quinta-feira, 25 de junho de 2020

Memórias...(11)

 

"Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson: Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino".
A mais bela poesia do futebol. Épica, dialética, romântica. Sonora, rítmica, inesquecível. O verso 'Pelé' é mais que perfeito.


Mauro Pandolfi

Queria escrever um texto sobre os 50 anos do tri de 70. Falar daquele time maravilhoso, ousado, de seus deuses da chuva, da revolução feita por Zagallo. Mário Jorge Lobo Zagallo nunca entendeu o que fez. Após a Copa, em seus clubes e mesmo na seleção até Copa de 74, mostrou que tudo foi um acaso, a sorte, que segundo ele, sempre o acompanhou. A transgressão tática de 70 foi um 'equívoco' em sua jornada. Zagalo sempre foi reacionário, tanto no futebol, como em vários setores da vida. Esta seleção, de tempos em tempos, me visita. É uma das lembranças mais fortes da minha infância. Queria escrever sobre ela. Sobre a magia, a ilusão, o fascínio que os nomes me provocam. Ainda sei o nome completo de todos os campeões. A escalação é a melhor poesia de futebol que conheço.
Não consegui criar um texto sobre o futebol daquele esquadrão. Passei segunda e terça pensando, abrindo baú da memória, e vi apenas um guri que gostava de correr para sentir o vento balançar os cabelos longos. Saudades! De tudo, principalmente, dos cabelos.
No quarto, isolado, embalado por Roy Orbison, vou revivendo 1970. Não chegou a ser 'um buraco de minhoca'. Foi somente lembranças. Como gostava de olhar o Vermelhão de Copacabana. O primeiro olhar do dia. Ao chegar na cozinha, a 'Alma Cabocla", da Clube, terminava o despertar. Queria sair rápido de casa. Fugir da música caipira, dos avisos, chegar no Flodoardo Cabral e ainda bater uma bolinha no campinho de terra. As aulas, com a querida Leda, tinham o seu encanto. Quase fui um príncipe numa peça de teatro. Perdi o personagem para o Paulo Roberto. Talvez por ele ser melhor aluno, melhor ator, ser mais comportado. Mais bonito, não era! Fui ser o 'abacate'. Infelizmente, ou seria felizmente?, a peça não foi realizada. Acho que a Leda ficou doente. Gostava daquela turminha. Ainda lembro de muitos. Todos ficaram na poeira da saudade. Depois de 70, encontrei alguns nas escolas, nos bailinhos,.no futebol. Desde que saí de Lages tornaram-se imagens, que às vezes, duvido que existiram.. Quem mais queria rever, nunca mais vi. Nádia! Nome mágico. Loirinha linda, cheia de sardas, meiga, de um sorriso doce, uma paixão escondida em algum canto da memória . Nunca disse que gostava dela. Amor e paixão confessei poucas vezes.
Foi o futebol que me levou à leitura. A Leda falou ao meu pai da minha dificuldade na leitura. Ele garantiu que iria resolver. Fiquei eufórico! Mais gibis, pensei. Um diua o pai entrou em casa com um monte de jornais e disse: divirta-se! Logo percebi que era divertido saber sobre as coisas, o mundo e o futebol. Até hoje leio jornais. Fui até jornalista por algum tempo. No curso de jornalismo fiz grandes, eternos, mágicos amigos. Isto é para uma outra sessão de terapia.
1970 foi uma transição de amigos. Os da primeira infância se mudaram. Precisei encontrar outros. O Flodoardo foi fundamental. Descobri que o seu Jeremias, dono do armazém onde a mãe comprou a primeira meia de futebol. Era branca, vermelha e preta até a primeira lavagem, tinha um filho chamado Tadeu. Antônio Tadeu que todos conheciam como Bolacha. Antigo parceiro de mascote do Internacional. Virou amizade, um time de futebol, uma parceria, uma história que indicava ser longa ou eterna e que relembro num texto antigo do Crônicas.
Fim de sessão!

Meninos de Kichute

Mauro Pandolfi

"O tempo não para. Só a saudade é que faz o tempo parar..." 

                                                                   Mário Quintana.


O passado é teimoso. Nunca passa. Sempre esquece que passou. Olhe aí! Preste atenção, feche os olhos, relaxe e, surpresa, o passado está presente. Numa foto, numa lembrança, numa cena, num olhar. Voltei aos quatorze anos, estes dias, ao assistir o ótimo Meninos de Kichute. É como se fosse o filme da minha adolescência.

O time da rua, a escola, os amigos e a viagem de mudança para nunca mais voltar. 1974, aqui vou eu! Vou botar o meu bloco na rua, ler Charlie Brown e jogar como Carlos Babington (um dez daqueles que detesto hoje em dia). Meu amigo Bolacha preferia Cruyff.

Copacabana nunca me enganou. O lugar mais próximo do paraíso que conheci. Lá morei onze anos, fiz amigos, curti as primeiras namoradinhas e as festinhas embaladas por Roberto Carlos, Beatles e um grupo estranho de gente, e nome, esquisito: Secos e Molhados. Enfrentei muitas filas para assistir Mazzaropi e o Gordo e o Magro no Tamoio. E uma paixão nunca confessada: adorava os filmes do Trinity. Bons tempos aqueles, hein?

A bola é a vida deste blog. O encanto de Copacabana era o Vermelhão. O antigo areião que transformou-se no campo do Internacional. Depois, como o Colorado passou a jogar no Municipal, o Vermelhão foi abandonado ao vento. Virou campo de ninguém, de todos. O nosso Maracanã.

Como era bom jogar lá. Não era só um menino com sonho. Era um jogador. Afinal, tamanho oficial, traves e arquibancadas. Algumas vezes corri de braços abertos, balbuciando algo em busca do aplauso imaginário. Também, ouvi broncas, reclamações por um gol perdido. Não era a torcida. Eram os parceiros de time. "Pqp! Não dá para perder um gol destes, Maurinho!". Abel era o meu crítico mais feroz.

Oi, girando! Oi, girando! O campo ficou redondo para a gang de Johan Cruyff. Todos em todos os lugares. Espaço e tempo em um outro conceito. Bolacha, que era o principal líder do time, ficou encantado com a Holanda. Passou a Copa toda falando da Laranja Mecânica. No dia do jogo contra o Brasil, a sala da casa da dona Lucinda, mãe do Bolacha, ficou lotada. Divididos entre a paixão do Bolacha pela Holanda e o 'nosso' patriotismo. 'Ame-o ou deixe-o" dizia o adesivo colado na caderneta escolar. Por instantes, preferirmos o 'deixe-o'. Uma grande escolha.

Ah, gira, girou! Nunca tinha visto um time como aquele. Entendi o encantamento do Bolacha. Neeskens, Resembrink, Johnny Rep e seus amigos rodavam num carrossel mágico, igual aos dos parques que invadiam Lages de tempos em tempos. A vitória laranja virou uma festa. Gritos, pulos que irritaram seu Jeremias, pai do Bolacha. "Piás de merda! Cadê o patriotismo?", reclamou. No Boldo, uma espécie de Pacaembu, imitamos a Laranja Mecânica. Treinamos as movimentações, as trocas de posições, o passe rápido, a velocidade e a obsessão pelo gol. Fui Cruijff durante uns meses. A minha camisa era a 14. Aos poucos, a Copa foi se tornando saudades. Saudades que tenho até hoje.

O dia chegou. Julho de 1975. Um domingo. Passei com a turma da rua Irma Laurinda. Fui ao cinema, no bailinho do Juvenil, no bolão do Princesa. Terminamos a noite no bar do seu Chico, que ficava perto de nossas casas. Às onze da noite dei um abraço forte, fraternal, final nos amigos. Acompanhei todos indo embora. É a última imagem que tenho deles. O tio Danilo nos levou à rodoviária. Lages foi ficando para trás, longe. Mas, sempre volta em sonhos e lembranças. Pena que aquele tempo ficou naquele tempo.



segunda-feira, 22 de junho de 2020

Memórias...(10)

  •  

    "Quando a paixão se vai, permanece o tédio e tudo acaba, mesmo que continue."
    Torço para não me enquadrar na frase de Coco Chanel. Que o meu olhar sobre o futebol atual seja só um engano. Ou, que o engane seja o próprio futebol.

    Mauro Pandolfi

    Chorei no domingo de manhã. Me vi perdido, desolado, só. A solidão nunca me incomodou. Vivo, de tempos em tempos, exílios voluntários. As lágrimas foram pelo futebol. Este jogo que se transformou, como bem escreveu o Chiko Kuneski, em um vídeo game sem alma. Ainda é o teatro de grama. A sua essência de jogo está lá. Intacta! O talento, o drible, o passe, a maestria, o fortuito, o acaso, o desenhado. O que foi planejado, é cumprido à risca. Taticamente perfeito. Espaço e tempo definidos, harmônicos. Não há excesso. Um jeito de jogar que sempre gostei. Qual o motivo de meu desconforto, insatisfação, desespero? O teatro de grama permanece. A paixão desapareceu. Sumiu! Não há a força vital do futebol. Não há o grito, a demonstração do amor, o sofrimento, a alegria, a fúria. A paixão substituída pelo vazio, pelo nada, por coisa nenhuma. Ficou frio, frívolo, falsamente sofisticado pela tecnologia. Sem nexo. Tristemente, lógico. Não há surpresas. O mais forte, o favorito, o gigante sempre vence. Não há mais a pressão do torcedor inventando vitórias, impedindo derrotas, pelo grito que sai entusiasmado do peito, pela verborragia que explode os desejos. Como sou velho, não jogo vídeo game, fico com o xadrez. Silencioso, silente, sossegado. Ainda, encantador. Porém, a paixão pede mais que encanto. Suspira por lascívia, por volúpia, por libido. por concupiscência. O futebol perdeu o tesão.
    Lionel Messi salvou a minha manhã (era o teipe de Barcelona contra Mallorca). Foi quase um Messi poético. Por instantes, meros instantes, brilhou. Despontou a genialidade em três ou quatro movimentos. O passe preciso no gol. O gol driblado, negaceado, no baile da ginga, em linha reta feito um poema de Fernando Pessoa e o arremate, com jeito de fuzilamento. Para 'comemorar' a Memória (10), escolhi um texto sobre Messi para republicar. Ah, foi desanimador ver Arthur. Burocrático, previsível, acomodado. Nem lembrava o dono do tempo e espaço de Grêmio. As noitadas da Catalunha despertam prazeres, amores, festas. Não tiro a razão de Arthur. A vida é para ser vivida.  Porém, é cedo para abandonar o futebol, Arthur!

    Pegadinha do Messi



    Mauro Pandolfi

    Pênalti é o gol anunciado. O narrador já prepara a garganta. O torcedor fica em pé.  Ou, ajoelhado, rezando por um milagre.  Onze passos e nenhum segredo. Chute forte no canto, é gol! Há a cavadinha. Delírio poético, sádico, cruel. O pênalti é um fuzilamento. A rede não é de proteção.  O matador está  pronto. Caminha, corre, chuta...., chuta? Gol! Não um gol comum.  Uma linha de passe. O toque curto para o lado. Goleiro desaba, torto, sem jeito. O parceiro entra sozinho, toca macio e a bola, suave, dorme na rede. Que pênalti foi este Messi? Poesia ou cinismo? Arte ou maldade? Sublime ou humilhação?  Ou, o teatro de grama e paixão é mais burlesco do que épico?.
    Um lance repetido. Não sei se como farsa. Johan Cruyff e Jesper Olsen fizeram isto. Lá longe, muito longe, no século passado. Cruyff toca para o lado. O goleiro atordoado corre. Olsen devolve para o astro. Ele, com o gol vazio, marca. Mais um numa goleada do Ajax. Cruyff brincou com a seriedade, o conservadorismo, o eterno mesmo do jogo. Tirou a fatalidade do lance. Revelou que o futebol é mesmo uma brincadeira de meninos que curtem a vida adoidado.
    Lionel Messi é um poeta que escreve versos com a bola. Líricos, abusados, épicos. Ora, rima com Neymar. Outras, explode em um monólogo insuperável. Neste domingo, reinventou o pênalti. Olhou o goleiro. Parou! .Transformou o verso comum, burocrático num hai-kai: A bola flutua mansa. Tocada, bailada, rebola. Na rede feito dança.



Memórias...(9)

  •  

    "Todas as coisas tem o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas"
    Federico Garcia Lorca e Andrés Iniesta tem muito em comum. Catalães e poetas. Lorca usou as palavras. Iniesta, a bola. As palavras custaram a vida de Garcia Lorca. A bola reverencia a arte de Iniesta. O mistério das palavras e da bola não são para todos.

    Mauro Pandolfi


    Tenho inveja do talento dos amigos que transformaram a quarentena em literatura. Inspirada literatura! Que Chiko Kuneski era um ótimo poeta, já sabia. O que não desconfiava era a verve musical. Lírico, lúdico, seus poemas foram feitos pedindo uma música para acompanhar. Precisavam ser cantaroladas, assobiadas. Achou um ótimo parceiro. Ficaram sofisticadas, sem perder a originalidade popular. Ninguém é Chiko à toa! As crônicas sempre foram o forte do Paulo. Emocionais, flertando com um sentimento que te comove e, às vezes, deixa o teclado molhado. Fala dos filhos, de seus país, declarações amorosas a doce Rosana, desejos, com um olhar sempre otimista, esbarrando numa auto ajuda que alivia a tensão. Uma crônica sua foi escolhida para fazer parte de uma coletânea nacional.Talentosos estes dois amigos! Como dizem, fizeram do limão uma capirinha. Chiko entrou com a cachaça e o Paulo com açucar. Eu apenas bebo em homenagem a eles.
    Neste tempo sombrio, que corteja o fascismo, procurei a luz. Li 'Bodas de Sangue', de Lorca, para entender a origem do fascismo, a dor, a crueldade. Belo e encantador livro! Busquei o 'novo' futebol para amenizar o coração. Achei frívolo, frio, sem alma. Nos jogos do passado descobri que a fantasia vai além dos raros dribles. O talento é mais imaginado, contado do que real. Senti saudade de Andrés Iniesta. Do jogo geométrico, pensado, instintivo, sublime. Não vi nem no passado e nem no novo. Iniesta parece ser único. Repúblico um texto onde revelo o meu encantamento com Iniesta.


    Geometria

    Mauro Pandolfi

    A bola rente a lateral. Coman está cercado. Sem espaço.  Gira o corpo, o pé raspa suave na bola. Ela rola macia. Escapa. Um drible de playstation. Nada aconteceu. Só a beleza estéril do lance. Cena do futebol atual. Iniesta recupera a bola em seu campo. Está no lado esquerdo do campo. Cabeça erguida, flutua em toques. Para lá, para cá. Os passes trocados são medidos. Tudo acaba no gol de Morata. Lance do futebol de hoje. Nunca o futebol foi tão bem jogado como neste tempo. Todas as valências em campo. Técnica, habilidade, organização tática, força física, inteligência, poder mental. Jogos fantásticos, épicos, espetaculares. Não é mais esporte.  É entretenimento, um show de vida, fantástico. Nunca foi tão arte como agora. A Eurocopa revela isto. Pena que futebol no Brasil permanece preso ao passado que nunca passa.
    A geometria do jogo me encanta. As linhas dançando.  Matemática e balé.  O espaço ocupado, reduzido, mínimo. Os triângulos são formados. Escalenos ou isósceles. A bola flutua no campo, jogo tocado. Intenso em velocidade. O passe é a inteligência do jogo. Tudo desenhado numa prancheta. Ensaiado, treinado, repetido. O poder mental que acredita no que foi planejado. O coletivo não anula a individualidade.  Salienta. O improviso, o drible, o  chute reforçam o esquematizado ou anulam tudo.  Este jeito de jogar é de agora? Ou, o futebol sempre foi assim? Não sei! Acredito, apenas, que o futebol é a melhor invenção da humanidade
    Organização.  É o melhor signo do futebol moderno. Equipes bem estruturadas tornam o futebol um jogo de inteligência.  Ocupação de espaço, controle da bola, eficiência defensiva e finalização eficaz.  As linhas móveis, recomposição, a rapidez das peças, a inversão do jogo. Mais pensado do que instintivo.  Às vezes, pensado demais. Calculado demais. A Eurocopa é uma ótima visualização do moderno. Todas as seleções tem um padrão. Seguem à risca. Vence quem possui as melhores individualidades.  Um Messi, um Pelé, um Garrincha, um Neymar, um menino que ama o futebol, usa o instinto que vem da alma, e  rasga a prancheta com dribles, gols, passes. É a magia da bola.
    Iniesta  e a bola. Um nômade em campo. Gosta do vazio. Sempre solto, longe dos marcadores. Joga na frente. Joga atrás.  É dono do meio-campo. Essencialmente tático. Um toque é suficiente. Dois é o exagero que vira genialidade. Descobridor de atalhos. Infiltra-se nas linhas adversárias aos dribles ou com passes medidos. Iniesta é o retrato do moderno. A bola e Iniesta. Um estilista. Cabeça erguida. Passos contidos. A velocidade é uma extravagância.  Quem corre, em demasia, é a bola.  Estabelece o ritmo.  O maestro. Cadencia ou acelera. Iniesta é a cara do antigo. Moderno ou antigo? Eterno!. Nunca foi, dificilmente será, escolhido o melhor do mundo.  Mas, Iniesta é o futebol.