segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Outra crônica de adeus

 

"Vivemos tempos sombrios onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança".
Que a lucidez angustiante de Hannah Arendt desperte do transe os que apostam na esperança.

Mauro Pandolfi

2019 nunca será como 1968. Se for lembrado, ao contrário de 1968, é o 'ano que nunca deveria ter acontecido'. Tempo de loucura, insensatez, tragédias humanas e ambientais. Destruições provocadas, naturais, genocídios nas periferias. Tanta obscuridade que achatou o planeta. Lunáticos gritam que a Terra é plana, que menino veste azul, menina usa rosa e até descobriram o que era golden shower. Um ano que se perdeu no tempo. Uma distopia alucinada ou engano de um transe catatônico que ainda não despertamos? Até o Grêmio entrou neste redemoinho do retorno. O belo jogo apareceu por instantes, por momentos, por descuidos. Ficou parecido, quase igual, aos outros times que gostam dos chutões, do balão para a área atrás de um gol salvador. A bola trabalhada de pé em pé, num desenho mágico, reapareceu no Flamengo de Jesus. Nunca assisti tantos jogos do Flamengo como este ano. Só não comprei a camisa. Vibrei como um amante, um romântico que se encanta com a beleza alheia. Faltou algo para a traição ser completa. Paixão?
O futebol é a minha paixão. Tantas vezes escrevi isto. É o que me faz feliz. A vida tem mais magnetismo quando a bola rola, mágica, insinuante na tela da televisão. É poesia e prosa. Onde se encontram o menino sonhador do Vermelhão de Copacabana e o velho que tenta escapar do pragmatismo da vitória. Os dois se dão bem. Raramente discutem. Há boas risadas em seus papos.
Ainda paro para ver o drible. Aquele olho no olho do atacante e o defensor. O jogo de pernas, o bailado persuasivo, o corpo que finge, vai, volta tão rápido, que engana o olhar - meu e do marcador -, e segue por um espaço impossível de passar. Como foi bom ver Éverton e Bruno Henrique desfilando as suas belas poesias. Dribles que encantariam Garrincha, Julinho, Tesourinha...
Ah, o passe! O jogo planejado, estudado, conectado, dissecado, armado. O futebol é um jogo de espaço e tempo. Se o drible resolve o tempo, é o passe que controla o espaço. As linhas perfeitas, o campo bem dividido, tudo ocupado, estratégia desenhada. A bola rola. O jogo flui. Roberto Firmino mostrou no sábado todo o desenho de Jurgen Klopp para vencer um jogo. A roubada de bola, a velocidade de ataque, o passe, o drible, a finalização, o gol. Quem disse que não há poesia na prosa?
O Flamengo foi o Flamengo por instantes. Durou pouco mais de 20 minutos aquele jeito tão bonito de jogar. Ficou com a bola, trocou passes, tirou o Liverpool do lugar, incomodou. Nem um lance de gol criou. Bonito ver o bailado em velocidade de Bruno Henrique em cima de Alexander-Arnold e precisa cobertura de Van DijK. Aos poucos, o Liverpool controlou o jogo, teve a bola, atacou, venceu. A derrota foi superestimada como uma 'vitória moral', um feito, um acontecimento. Triste tempo de derrota glamourizada.
2020 chegou! Ufa! Demorou demais. Torço que a folia do Carnaval marque um novo tempo. Que a Terra volte a ser redonda, que meninas e meninos usem as cores que quiserem, que a luz vença as trevas, que Renato seja o Renato de 2017. Desejo um Feliz Natal e um Ano Novo esperançoso para que leu, curtiu, comentou, compartilhou, passou, olhou e ignorou, as más traçadas linhas deste blog. O meu regalo são versos do belo Duda Sacul, que não sabe driblar com a bola, mas com palavras é um Dener: "Deixe-se levar pela alegria. Mesmo que for acabar. Mantenha-se até o último bradar. Espalhe a folia. Mesmo se algo lhe preender. basta apenas ignorar. Mesmo se ao medo você ceder. Basta apenas acordar".