terça-feira, 18 de agosto de 2020

Resíduos...

 

"Os amores são como impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela".
Não sei se Milan Kundera gosta de futebol. Uso esta frase do autor de 'A insustentável leveza do ser', para tentar entender o 'desespero' com o 'fim' de Messi, Guardiola e do melhor Grêmio de minha vida. Será que o meu desancanto da paixão está ligado ao 'fim'?

Mauro Pandolfi

Ainda não esbarrei na paixão do teatro de grama após a volta do futebol. A dor da derrota, sim.  Massacrou forte a alma. Foi lancinante, angustiante, perversa. Em quatro dias, as poesias mais belas do futebol, aquelas provocadoras do reencontro com o Maurinho, desapareceram. Não por completo. Deixaram resíduos. Retalhos, pedaços, ruínas, que vão me consumindo devagar, aos poucos, para serem mais crueis. Messi, Guardiola, Grêmio de Renato - Luan, incluído - pertencem ao meu baú, onde guardo a eternidade. De tempos em tempos, abrirei. Para matar a saudades e encontrar a paixão, que está desaparecida. Espero que não tenha morrido de tristeza neste fim de semana.
Messi no canto do campo. Exilado, alheio ao jogo. A tevê explora o seu rosto. É de um homem destroçado. Sete a dois é o placar. O Bayern passeia, tripudia um Barcelona, inerte, atordoado, entregue, dolente. Messi encara o árbitro. Parece pedir ajuda, o final do jogo. O olhar complacente do juiz não impede o oitavo gol, de Philipe Coutinho. Num gesto de compaixão, Coutinho não festejou o gol. Respeitou o lendário craque argentino. Fim de jogo. A tevê acompanhou Messi. Distante, plangente, Lionel era um tango tocado em silêncio.
Há tempos que o Barcelona é um resquício do que foi. A frágil estruturação tática, o envelhecimento dos pílares, os pífios treinadores, se sustentavam na genialidade de Lionel Messi. Ele tentou, lutou, foi grande, mas, perdeu. O 8 a 2 marca o fim de dois 'impérios': o Barcelona, planejado por Cruyff, armado por Pep Guardiola, é só lembrança. O jogo contra o Bayern apagou os resíduos que existia na Catalunha; Messi, assim como Cristiano Ronaldo, não tem mais a magia poética de inventar soluções, saídas impossíveis, furar as linhas com passes e dribles. Só terá brilho, com um time jovem ao redor e uma estratégia bem definida, onde será somente 'o maestro'. Raramente, solista. Nunca mais o criador do jogo e do resultado. Nunca perderá o encanto.
Pep Guardiola é um autor a procura de um 'texto'. Uma ideia que renove tudo, outra vez. Guardiola é a negação do comum, do trivial. Rejeita, como sempre rejeitou, o burocrático, o previsível. Nunca antes na história, o futebol foi tão bem jogado. Ele é o idealizador. Nem Einstein desvendeu o espaço e tempo. Compactação, movimentos, velocidade, trocas de função, as linhas formando figuras geométricas, como um cubismo mágico e a bola nos pés. Quem tem a bola, tem o jogo. E, o Barcelona reinventou a arte do futebol. E, daí, tudo virou paixão.
Guardiola parecia um Merlin. Criou estratégias que confundia' o adversário. Estabeleceu conceitos, criou artimanhas e inventou segredos. Aos poucos, o 'enigma de Guardiola foi sendo decifrado. Não ganhava mais como antes. Os segredos não eram mais secretos. E, nem as novas ideias eram tão revolucionárias. Pep ainda tenta ser genial. Está longe de ser um treinador vulgar. Porém, na derrota para o Lion havia só resíduos do extraordinário Guardiola. E, por instantes, foram luminosos.
O Grêmio ainda toca a bola. Mais atrás, mais para o lado, falta quem fure a linha, como Luan ou Everton. Agora, a jogada é a bola alta em busca de Diego Souza. Jean Pierre ficou isolado, exilado no campo. Não há mais a parceria que desequilibrava o jogo. Tem de armar, criar o espaço e finalizar. Raramente tem conseguido. Falta alguém. O Luan de 2017 seria o parceiro ideal. Pena que Renato não percebeu isto. Luan me encantava pelo jogo sólido, belo, envolvente e a melancolia no olhar, nas passadas largas. No sábado, só encontrei a melancolia. Se há vestígios em Messi, em Guardiola, no Grêmio de Renato, não percebi resíduos em Luan. Isto é o mais triste nesta paixão desaparecida.


 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

'Hipocrisia'

 

"São curtos os limites que separam a resignação da hipocrisia".
Acho que ultrapassei os limites que o escritor espanhol Francisco de Quevedo estabeleceu. Em nome de uma paixão, que parece adormecida, resignei a coerência e a transformei em hipocrisia.

Mauro Pandolfi

Ao preferir ver o Grêmio em vez de um filme a convite do André, ouvi uma resposta que me desconcertou. "Você é contra a volta do futebol durante a pandemia. Então, não deveria assistir o jogo. Tem que ser coerente, pai! Ideias, palavras, só valem com a prática". Meu único argumento foi a paixão. O amor descoberto aos sete anos, tornou-se 'vício', trabalho, até terapia, motivo para escrever como fuga da louca sanidade deste 'estado de sítio' necessário da vida. O André foi gentil comigo ao falar em 'coerência' e não em hipocrisia. Vi o jogo. Um belo jogo! Assisti em silêncio, sem nenhum gesto de torcedor, nem no grito de gol, nem no desespero do empate, sem críticas ao Renato. Faltou tesão ao ver a bela camisa tricolor ocupando toda a tela. Não sei se a frase balançou os meus conceitos, se foi a 'hipocrisia', se o exílio forçado, se a vida banalizada, se a tristeza flertando com a depressão, senti a paixão desmoronada, destruída, sufocada. Sobrou só o teatro de grama.
Lembrei do meu velho amigo Rai Carlos, o vidente cego, ao 'perder' a paixão pelo Grêmio. Quando falávamos de amores, Rai lembrava da primeira paixão. 'Nunca acaba. Ressurgia forte ao sentir outra paixão se formando. Sempre se impunha. Foi assim durante muito tempo em vida. Até que um dia, a neutralizei. Estou livre, pensei. Era só um engano. Estes dias, ao escutar sua voz, a paixão explodiu. Estava escondida, guardada em algum ponto da alma, para aparecer feito uma emboscada', filosofava em meio aos goles de gim nas madrugadas de outro tempo. O Grenal será o sinal da paixão sufocada? Vou desafiar a minha 'hipocrisia', pensei.
Quarta-feira, ligo a tevê para a sessão de terapia. Descubro que será no Premiére. O meu fracasso financeiro me obrigou a cancelá-lo no final do ano passado. Paciência! Resolvi assistir Cricíuma e Chapecoense. Triste. Muito triste. Lamentável o futebol daqui. Obsoleto na ideia, obtuso na realização, medíocre no ato. Parecem ter uma organização defensiva. É um engano. É só uma retranca. Os ataques dependem da ação individual. E, aí, faltou talento. A decadência do futebol catarinense não tem nenhuma elegância. Passei para o derbi paulista. Se resisti trinta minutos com a partida daqui, aguentei quinze minutos na final de lá. Faltou tudo. Da inteligência tática até a habilidade. Um futebol tosco, precário. Entendi a opção do Flamengo pelo auxliiar de Pep Guardiola. O clássico de São Paulo mostrou o velho treinador bolorento e o novo técnico sem coragem. Não entenderam que o jogo pede beleza, arte, entreterimento e não só resultado. Nem a 'hipocrisia' resistiu.
Desliguei a tevê, liguei o rádio para ouvir o Grenal. O quarto no escuro, tirei os óculos, virei para o lado e dormi. Acordei com os 'gritos' do narrador falando das expulsões de Orejuella e Patrick. Vi o placar, o bom do rádio no facebook, que há uma tela com as informações do jogo, estava dois a zero para o Grêmio. Escutei até o final. Gostei da vitória! Esbocei um sorriso, uma leve alegria surgiu na alma. Era a paixão? Não!  Foi só uma piscadela de um flerte.
O jogo de domingo acabou ao mesmo tempo do filme do André. Nos encontramos no corredor. Nos olhamos em silêncio. Não foi preciso falar nada. Velho, na reta final da vida, entendi a lição do jovem que começa a vida. E, feliz, percebi que o André será um homem melhor do que eu. E, tomará, com mais sorte.