segunda-feira, 19 de abril de 2021

À sombra da estátua

 

 

"Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E, às vezes, quando se quebra, a multidão o devora  aos pedaços".
Poucos entenderam a alma e a poesia do futebol como Eduardo Galeano. Como gremista sinto que devorei Renato em fatias para ser mais cruel. A crueldade foi maior comigo do que com ele.

Mauro Antônio Pandolfi

Me senti estranho. Nunca antes na história do Grêmio a demissão de um treinador abalou as minhas convicções, certezas, imaginários. Naveguei entre a tristeza da queda do ícone com racionalidade dos péssimos desempenhos do time dos últimos anos. Poesia ou realidade? Foi a dúvida que marcou meu fim de semana. O Grêmio tornou-se um pastiche dele mesmo. Pouca coisa. Quase nada. Nada lembrava o melhor Grêmio de minha vida. Renato Portaluppi foi o artífice e também o demolidor daquele time envolvente. Não soube se reinventar. Sugou a força vital daquele time até a última gota. E, terminou num arrodião de um certo Independiente Del Valle, que jogou feito aquele Grêmio de 2017. Rodou a bola, brincou com jogo, conectou tempo e espaço, exatamente como o belo Grêmio de Luan e Arthur. Por instantes, por ilusão, por desejo,  vi Arthur e Luan jogando no outro lado. Era só um engano. Meu e de Renato. Era só o fim de um tempo, ciclo, era, como quiserem chamar. Para um gremista,  Renato jamais será um treinador vulgar. Não é a estátua que o eterniza. É o jogo que o torna gigante, imenso, imortal. A estátua apenas fornece a sombra para uma selfie.
2017 é o ano que nunca terminará para um gremista. Está tatuado na alma, nas memórias. Eternamente jogará no imaginário teatro de grama e paixão que move a vida. Ou, num Campo de Sonhos, como no filme. O melhor Grêmio que vi jogar. O mais envolvente, o mais sedutor. O time que provocou um exílio voluntário. Em dias de jogos, nada fazia. Somente esperava o tempo passar para a ver a grande arte. Deixer de ir ao cinema, visitar os amigos, passear na praia só nos domingos de manhã. Assinei o Premiere para ver todos os espetáculos. Curti como nunca aquele Grêmio. Nem as derrotas provocavam tristezas. Queria aproveitar cada minuto daquele momento que sabia ser êfemero. O tempo e a vida perpetuam a alegria, a poesia do jogo, a beleza, a emoção, só como saudades. E, como dói esta saudade!
A cada ano que passou o Grêmio foi se diluindo, até se destruir por completo. Perdeu a inspiração, a organização tática, a ousadia e se tornou um time banal, desorganizado, frágil, perdido em conceito tático desconstruído, que Renato fingiu, ou ignorou, não perceber. Neste tempo, a 'multidão' trucidou jogadores, comissão técnica, dirigentes. Massacraram jovens, como Bressan e Ramiro. Nem o genial Luan escapou da 'fogueira'. Medalhões decadentes, descompromissados, jogadores comuns não sobreviveram. Quem arcou com o fracasso milionário? Os ultimos torrados foram os promissores Jean Pyerre e Pepê. Perto da 'fogueira' estão Matheus Henrique e Alisson. O último queimado pelos 'savonarolas' - nós, os torcedores - foi Renato. Desde aquele 5 a 0 do Flamengo, Renato foi devorado, em fatias, ano após ano, derrotas após derrotas, vexame após vexame, para ser mais cruel, para doer mais nos gremistas. Num sadomasoquismo que não consigo entender. Teria sido amor, esperança ou o ódio por imolar o ídolo eterno tão devagar?
Renato Portaluppi foi quem me mais provocou ilusões no teatro, aquele que embala sonhos, de grama e paixão. O mágico que brincou com um balão mágico e encontrou a sábia cabeça de Cesar e bailou, em vez de filosofar, com alemães numa madrugada/manhã em Tóquio. Tão encantador que tatuei seu nome na alma e na vida. Faz a dupla, com o libertador do Grêmio dos anos vermelhos, André, no nome de meu filho mais velho. Escrevendo este texto, tentando fugir da emoção, de um suposto sentimento de culpa, descubro que a queda não foi um adeus. Foi um até breve. Não sei! Espero que não! É dolorido demais devorar um ídolo.