
O pai nos esperou na porta. 'E, o teu Grêmio, hein? Marchou para o meu Taguá!' A frase, a gargalhada, o abraço gostoso. Repetiu a cena três vezes naquela noite. A história durou mais uns dias. No returno, o Grêmio goleou o Taguá por 6 a 1. O pai nunca mais 'ameaçou' com o Taguá. Aquele vitória foi dele. Do seu desejo, de seu delírio, de sua provocação. Levei tempo para entender que não foi auto-ajuda, nem previsão, que estava escrito nas estrela feito um deus astronauta, nada! Foi uma brincadeira dos deuses da bola. Um carinho ao meu querido pai.
Há uma série na Netflix que fala da derrota que se transforma em vitória. A superação gloriosa ou épica. 'Losers' é poética. Tem um olhar generoso, profundamente humano, sobre perdedores. O terceiro episódio ('Vitória por um triz', é o título) é sobre o Torquay e o milagre que o futebol consegue fazer. À beira da queda, quem sabe do fim, o Torquay é salvo por um cão policial. A mordida, a dor, a vergonha, a honra, a glória. Nada de spoiler. Assistam. É fantástico! Lembrei do Taguá, da paixão de meu pai, quando assisti. Me emocionei. Flutuei entre a tristeza e alegria. O teatro de grama e paixão é a melhor invenção dos sapiens. Já o Taguá terminou em 1996. Ainda lembra de uma conversa, num sábado à tarde, lá em Getúlio, um amigo - o nome sumiu da memória - disse uma frase inesquecível: 'perdi os meus domingos. Gostava de tomar uma cerveja vendo o Taguá. Nunca fui para vem uma vitória. Ia pelo prazer de beber com amigos, os do campo e os da arquibancada. Não vou aos bares tomar uma cerveja assistindo a dupla grenal. Não há encanto nisto. Há a destruição da paixão do time da cidade".
A tristeza atingiu a alma nestes dias. Dois times de minha vida estão na encruzilhada que levou o Taguá e quase o Torquay: o Botafogo e o Figueira. A camiseta branca, a estrela solitária no peito, foi a primeira que tive. Era a paixão que descobri ao abrir aquele presente com dois times de futebol de botão. Um era o Botafogo e a sua encantadora poesia da escalação. O verso quee começa torto e termina mágico: Cao; Moreira, Leônidas, Chiquinho e Valtencir; Nei e Afonsinho; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César. Tinha nove anos e adorava declamar este poema. O outro era o Flamengo. lembro de Doval e Onça. Nada mais. Rebaixado pela terceira vez, uma dívida impagável, o Botafogo tem tudo .para ser o novo América. Virar, como Garrincha e Didi, uma eterna saudade. Um vídeo em preto e branco no youtube.
O Figueira foi uma paixão que começou em 1975. Logo no primeiro jogo que vi. O Inter de Lages ficou no passado, ficou no Vermelhão de Copacabana e nos sonhos de Maurinho. Vibrei com vitórias e títulos. Sofri nas derrotas, nos rebaixamentos. Mas, nada tão igual ao desta série B. Levou três anos para cair. Fatiado, destruído ano após ano, para ser mais dolorido, cruel, devastador. Encontro um 'homem do futebol' alvinegro, que pediu anonimato, triste, cabisbaixo, com seus passos lentos e pergunto: 'E,agora?' O sorriso é lacônico. 'Fecha no final do ano! Não há saída'. Dramático? (A conversa foi no inicio de fevereiro. Talvez, ninguem ainda pensava na ação de recuperacao judicial). No teatro de grama e paixão tudo é possível. Até a vítória impossível! É o que resta ao Botafogo e ao Figueirense. Torcer pelo milagre dos deuses da bola. Boa sorte!

 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O brasileiro Sócrates. Memórias...

 
"Arte, no futebol, nunca foi adjetivo"
Sócrates foi único. Talento no caminhar, no passar, no toque sutil de calcanhar, na hora do gol, no braço erguido de um pensador atrevido e único. Este tempo seria menos sombrio com Sócrates. A sua lucidez faz falta.

Mauro Antônio Pandolfi

Tem dias que sinto saudades. Às vezes, da vida, de algum momento. Noutras, de um amor perdido, de uma paixão bem vivida. Muitas, de amigos imprescindíveis, eternos, isolados em distanciamento social. Hoje senti saudades de Sócrates. Escutei Juca Kfouri falando dele, da gentileza e do craque. Casagrande declarando a paixão por ele, o amor pelo ídolo, pelo homem. O futebol é movido por duplas desde Pelé e Coutinho. Ou, até antes, no magistal River Plate de Labruna e Di Stefano. Casão e o Magrão foi um encontro de almas, de pensares, de jogo. A serenidade e a rebeldia. A ousadia e a maturidade. O arrojo e a lucidez. Complementares! Jovem, ainda sonhador, virei corinthiano por instantes, pela Democracia Corinthiana, por um sonho de um país, livre, leve, justo. Tudo foi um engano. A Democracia Corinthiana assustou o mundo reacionário da bola, sumiu, virou história. E, o país? Será mesmo um país? Ou, só um hospício controlado por um 'líder' insano, hostil, manipulando uma horda de devotos alucinados?
Saudades de Socrates! Mais do que suas palavras, seu jogo. Do passe preciso. Do meia que controlava o espaço e o tempo. Tudo era medido. Regido por um gênio. Gostava de suas passadas largas, de sua lentidão enganosa, do raciocínio rápido. Sócrates faria hoje 67 anos. Partiu tão cedo, foi tão apressado. É um dos meus ídolos. Um dos poucos que me tirava de um jogo do Grêmio para vê-lo. O último a me fazer torcer pela seleção brasileira. Jamais terei outra camisa amarela. Para lembrar de Socrates republico um texto deste crônicas.


Sócrates!



"Se as pessoas não tiverem o poder de dizer as coisas,eu vou dizer por elas. Quando era jogador, minhas pernas ampliavam a minha voz".
Sócrates era o jogador que pensava. O jogo e a vida. Genial, artístico, político. Um homem que faz falta em qualquer tempo.

Mauro Pandolfi


Ando com saudade de Sócrates. Fucei no you tube e achei alguns lances que alegraram a minha alma. Gols e passes. Vi um jogo completo e acompanhei a sua movimentação em campo. Não sei se o Sócrates grego era físico além de filósofo. O Brasileiro parecia um físico jogando. A movimentação, o olhar, o andar não eram acidentais, triviais, ao esmo. Eram pensados. Noção perfeita entre tempo e espaço. Certamente Stephen Hawking o conhecia. Desconfio que algumas teorias sobre gravidade e tempo foram baseadas na dinâmica de Sócrates, na sutileza e elegância de seus deslocamentos. Não foi só o futebol que me deixou com saudades dele. Ao ver Ronaldinho Gaúcho fazendo campanha para Bolsonaro lembrei do Magrão. Socrates se manifestou contra a ditadura. Ronaldinho faz apologia ao defensor da ditadura. Como pode alguém que vestiu a camisa do Barcelona apoiar um fascista? Certamente, nas horas de folga, o 'gaúcho' preferia seus pagodes a um bom livro sobre a história do Barcelona, da Catalunha contra o fascismo franquista.
Sócrates foi o meu ídolo de juventude. Tinha um poster dele no quarto. Durante algum tempo sublimei a paixão gremista pelo Corinthians. Tempo da Democracia Corinthiana. Metido a rebelde, eu gostava de quem desafinava o coro dos contentes, que desafiava a ordem. Sócrates era o meu preferido. Amava o seu jogo. A cabeça erguida, a falsa lentidão e a técnica apurada. Meu lance preferido era o calcanhar. A sutileza e magia num átimo de tempo. Tão rápido, tão desconcertante, tão artístico. Admirava o seu pensar. Não era um jogador comum. Tinha algo para dizer, propor, sugerir. Irritou o conservadorismo deste país. Velhos jornalistas - e nem  tão velhos assim -, amantes da opressão, das 'boquinhas', não o toleravam.  Eram obrigados a engolir pelo talento. Mas, sempre tinha um mas...
'Cervejeiro, revolucionário, contestador, rebelde, jogador tem que jogar bola, não falar de política'. Ouvi muito isto. Desliguei rádio, tevê, joguei fora jornais, não suportava a estupidez conservadora da imprensa esportiva. Nunca fiz uma entrevista com Sócrates. Com Paulinho Scarduelli gravei uma conversa com o psiquiatra Flávio Gikovate, fazia parte da diretoria do Corinthians no tempo da Democracia, sobre futebol, política, sexualidade, vida e, principalmente, Sócrates. Anos depois, entrevistei Raí, que fazia a estréia na Seleção Brasileira. Duas ou três perguntas sobre ele. Os outros 20 minutos foram sobre Sócrates. Não resisti a idolatria.
A vida foi cruel com Sócrates. Já tinha sido com Garrincha. O álcool foi um marcador feroz com os dois. Foi íntegro até nas últimas horas de vida. Recusou o privilégio de ídolo para um transplante. 'Só que é o seguinte, eu tenho de estar na lista. Eu não furo fila, não. E eu não estou em nenhuma lista", disse. No dia quatro de dezembro de 2011, Sócrates morreu. Um triste domingo. Ele sempre foi um exemplo para mim. Enquanto que Ronaldinho e seu irmão Assis foram denunciados por mau uso de verba pública em um 'suposto' projeto social em Porto Alegre. É! O futebol dá para comparar. Já o caráter, não!
  

 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Outras memórias: Reinaldo!


"Eu quero um gol de meia-bicicleta de Reinaldo para tatuar na pele da lua e tomar o lugar de São Jorge com seu cavalo, para que os namorados e os ex-namorados, os amantes e os ex-amantes, de todas as idades, digam uns aos outros, apontando para a lua:.

Olhe só o que pode um homem, mesmo quando está caído".

Roberto Drumonnd foi o cronista que melhor decifrou a genialidade de Reinaldo. Drummond é o apaixonado que torcia contra o vento que balançava a camisa do Galo estendida no varal.


Mauro Antônio Pandolfi


Lembrei de Reinaldo hoje de manhã. De seus gols mágicos, do punho erguido da rebeldia, de sua inteligência apurada. Nunca vi um centroavante como ele. Romário tinha a capacidade de finalizar de Reinaldo. Careca, a imensa habilidade. Ronaldo, o controle do espaço. Reinaldo era todos. Foi intenso, tão imenso, durou tão pouco. Muito pouco. Quase nada. Apenas os atleticanos, os mineiros, os apaixonados pela arte do gol bem elaborado, esteticamente perfeito, reverenciam. Não chegou no topo do mundo. Os joelhos destruídos impediram que a glória e o talento o tornasse um Messi ou Cristiano Ronaldo. Mas, ele era, no mínimo, no mesmo nível. Quem sabe, superior. Delírio de fã? Pode ser. No entanto, Reinaldo era extraordinário.

Do nada, bem aleatório, uma página do feicebuque mostrou lances, dribles, gols de Reinaldo. É o dia de seu aniversário. 64 anos. Bah! Meus ídolos já estão velhos, como eu. Onde foi parar o tempo que imitava, sem sucesso, Reinaldo? Queria encontrá-lo! Não tinha a intenção de republicar um texto. Entretanto, a bela saudade, o encantamento que tinha com Reinaldo, mudou a minha opinião. Republico com alma lavada e enxaguada de emoção.



O Rei

 

Mauro Pandolfi


Era um menino com cara de anjo, um moleque de cabelos enrolados, feliz com a bola nos pés. Brincava com ela. Seus dribles eram versos livres, soltos. E, os gols? Obras de arte! Foi um rei tão mágico, tão elegante, tão contestador. Um rei rebelde, como são rebeldes todos os guris que nasceram para jogar bola. Um rei de um povo apaixonado, que gritava em coro o seu nome. Rei de um tempo distante, perdido no passado, encontrado nas memórias de quem viu jogar, nos arquivos do you tube. José Reinaldo de Lima está de aniversário neste 11 de janeiro (59 anos). Estupendo jogador que disputava o 'trono' com Falcão e Zico. Um guardanapo era um latifúndio para ele. Hábil e cerebral. "Ei, ei ,ei! Reinaldo é nosso Rei!". Os gritos da torcida do Galo ainda ecoam quando o Mineirão fica em silêncio.

O punho cerrado da revolta. O braço erguido da contestação. A doce corrida pelo gol. Reinaldo era um inconformista. Rebelde de gestos e lances. Um atrevido! Tinha prazer em incomodar. O garoto sem meniscos, sem medo, com talento. Abusado, desafiou a ditadura militar, pediu eleições diretas, livres e anistia. Tinha um jeito anárquico de ser. Leitor de Proudhon e Freud criticou o conservadorismo comportamental da vida brasileira, da família, da imprensa. Um libertário! Reinaldo era doce e melancólico. Tinha cara de anjo. No futebol, terminou como um anjo caído

Aos 13 anos foi tirado de um treino após uma sequência de dribles em zagueiro titular do Atlético. Medo da violência. Violência que o abateu aos 15 (operou um joelho), aos 16 (cirurgia em outro joelho), sempre bateram nele. Reinaldo não resistiu aos pontapés, as dores insuportáveis nos joelhos. Jogou em alto nível até os 27 anos. Depois, perambulou mais sete anos por aí. Era só uma lembrança do Rei.

Tornou-se político nos anos 80. Um parlamentar comum, sem expressão. Tentou ser técnico. Não conseguiu. Sumiu. Parecia um exílio. Até ser preso, acusado de tráfico.  Foi driblado pela vida. Não sei onde anda Reinaldo. O que faz? Quem é hoje? No dia que escolhem o melhor do mundo, eu lembro dele. Estou triste. Era um jogador para o planeta, para sempre, eterno. Não foi! Guardo na memória o mais fantástico centroavante que vi jogar.