quinta-feira, 27 de julho de 2017

“O quê que é isso, Perivaldo?”

Chiko Kuneski

O futebol sempre teve e, espero que tenha, seus malditos. Os verdadeiros, não os badboys midiáticos do século XXI. O Futebol é feito de transgressão. Dos que calçam as chuteiras aladas. O drible desconcertante. A firula. O chapéu. A caneta. O elástico. A lambreta. E a verborragia fora de campo. Craques, ou externadores de lampejos da delícia de ser livre preso entre os quarto linhas retangulares.
Os malditos do futebol brasileiro sempre foram colocados, ou se colocaram, à margem. Álcool, drogas, festas, vida fácil, dinheiro fácil, futebol fácil. Todos foram autodestrutivos; ao mesmo tempo em que eram surpreendentes com a bola. De Garrincha a Sócrates e tantos outros malditos que já morreram praticamente esquecidos. Lembrados em funerais.
Perivaldo Lúcio Dantas é nome que consta no atestado de óbito. Frio, como o cadáver esperando ser resgatado no hospital público onde deu seu último respiro vitimado por uma pneumonia. Logo ele, que corria mais que a bola no olhar crítico, sempre crítico dos comentaristas esportivos que detestam os malditos. A mídia gosta de bons moços.
Perivaldo, que ficou cunhado “como o lateral que sempre cruza por trás do gol e corre mais que a bola”, foi da gloria de lateral direito, mesmo que reserva, da mágica seleção de Telê Santana de 82, que sucumbiu à magia do espetáculo, à vida de mendigo em Lisboa.
Foi da situação em que o resgataram. Das ruas, anônimo. Viciado. Maldito. Proscrito pelo vício, o próprio e o da hipocrisia de julgar da imprensa esportiva. O pulmão que sobrava para o lateral faltou-lhe quando dele mais precisou

segunda-feira, 24 de julho de 2017

O anti-herói de 82



"Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem culpa. E, se não tem culpa, paga do mesmo jeito"
Valdir Peres entendeu bem a frase de Eduardo Galeano. Foi algumas vezes personagem dela.

Mauro Pandolfi.

Faltou pouco, muito pouco, quase nada, para Valdir Peres se transformar em um outro Barbosa. Toninho Cerezzo  e, especialmente, Paulo Rossi o salvaram. O frango contra a União Soviética o colocava na linha sucessória dos 'vilões, dos perdedores, dos malditos do futebol brasileiro. Mas, no meio do caminho apareceu  um 'Davi' , Paulo Rossi, com uma, duas, três pedras, que imortalizou aquele time. Quase todos tornaram-se heróis, mitos cantados em prosa, principalmente, em  versos. Menos Valdir Peres. Ele é o anti-herói daquela seleção. Quem viu, no momento ou tempo depois, declama feito poesia o esquadrão. Lembram com  saudades da 'santíssima trindade' (Zico, Sócrates e Falcão), dos modernos laterais, dos hábeis zagueiros  e lamentam o goleiro.  Ele foi o equivalente a Félix na seleção de 70. Só que Félix foi mais feliz.
No São Paulo seus goleiros tornaram-se mitos. José Poy foi o primeiro. Tão reverenciado que nunca deixou de amar o clube. Foi de tudo. Ganhou títulos como, auxiliar, dirigente, treinador. Mesmo quando saiu de lá, sempre foi referência. Depois vieram Picasso, Sérgio Valentim, Arlindo até chegar em Valdir Peres. Ele veio de uma 'fábrica': a Ponte Preta. Há inúmeros goleiros produzidos em Campinas. O mais famoso, talentoso é Carlos. Valdir reinou no São Paulo. Jogou mais de 600 partidas. Na idolatria foi substituído por Zetti e pelo, maior de todos, Rogério Ceni. Tenho um amigo são paulino que considera Valdir Peres o melhor goleiro da história do time. Não brigo com torcedor.
Valdir era um goleiro seguro, rápido, ótima reposição de bola, sereno, 'malandro'. Foi um mestre na catimba. Seu jogo mais comentado foi a final do Brasileiro de 77 contra o Atlético Mineiro. O jogo em que os 'deuses da bola' ou estavam de folga ou fizeram uma imensa sacanagem com o futebol. Permitiram a vitória do medíocre contra o genial. Toleraram a violência paulista. Há uma das cenas mais dramáticas, e covarde, do teatro de grama e paixão. Angelo estirado no chão é pisoteado por Neca e Chicão. Ele teve fratura na perna. Nunca mais foi o promissor meia. Valdir Peres nada teve com o lance. Ele foi fundamental na decisão por pênaltis. Perturbou, catimbou, irritou e provocou os erros que tornou o São Paulo o mais triste campeão brasileiro de uma temporada.
A lembrança mais antiga que tenho de Valdir Peres é uma matéria da Placar. 'Ainda vou jogar de rosa' era o título. A foto mostrava com uma camisa rosa. Uma ousadia, uma afronta contra a machonaria da bola.  Não sei se jogou alguma vez com ela. Sempre vi com uma cinza. Discreta feito ele. Colorido era Leão. Espalhafatoso e fanfarrão, foi menos goleiro que Valdir. Peres foi tão discreto na vida, no campo, no gol, que poucos lembravam -  agora, todos já sabem - das duas defesas dos pênaltis batidos por Paul Breitner., um ano antes da copa de 82. O gol soviético mudou a sua história. Não virou Barbosa. Mas, dizem que era o 'verso torto', sem métrica, sem brilho, sem rima, da grande poesia de Telê Santana. Valdir Peres, morreu aos 66 anos, de um infarto fulminante, agora, é saudades!


terça-feira, 18 de julho de 2017

Figueira e o mercantilismo futebolístico


Chiko Kuneski

“O futebol é um jogo de olhares”. Acho uma determinante frase de Mauro Pandolfi. Meus olhares para o Figueirense são lacrimejantes. Não de torcedor derrotado; de torcedor angustiado. Não existe nada pior para um torcedor do que estar angustiado. Brabo, irritado, nervoso, irado passa no jogo seguinte. Há sempre a esperança.

A esperança se foi. O time virou apenas um grande entreposto comercial de jogadores. Virou um mercado de compra e venda. De exposição. Em seis meses de futebol o Figueirense não repetiu uma vez a mesma escalação. Tem que rodar e expor. Tem que mostrar. Tem que manter os jogadores dos empresários em atividade. Tem que comprar e vender. O Figueira virou o mercantilismo futebolístico.

Em seis meses deste ano são 31 contrações de jogadores. Compra. Venda. Venda. Compra. Mercado do nada. Mercado de corpos. Mercado de empresários incompetentes que vivem do fracasso para seu sucesso.

A fiel torcida está execrada. Subjugada às negociatas. A vitrine de horrores com a troca de manequins. No final dos jogos no estádio a ordem é tocar o hino amplificado  calando as vaias e apupos. A torcida é desrespeitada. Não há mais escudo. Não há mais paixão. Há interesses mercantilistas da compra e venda de jogadores. A história está sendo enxovalhada por interesses. O torcedor, angustiado, nem mais voz tem.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

FigueirenC ou FigueirA?



Mauro Pandolfi

Quase nada flerta com o passado como futebol. É referência, modelo, memória de feitos gloriosos, de heróis eternos. Também é usado como fuga, algo a ser evitado, fracassos de homens comuns. O Figueira vive o 'drama' mais temido do teatro de grama e paixão: o rebaixamento. A queda, no futebol, é algo mais grave que o 'inferno'. A Série C está logo ali. Há um olhar histórico para o 'furacão'. Na Série C o futuro foi moldado. O início fulgurante de organização, de modernização, de clube modelo.  O tempo passou. A volta ao passado não será como 'tragédia'; nem como farsa. Será como incompetência. Não aleatória ou acaso. É um trabalho, muito bem conduzido, nos últimos dois anos. Oito treinadores, quatro executivos (?) de futebol, mais de 60 contratações. Como bem definiu Chiko Kuneski, "um entreposto comercial", Processo tão comum no futebol catarinense. Quantos chegaram ao topo e desabaram sem deixar vestígios?
Mas, o futebol é uma caixinha de surpresa. De onde nada se espera, às vezes, escapa algo. É o acaso que faz suspirar o torcedor do Figueirense. Em cada jogo há uma esperança, uma promessa, uma dúvida, uma incerteza. 'Volta o capitão Marquinhos! Chega de gol de cabeça!'. Derrota com gol de cabeça! 'Mudou o goleiro!' Um frango, a fuga de táxi, a desmoralização nacional. 'Agora vai. Estreia novo treinador!' Trocaram o histórico capitão Márcio Goiano pelo Cabo, Marcelo, e tudo continuou igual. Até um elogio no fracasso. "Mesmo perdendo percebi uma evolução no time", frase repetida pelos três técnicos na temporada. A evolução foi só um engano, um desejo, uma piada. Vem um novo atacante de nome esquisito: Walterson. Pensei ter escutado errado ao ouvir o nome. Achei que era o gorducho Walter. O Figueira adora um medalhão decadente que só gera manchetes de jornais, despesas, frustrações. A melhor contratação na temporada foi um de nome ilustre e carreira desconhecida: Robinho. Quem sabe...Olha o torcedor sonhando mais uma vez!
Foram três vitórias. Sempre contra times desorganizados, desestruturados, desfalcados, em crise..O Figueirense sempre perdeu quando enfrentou uma equipe sólida, bem armada, com rapidez de ataque. Derrotas para a turma de cima, do meio e da zona do rebaixamento. O time é ruim. Pior do que diz a imprensa. No ano passado achava o inverso do Avaí. Considerava melhor do que falava a imprensa. Não há nenhum sentido tático no Figueira. A defesa lenta, pesada, joga em linha, perde sempre no mano a mano, sem saída de bola. Os laterais são inexplicáveis. Como descobriram Weldinho e Julinho? Não há proteção dos volantes. Dudu Vieira corre para todo o lado. Geralmente, desperdiça energia. É um bom jogador. Numa compactação bem organizada seria muito interessante a sua movimentação. Zé Antônio é o rombo do meio. Sempre fora do lugar, atrasado, comete muitas faltas, dispersivo. Além disso, tem mania de passes longos. De dez, erra, quase sempre, os dez. Marco Antônio e Jorge Henrique são periféricos. Nunca assumiram o centro técnico de um time. Marco Antônio flutua, anda pelos lados e nada produz. Jorge Henrique corre, luta, se empenha. O mesmo, ou menos, que fazia Ermel. Não há conexão entre eles. Nem troca de bola, nem aproximação. Jogam individualmente sem um pensar coletivo. A ausência da articulação cria um vazio que  equipes, bem organizadas, aproveitam e envolvem o Figueirense. No jogo contra o Criciúma, um comentarista disse que o time estava compactado. Erro de observação. Era só um amontoado. Um triste arremedo de time.
Desesperado, eu? Vou navegar nas minhas contradições. Há uma enorme possibilidade de o Figueirense achar um bom time. Vai ser no acaso, mesmo. Tem algo que a maioria das equipes não têm! Atacantes! Henan é ótimo. Bom domínio de bola, inteligência, rapidez e uma conclusão precisa. Luidy é veloz, driblador. Boa alternativa pelos lados. E, há Robinho. Inventivo, criativo, destemido, um candidato a craque. Tem bom posicionamento, movimenta-se com facilidade, cria espaços. Três ótimos jogadores. Só precisam de um time ao seu redor. Ainda há tempo do clube se definir. Será um FigueirenC ou voltará a ser FigueirA?

terça-feira, 11 de julho de 2017

A coragem do agnóstico


“O errado é mais fácil
O calar tranquilo
O auto negar sonolento
O falar perigoso
A palavra sempre é indócil!
Chiko Kuneski
Começo a crônica com o que chamo de palavras soltas. Ou frases largadas. Ou mesmo um poema escrito na modernidade do whatsapp. Temos que ter coragem para quebrar os dogmas. A comunicação não pode ser encarada mais com pensamentos medievais. A sociedade precisa do agnosticismo social, em todos os conceitos.
Mas o que tem isso com o futebol? Tudo. Dentro de campo o futebol  é a arte do movimento; fora está cada vez mais a pantomima do fingimento. O espetáculo precisa de frases de efeito. Os microfones se abrem para a continuação do teatro de grama e paixão, como diz Mauro Pandolfi, para o verbo feito em carne. E não se concebe verbo transmutado em carne sem deus.
Deus ganhou no futebol uma dimensão explicativa para o tudo humano.
Cada dia mais no Brasil jogadores evocam deus para seus sucessos. Em gestos e mensagens escritas e em frases de efeito. “Deus me iluminou”. “Graças a deus fiz o gol”. “Dedico a deus nossa vitória”. “Deus estava do nosso lado”. Na verborragia irracional, muitas vezes de uma fé falsa e puro marketing religioso, o humano faz questão de subjugar-se ao inexistente. A deus tudo. Ao talento uma herança de deus.
Deus não age no futebol. Deus não atua no cotidiano. Deus é uma perfeita criação dos homens para suas fraquezas. Mas é preciso ter coragem para encarar tal afirmação. Para por um basta na doutrinação futebolística. Uma coragem que pode ser perigosa e devastadora.
O técnico Levir Culpi teve essa ousadia. Proibiu cultos, palestras, manifestações de credos, quaisquer que sejam, no centro de treinamento do Santos. Heresia com o nome do clube? Prefiro achar que teve a coragem do agnóstico. Ousou romper o convencional. Humanizou o futebol tão endeusado.
Fora do centro de treinamento e local de trabalho todos são livres para professar sua fé, seus credos, suas adorações extra terrenas. No trabalho são humanos, não semideuses.

A derrota



Mauro Pandolfi

Apago a luz, desligou a tevê, ajeito o travesseiro, deito para dormir. Toca o telefone. Já sei até quem é.  Não diz alô, nem oi.  Pergunta de cara: 'Ainda com dor de cabeça? A minha passou! Só não consigo dormir. Que fiasco! Fui zoado no boteco do Alemão como há muito tempo não era. O que aconteceu com o teu espetacular time, Mauro?" Era Rai Carlos, o vidente cego,  querendo dissecar a derrota do Grêmio para o Avaí. 'Não estava escrito nas estrelas este jogo? Ou, nem os videntes acreditavam neste imponderável?', ironizei.  Ele riu. 'O deboche faz parte da não aceitação do resultado. Que diferença  faria uma previsão? Mudariam o sistema de jogo e os jogadores? Não estava escrito, nem previ. Quero entender o que ocorreu. Soberba?" , questiona.
 Levanto da cama, saio do quarto para não acordar a Elaine, vou até a sala e continuo a conversa. 'Não. Foi a vitória de quem acreditou, da humildade, quem entendeu os seus limites e explorou os limites, confiou na luta, na bravura, de quem nunca se entregou. Foi inteligente, perspicaz, eficiente e teve um goleiro excepcional', disse. Há um silêncio no telefone. Achei que Rai tivesse desligado. "Achei que o filósofo fosse eu!", gargalhou. Se estivesse no quarto, Elaine acordaria com aquela 'bomba sonora' que identifica Rai.
'O Grêmio foi o Grêmio de todos os jogos. Controlou a bola, rolou ela de um lado a outro, dominou o jogo, chutou a gol. O de sempre!', expliquei.  Inquieto, Rai me contesta. 'Não foi o que vi. Enxerguei um time lento, preguiçoso, sem pressa, sem volúpia, que achava que ganharia o jogo quando quisesse. Sei que você gosta deste jogo tocado, rebuscado, meio Barcelona, eu não! Prefiro a rapidez, a contundência do ataque".  São as nossas divergências sobre o jogo, o pensar do jogo. 'Discordo, Rai! Não foi indolente. Foi ativo. Chutou várias vezes em gol. O futebol é assim, cara! Paciência! Nós perdemos o hábito da derrota. Ganhamos um título e gostamos! Queremos mais!' Após a gargalhada, Rai completa: "eu queria os quatro campeonatos. Brasileiro, Copa do Brasil, Libertadores, Mundial. Todos! O Brasileiro, o que eu mais queria, já era. Agora, me contento com um!" Quem gargalhou fui eu! 'Sonha, menino! A vida é, também, para os sonhadores! Perdi isto. Quero um só. Qualquer um!', disse.
Ninguém joga sozinho. Tem o adversário. 'O Avaí foi taticamente eficiente. Segurou o Grêmio no primeiro tempo fechando os espaços na frente da área. Permitiu os chutes de meia distância. Não deu espaços para as tabelas. Isto é um mérito. No segundo, espaçou, alongou, desarticulou o sistema de marcação e de armação do Grêmio. Tá certo que o Renato ajudou ao tirar o Arthur. Surgiram os gols. O Avaí foi idêntico ao Corinthians. Mereceu pela eficiência', tento justificar. Ele contesta. "Não seja politicamente correto. Tô te estranhando! O Avaí fez um ferrolho, um retrancão de time pequeno. Achou um gol. Depois, aproveitou o desespero e marcou o  segundo. Só isto? Eficiência? Balela!" Nunca vi o Rai tão irritado com uma derrota. Geralmente, sou eu que o procura para 'amenizar' a dor.
'O futebol é mágico. Foi o que tu me ensinaste, Rai. Não é absoluto, nem definitivo. Flutua na imensidão da dúvida, do brilho individual, da capacidade de reação, indignação, da construção de um pensar de jogo. Futebol é aleatório. O melhor pode perder. Por um erro, por soberba, pela beleza do jogo que é imprevisível, como a vida, os amores, os ódios. Isto faz o futebol ser espetacular. A melhor invenção ...' Não consigo terminar. Interrompe. "Sei de tudo isto. Estes conceitos já discutimos tantas vezes. Mas, o fiasco foi devastador. Foi o triste o domingo. Vou ouvir os meus blues, tomar mais um gim e tentar dormir. Boa noite, Mauro!" Desligou o telefone. Poxa! O futebol tem toda a magia. Porém, quem disse que a magia não pode ser triste. E, foi!

sábado, 8 de julho de 2017

Os clássicos

Chiko Kuneski

Saudosismo é o pior dos defeitos; ou a maior das virtudes. Tudo depende do contexto em que aparece. Sou do tempo em que um “derby” movimentava toda a cidade. As organizadas eram de familiares, de moradores da mesma rua, no máximo do bairro, que sabiam o hino do clube na ponta da língua e apertavam a mão dos adversários. Da família. Do vizinho.
Um encontro de rivais esportivos como entre Paysandu e Carlos Renaux, em Brusque,  durava 15 dias. Uma semana antes para os prognósticos mais impossíveis. Uma semana depois para as tripudiações ou as ressacas das derrotas que se sabia podia durar até o próximo encontro. No dia do jogo emoções fervilhando, carreatas. Tudo para promover o nada. O lúdico. O futebol e seus entornos de torcidas apaixonadas era apenas uma ludicidade que permeava o dia a dia. A paixão organizava.
Confesso que não sei se agora ser torcedor é virtude ou um mero defeito de caráter. Parece que não há mais famílias no século XXI. Nem vizinhos. Nem amigos que torcem para o time rival. Os clássicos são ideológicos. Mas sem lógica. O lúdico do futebol sumiu.
As bandeiras não são mais dos clubes. Os escudos não são mais dos clubes. As torcidas não são mais dos clubes. São milícias organizadas e uniformizadas sob as cores dos clubes. Servem para interesses políticos de dirigentes e postulantes dos clubes ou de cargos eletivos.
São marionetes políticas que acabam ganhando vida no conforto da turba desorganizada, livres, em suas cabeças das cordas, mas atadas. Ficam violentas não pela paixão. Apaixonam-se pela violência. Fazem o que os dedos dos ventríloquos comandam se sentindo livres. Matar ou morrer virou um clássico.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

A mitologia de uma derrota

 
"Uma outra  'poesia' inesquecível: Valdir Peres; Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder. O poema começa torto. Mas, aos poucos revela magia, encantamento, tristeza. Lindo!"
A Seleção de 82 é um belo poema que recito sempre quando falo de futebol.

Mauro Pandolfi

Há derrotas maiores que as vitórias. Ficam eternizadas em corações e almas. São fantásticas, inesquecíveis, perdoáveis. Este mês uma delas 'comemora' 35 anos. O rústico Sarriá foi o palco da última 'derrota vencedora' da bola. Viu Paolo Rossi aniquilar os sonhos de Zico, Falcão, Sócrates, Júnior e todos os deuses da mais encantadora Seleção Brasileira. Perder de 3 a 2 para a Itália deixou aquele escrete do tamanho do time de Pelé, Tostão, Rivelino, Imortais! Todos eles! A vitória é só uma ilusão fugaz. O que sobrou do Brasil de 94? Romário? E a de 2002? Rivaldo e Ronaldo? Parreira sempre será um burocrata e Felipão foi tragado pelo 7 a 1. Ficaram os títulos na história, belas manchetes, povo gritando pela rua...só! Mas, fale de 82? Há o encanto, a mitologia, o fascínio, os craques. A derrota foi o que o melhor poderia ter acontecido a esta geração. Telê Santana virou signo, símbolo, emblema de arte. A equipe tornou-se eterna! Amamos os 'derrotados'! Glorificamos o que poderia ter sido, assim como o Brasil que um dia Stefan Zweig chamou de 'país do futuro'. Um futuro sempre conjugado como pretérito.
As vitórias não são menores que as derrotas. As Alemanhas, de 54 e 74, e a Itália, de 82, são esquadrões dos mesmo patamar dos 'deuses vencidos' destas copas. Ou, até melhores. Como ignorar Fritz Walter, Beckenbauer ou Scirea? Geniais, mitos, referencias.  Equipes organizadas, hábeis, nada burocráticas, como contam alguns jornalistas ou historiadores, de um fascinante jogo coletivo, que só ressaltou o brilho individual. A Itália de Enzo Bearzot era moderna.  Gentile foi a única lembrança do catenaccio.  O time atacava e defendia em bloco, não se chamava ainda de 'compactação'. Tardelli controlava o meio-campo ao lado do estilista Antognoni, tão genial que jogaria junto com Zico, Sócrates, Falcão e Cerezo em qualquer equipe do planeta. Rossi tinha o instinto mortal que os centroavantes, com o passar do tempo, perderam. E, Bruno Conti, o mais insinuante jogador do torneio. Canhoto, ponteiro direito, flutuava por todo lado. Um desorganizador de defesa. No gol, a frieza, a sorte de Zoff. Não dói dizer, mesmo depois de 35 anos, a Itália era tão brilhante como o Brasil.
Há pouco tempo revi aquela copa. A melhor que vi em minha memória. Grandes times. Extraordinárias equipes. A Argentina nunca teve uma dupla como Ramon Diaz e Maradona. Pena que nunca se acertaram. A França e os seus 10 (Platini, Giresse, Genghini, Lacombe) só repetiu o futebol com Zidane. Quanto tempo levará a Polônia para ter um Boniek e um Lato? A Alemanha tinha Rummenigge e o velho futebol organizado. Até Honduras brilhou. Bittencourt e Gilberto eram talentosos. Nunca mais ouvi falar deles. Talvez, perderam-se nas escaramuças políticas de guerrilhas e populismo de seu país. Como esquecer de Camarões com seu goleirão Nkono e Roger Milla, um quase Pelé africano. E havia o Brasil. Um time que flertava com o sonho de todos nós: livre, democrático, belo. A maior derrota veio dois anos depois. A 'diretas já' só aconteceram em 89. E, deste então, sempre perdemos. Mesmo, quando parecia que tínhamos vencido.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

"Meus amigos...!"

 

"Trivela; zona do agrião; macaquinho namorado de girafa, bola ou búrica?; linha burra de quatro zagueiros; subir o morro; estar no bagaço; a vaca vai para o brejo; entregou o ouro aos bandidos; fazer borbulhar; dar amarelão, mostrar o mapa da mina; feijão com arroz; catimba; coelhinho de desenho animado; quizumba; carne assada; cabeça de bagre; sair de pires na mão; ir na podre, bola de rúgbi."
Expressões criadas por João Saldanha. Algumas ainda são repetidas pelos comentaristas de futebol.

Mauro Pandolfi



'Meus amigos...' Assim João Saldanha começava seus comentários no rádio e na tevê. Ele tornou-se o mais visível dos torcedores comuns. O culto homem que decifrava o jogo, explicava o que via, numa linguagem tão simples, tão fácil, que todos pareciam entender de futebol como ele. Afinal, era desta maneira que discutiam futebol numa mesa de bar. O vendedor de picolé, o pipoqueiro, o 'geraldino' tornaram-se especialista no jogo. E, o sossego dos treinadores terminou. João Saldanha foi mais fantástico jornalista esportivo deste país. Um mito, uma lenda, o homem que inventou 'feras', criou a base do time que foi o maior da história. Saldanha era um homem destemido, corajoso, contador de história, polêmico, genial. João Saldanha faria cem anos neste 03 de julho. Como alguns poucos, João Saldanha é eterno.
Eu era um menino que amava futebol. Mexia nos meus botões, no grande rádio de madeira da cozinha sempre sintonizado na Rádio Clube, que aprendeu a ler num jornal esportivo e esperava ansioso o comentário daquele homem toda a noite no Jornal Nacional. Às vezes, distraído, meu pai me chamava. Aquele minuto era mágico. Com ele, a paixão pelo futebol respingou no jornalismo. Depois, descobri Ruy Carlos Ostermann. Entendi a complexidade do jogo, a filosofia, o pensar elaborado, a tática. Só desligava o rádio depois do comentário do Ruy. Aí, já era tarde. O jornalismo já tinha alvejado a alma. Mas...
Acompanhei sempre João Saldanha. Li seu livro 'Subterrâneo do Futebol',  ouvi seus comentários nas mesas redondas, o seu mau humor com o futebol moderno, os livros que mostram, sem decifrar, o imenso homem que foi. O abusado, visceral, às vezes, rude, temperamental, politicamente incorreto, o genial comentarista, o preciso analista político. Gostava mesmo de suas histórias. A que mais gosto é do pisão do pé que deu em Mao Tsé Tung ao entrar, vitorioso, em Pequim: "Polla, João!.." teria dito Mao. Não sei se era mentira. Era encantador!
Duas coisas de João Saldanha são eternas para mim. 'As feras do Saldanha' quando convocou a seleção pela primeira vez. Aquela Gazeta Esportiva, com a esta manchete ficou guardada um tempão nos meus alfarrábios. Não sei como a perdi. Outra, era a despedida. Dois dedos na testa, num cumprimento que lembrava uma continência, o sorriso de canto de olho e o 'até amanhã!'  Falta alguém como João para explicar de maneira tão simples como o Brasil enlouqueceu.