sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Diego, 60!

 

"Lá na clínica tem um cara que diz que é Napoleão e outro que pensa que é San Martin. Quando digo que sou Maradona, eles não acreditam".
Diego Armando Maradona é o mais complexo ariete da Santíssima Trindade da bola. Foi deus e humano. Brilhou na lucidez de gênio e conseguiu sair vivo da loucura. A bola o tornou imortal.
Mauro Pandolfi
Há algo de Pelé em Maradona. Nunca foi 'Rei', nem 'Príncipe' e nem teve um bando de fidalgos para cortejá-lo. Diego Maradona foi mais divino. Flertou com 'Deus'. Tratado como Deus. Um 'Deus' cheio de devotos, uma igreja para para praticar os rituais e hereges para contestar a divindade. Dizem que na cruz deste Deus está marcado, em azul e branco, o número dez. Único e envolvente, Maradona seduziu com um jogo poético e mortal, forjados em dribles e chutes impossíveis. Fez o gol mais fantástico de uma Copa do Mundo. Correu 55 metros, com a bola acarinhada no pé, em sete segundos numa velocidade média de 29 km/h. Um velocista de 100 metros chega a 35km/h. Eles correm em linha reta, ninguém para atrapalhá-los, sem uma bola no pé. O ex-zagueiro Ruggeri contou, no programa Resenha da ESPN Brasil, sobre o lance.'Parei para olhar. Ele foi correndo, a bola grudada no pé, passou por um, por outro e quando chegou próximo do goleiro, nos contou que lembrou do irmão, que havia cobrado o drible no goleiro num lance parecido. Quem vai lembrar disto num ato de segundos? Um monstro! Diego precisa ser estudado!' Isto é Maradona! O 'Deus' que se tornou homem.
Há muito de Manoel Francisco dos Santos em Diego Maradona. Não só os dribles mágicos e alegria do povo os tornam parecidos. Flertaram, conviveram com a dor, o desespero, as tragédias pessoais, os fracasso levaram ao fundo poço. Mané Garrincha sucumbiu ao álcool. Da miséria, a depressão e a morte. Diego Maradona teve mais sorte. Saiu com vida. Sua ex-esposa Cláudia Villafañe declarou certa vez: 'Diego está sendo devorado por Maradona'. A prisão, o uso intenso de cocaína, a internação no hospício. Diego sobreviveu, assim como Maradona. A maturidade o deixou mais rebelde, contestador, provocador, às vezes, estúpido, ora, irreverente, divino. Altivo, orgulhoso, declara-se 'peronista, fã de Chaves, amigo de Fidel' e detestou quando João Havelange o chamou de 'filho'. Irritado, respondeu: 'no soy hijo de puta'. Maradona sempre precisou de um tango para bailar, sorrir, chorar, viver.
Diego Armando Maradona é a lenda da minha geração. O que mais vi jogar. Como garoto, como um velho. Temos a mesma idade, quem sabe os mesmos sonhos, não os mesmos pesadelos. É o último texto sobre os três da Santíssima Trindade. É o meu agradecimento aos três homens que inventaram a vida, a alegria, o amor, a dor no teatro de grama e paixão. Republico um texto sobre Diego Maradona.
Um tango para Diego
Mauro Pandolfi
"Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao
No ves que va la luna rodando por callao
Que un corso de astronautas y niños, con un vals
Me baila alrededor. Baila! Veni! Volá!"
"A balada de um louco" de Astor Piazzolla pode ser um tango para Diego.
Diego Armando Maradona é a ponta mais aguda do tridente nascido em outubro. Há algo de Pelé, muito de Garrincha. Diego é prosa e poesia. Diego é o futebol. Foi um gênio precoce. Um adolescente atrevido. Um adulto problemático. Um velho a beira loucura. Maradona é um homem complexo. Viveu a lucidez, a glória, a fama, o fundo do poço. Foi excluído como um pária. Reintegrado como um Deus. Desafiou a ordem, rebelde que transitou a margem no futebol. Flertou com a máfia, com ditadores, com drogas e com a morte. Maradona é o melhor representante do fim do século xx. O ídolo da minha geração. Um mito. Uma lenda. Um homem. Tão humano, tão frágil, tão estúpido, tão divino.Maradona e a bola. O futebol sempre foi e será uma fantasia. Ele dá uma media volta e segue a bailar. O canto da torcida lembra uma orquestra executando um tango. Desliza no gramado para o longo caminito. Mano a mano enquadra um rival. A bola é la cumparsita. A esquadra inglesa é envolvida pelos movimentos rápidos e elegantes. Os muchachos acompanham a dança. Vê o zagueiro e arma o gancho. O ultimo movimento é um corte no goleiro. A bola na rede é o derradeiro verso do tango, berrado em plenos pulmões no estádio Azteca. Diego Armando Maradona é o tango jogando. Lírico, encantador, dramático. Aquele gol é arte. Sublime arte. Arte eternizada pelo narrador uruguaio Victor Morales. Ele cantou assim:"....Quero chorar! Deus Santo! Viva o futebol! Golaço...Diegool! ....Maradona é para chorar. Maradona numa corrida memorável. A maior jogada de todos os tempos!....Graças Deus! Pelo futebol! Por Maradona! Por estas lágrimas!..."Futebol e guerra. O simulacro perfeito. Cores, símbolos, países. O campo e a batalha. O imaginário foi tão real na copa do México em 1986. A Inglaterra humilhara a Argentina nas Malvinas. O conflito suicida armado por um ditador louco e desesperado. Dor, sangue, lágrimas, jovens mortos. O futebol como revanche. Diego Maradona como o comandante supremo. Liderou a batalha, venceu com fúria. Um gol estupendo e uma falcatrua típica latina.'La mano de Dios' é a sua obra mais famosa. O lance que faz o transitar em sagrado e o profano. Entre deus e o diabo. Entre a glória e a desgraça. Entre a vida e a morte. Maradona é o mais trágico personagem do futebol. Também, o mais genial.
Diego Armando Maradona é a ponta mais aguda do tridente nascido em outubro. Há algo de Pelé, muito de Garrincha. Diego é prosa e poesia. Diego é o futebol. Foi um gênio precoce. Um adolescente atrevido. Um adulto problemático. Um velho a beira loucura. Maradona é um homem complexo. Viveu a lucidez, a glória, a fama, o fundo do poço. Foi excluído como um pária. Reintegrado como um Deus. Desafiou a ordem, rebelde que transitou a margem no futebol. Flertou com a máfia, com ditadores, com drogas e com a morte. Maradona é o melhor representante do fim do século xx. O ídolo da minha geração. Um mito. Uma lenda. Um homem. Tão humano, tão frágil, tão estúpido, tão divino.
Curtir
Comentar
Compartilhar

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Mané, o esquecido!

 

"Fui como Cristo, na vida particular e também no futebol. Já sei que, quando os dirigentes tentam passar os jogadores para trás, eles chiam e dizem: vocês pensam que sou um Garrincha? É isso aí, gente boa, virei um símbolo do que não se deve ser na vida".
Garrincha foi um 'prisioneiro' de Manoel Francisco do Santos. Só conseguia a liberdade de voar com a bola no pé. Aí, era o 'anjo torto' que alegrava o povo com o seu balé encantado...
Mauro Pandolfi

A tevê ligada me pega distraído. De soslaio vejo o Maracanã. Sem ninguém. Lembrei da música de Moacyr Franco. Vi a ilusão no estádio vazio. Sem torcida. Sem vida. O aplauso já foi um sonho. Agora, é quase um pesadelo sombrio. A saudade dos dribles aperta o peito. Nenhum craque repete as suas jogadas. A emoção molha o teclado. Com saudade viajo na memória em busca dos lances perdidos. O 'anjo torto' é um espírito aprisionado no esquecimento. Quase ninguém lembra dele. Numa reportagem sobre as estrelas de outubro não foi citado. Na votação dos melhores do futebol de todos os tempos, de uma revista européia, é um dos menos votados. Mané Garrincha não é mais a alegria do povo. É só um fantasma da ópera do teatro de grama e paixão.
Desiludido com o jogo da tevê busco o desejo no passado. Copa do mundo de 1958. Brasil e URSS. Dois minutos. Didi lança para Garrincha. Ele para. Há um soviético na sua frente. Negaceia o corpo, ilude o marcador e vai... Dez minutos. Outra vez Didi. Mais uma vez Mané. Já são dois soviéticos. Ele vai, volta, engana os marcadores e segue rumo ao gol. 32 minutos. Didi com a bola. O campo está vazio no lado esquerdo. Ele escolhe Garrincha. São cinco em fila indiana para impedir a jogada. Mané para como sempre. O corpo vai, lá foi um. O corpo volta, outro se passou. Toca na bola em velocidade. O terceiro não consegue acompanhar. Mané para, retorna. O quarto o espera. Não cai no conto do drible. Encurta o espaço e o quinto rouba a bola. Nada aconteceu. Não se transformou em gol e nem lance perigoso. Foi apenas poesia. O balé das pernas, das idas e vindas, do olhar feliz do torcedor, do riso alegre do teatro de grama e paixão. O espírito santo do futebol é o drible. O futebol é mais imaginário que real.
Manoel Francisco dos Santos foi um homem brasileiro que inventou o mais original jogador de futebol que o mundo viu. Mané era descendentes de indígenas e negros, operário, sobreviveu as tragédias e a miséria dos brasileiros como ele. Garrincha sempre foi a antítese de Pelé. No corpo e no jogo. O atleta perfeito e o 'torto'. O cerebral e o intuitivo. Pelé era o todo. Garrincha foi aprisionado na margem do campo. O profissional e o amador. Outra diferença é que Pelé sempre escondeu o Édson. Se impôs. A sua 'majestade' enquadrou o homem comum. Já Garrincha nunca se libertou de Manoel. Fora do jogo, viveu como o Manoel. Caçava, pescava e bebia com os amigos de infância de Pau Grande. Garrincha só 'incorporava' com a camisa sete no corpo. 'Era uma criança', disse seu protetor, padrinho, amigo até os últimos dias, Nilton Santos. 'Era um matuto, meio selvagem, meio índio, criado num submundo de miséria e ignorância, um lugar atrasado onde nem o trem parava', afirmou João Saldanha, numa descrição impiedosa, cruel e profundamente real. 'Garrincha, como disse o meu irmão Mário, foi a vingança do brasileiro pobre e sem futuro. Quando parou de jogar, a sociedade deu o troco em Manoel'. A vida sempre foi um João para o Mané Garrincha.
28 de outubro. A ponta mais bela e original da Santíssima Trindade da bola está de aniversário. Até Diego Maradona, o outro vértice do triângulo, foi meio Pelé. Garrincha foi único. "Pelé e Maradona foram geniais. Puskas e Cruyff sensacionais. Mas, o maior de todos foi o 'homem das pernas tortas' - Garrincha. Nunca vi ninguém fazer com a bola o que ele fazia". Quem disse isto foi Di Stéfano que disputa com Pelé e Maradona o título de melhor jogador de todos os tempos.
Garrincha sempre foi um enigma para mim. Gênio incomparável e ou personagem marcante para ressaltar a miséria neste país? Futebol ou sociologia? Arte na bola ou arquétipo na vida brasileira? Agora, rumo ao final, descubro jogos inteiros do Botafogo e da seleção e entendo o fascínio que despertava. que gerou a mais fantástica manchete de um jornal: 'De que planeta veio Garrincha?', jornal El Mercurio, do Chile em 1962. Elza Soares respondeu: fome! Mané deve ter dito o mesmo.
Recordo um texto que falo de futebol, paixão e as asas do desejo.
Asas do desejo
Mauro Pandolfi
Acordei cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido, um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava. Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático. Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a minha resposta. Ele riu. Levantou e disse: 'Vem cá que vou explicar a magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O encantamento do jogo".
A chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui, neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo. Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço pequeno, miúdo e cria ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns, retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra no outro". Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva emendou para o gol.
Vou de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos. Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo. Perguntei o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible, do povo.
Curtir
Comentar
Compartilhar

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Édson, 80!

 

"Pelé não morre. Pelé nunca vai morrer. Pelé continuará para sempre".
Quem está de aniversário é o Édson Arantes do Nascimento. Vida longa! Enquanto rolar uma bola, num campo, numa praia, é dia de Pelé. Ele não nasceu e nem se tormou bola. Pelé é somente o futebol.

Mauro Pandolfi

Édson Arantes do Nascimento é um homem discreto. Muitas vezes, silencioso. Já até confundido com um poeta. Hoje a sua casa está em festa. Pouca gente. Quem sabe, só a família. É o isolamento deste tempo sombrio.. Édson comemora os oitenta anos. Acho que o seu alter ego vai aparecer. Se tivesse feito o concurso para o Banco do Brasil, como queria seu pai, poucos, quase ninguém, conheceria o seu personagem favorito. Mas, Édson preferiu a poesia do campo no lugar da burocracia bancária. Boa escolha! Perdeu a privacidade e ganhou o mundo. Não o Édson. Ele continua vivendo no seu mundo, protegido como identidade que um dia foi secreta, vivendo a reta final da vida com todas as dores, exatamente igual, aqueles que o tempo envelhece. Tenho dúvidas se o Édson consegui ser Èdson em algum momento. Deve ser muito difícil ser Édson quando se foi Pelé. Ele é um homem como eu, você, quem lê, se é que alguém vai ler, este texto é de carne, osso, mortal. Infelizmente, mortal! Enquanto Pelé é infinito. Para sempre!
Pelé era a maior foto na parede do quarto. Aninhado na rede do gol mil, beijando o santo graal dos tempos moderno. Acordava e olhava Pelé. Reverenciava a tanto Pelé, que não o usava em jogos de botões. Sabia que jamais poderia repetir o seu futebol. Já pensou errar um gol? Chutar a bola longe? Evitei o vexame de Pelé.  No meu mundo do botão, ele não existia. Era o funcionário do Banco do Brasil.
Já contestei a idolatria extrema de Pelé. O fato de ser tratado como insuperável. Um rei único. Insubstituível, me irritava. Qu esporte é este que parou a genialidade no tempo? Achava lenda. E, sei que a lenda é mais mágica que a realidade, então a lenda é cultuada, num ritual de devoção que me intrigava. Mas, de uns tempos para cá, a pandemia, o isolamento, o exílio me provocaram os abalos de minhas certezas. Desiludido com o presente, sem a promessa de futuro, mergulhei no passado. Vi as copas de 58, 62, 70, alguns jogos do santos. Me rendi!  Vi o meu equivocot. Messi é genial. Cruyff foi estupendo. Maradona é próximo de Deus. Mas, GOD is Pelé!, como foi a manchete do Sunday Times! Fui 'devorado' pela lenda. Nunca vi nada igual! Física e poesia. Equilíbrio e versos perfeitos. Extraordinário! Mesmo eu sendo republicano, me considero um súdito deste rei mágico e generoso. Um súdito que tem saudades  dos jogos que não viu de Pelé.
Não ia escrever nada. Quem ama o futebol precisa reverenciar e agradecer. Republico um texto simples, sem brilho, que lembra mais um marcador assustado, do que um lance inesquecível de Pelé.

Pelé. 75!

Mauro Pandolfi

O gol é o melhor momento do futebol? Ou, seria um drible? Uma defesa está fora da escolha? Ou, o gol que não quis acontecer? Não sei! Tenho dúvidas! Vibrei com tudo isto. São imagens que surgem, por insight, na mente. Estão na memória de um menino que brincava com bola. E, de tempos em tempos, revejo em sonhos, numa leitura ou no you tube. O gol da Rua Javari, que ninguém viu, é descrito com requintes de obra de arte. O drible antológico, sem bola, em Mazurkiewsc é um espanto. Impossível! O chute longo, louco, lúcido, do meio do campo, que irritou Gérson e desesperou Viktor, e foi para fora, é mais espetacular do qualquer golaço. A cabeçada certeira, firme, para baixo, como ensinam os manuais, escritos por Pelé, da defesa impossível de Banks. Isto é Pelé. Ele é o futebol! Pelé está de aniversário. Feliz 75!
O futebol é o mais louco dos esportes. E, nem é esporte. É um teatro de grama e paixão. Sempre está mudando o jeito de jogar. Reinventa-se a procura do novo, da surpresa, do imponderável. No entanto, uma coisa é imutável no futebol. Quer irritar uma pessoa do futebol? Questione a realeza de Pelé! Primeiro, único, insubstituível, mágico, deus, mito, atleta do século. Nada é maior que Pelé. Até quem nunca o viu, o defende com ferocidade. Pelé é sinônimo de futebol. Vi muito pouco Pelé ao vivo. Procuro em partidas perdidas no you tube. Era extraordinário! Corpo atlético perfeito. Técnica apurada. Senso de espaço, de colocação. Cerebral nos passes, na antevisão do lance, na vingança as agressões. O drible não era um um devaneio lúdico. Usava como um recurso para o gol. Como dizia meu pai, "um monstro!"
Copa do Mundo. México 70. O auge do futebol brasileiro. O único momento que a mitologia foi real, não a fantasia de uma história oral fascinante. O melhor time de todos os tempos. Uma máquina. A Seleção Brasileira nunca mais foi a mesma. Nem o futebol. Um jogo mágico, revolucionário. Compactada, os setores eram um só. Movimentação, articulação, contra-ataque, troca de passes. Time de craques, de jogadores comuns, comandada por um gênio, Pelé. Nunca mais estes jogadores, nem Pelé, repetiram a performance do México. Viveram, sobreviveram e permanecem na lembrança por aquele futebol extraordinário.
Quem mais foi Pelé? Diego Armando Maradona é o mito de minha geração. Vi ao vivo. Vi garoto, vi no auge, vi na decadência. Habilidoso demais! A bola era um extensão de seu corpo. Genial e genioso. É mais Garrincha que Pelé. É um outsider, um 'marginal', um rebelde, contestador. Maradona é poesia. Pelé é prosa. Johan Cruyff era a expansão do jogo de Pelé. Tornou o campo redondo e deixou o futebol mais simples, inventivo e complexo. Há outros tantos. Mas, o tempo foi passando e ficaram apenas na lembranças de seus torcedores.
Ninguém é tão Pelé como Lionel Messi. São parecidos em quase tudo. Gostam de vitórias, de gols, de títulos. Olho a tevê. Vejo o gol de Messi. No you tube, procuro Pelé. Vejo um gol. O lance é quase uma cópia. Arrancada pelo meio, passando pelos zagueiros, tabelando com o avante, recebendo na frente, fuzilando um goleiro indefeso. Dribles curtos, longos. Chutes precisos. Messi é Pelé. Estou vendo a rejeição da comparação. Uma pequena vaia no fundo da sala. Faz parte do jogo, da crônica.
Sujeito estranho este Pelé. Não o via como uma pessoa. Era um mito, um ídolo, um santo. A foto de Pelé era a maior do meu quarto em Lages lá por 73. Pelé aninhado na rede, beijando a bola num ato de amor. Cena do gol mil. O poster dividia a parede com vários outros deuses pops. A sua direita, um seio da bela morena Nídia de Paula escapava do biquini. À esquerda, o olhar melancólico de John Lennon era a minha inspiração para as redações da escola. Um maluco matou os sonhos de John. Nídia desapareceu sem deixar pistas e Pelé continua eterno.

domingo, 18 de outubro de 2020

Memórias...(13)

 


"O mistério da Santíssima Trindade cristã é o mistério do amor divino. Você vê a Santíssima Trindade, se você vê o amor".

A definição de Santo Agostinho baliza, também, a Santíssima Trindade da bola. Se você vê poesia na bola, você entende Pelé, Maradona e Garrincha. 


Mauro Pandolfi

Nas despedidas, a mãe me acaricia, beija o rosto, me abençoa e, geralmente, diz: 'confie na Santíssima Trindade'. Rio, agradeço, devolvo o beijo e o carinho, repito sempre: 'confio demais!' É a vez dela sorrir. Acho que sabe de que Santíssima Trindade eu falo. Ainda não sei quem é quem. Desconfio que Pelé é o Pai. Afinal, nem um ateu contesta a divindade, o olhar superior, o que flana sobre tudo. Já Diego é o filho. O 'rebelde' que desperta tantas paixões, como ódios acumulados. O que desafina o coro dos contentes, o crítico dos poderosos, imolado, crucificado tantas vezes, ressuscitou todas. Nenhum deles foi tão desesperadamente humano. O que foi tentado, sucumbiu, ressurgiu. Já Manoel, o Mané! é o mais etéreos dos divinos. O mais belo, o mais triste, o mais esquecido. O que não resistiu ao mundo visível. Nem no desprezo trataram como um homem. Até na dor exigiram o seu balé. Sempre o enxergaram como um 'Anjo de pernas tortas'. Quando vejo um pássaro lenbro de Mané. Certamente, preferiu 'reencarnar' um pássaro. Tomara que não esteja trancado numa gaiola cono o 'trancaram' como homem. Outubro é o mês deles. Como é o de minha mãe. As paixões estão sempre próximas.

No silêncio do quarto percebi que estou encurralado. Nos meus medos e na sobrevivência, pelos olhares aflitos de meus filhos com a vida cortada no início dela. Sem escolas, sem amigos, saídas fugazes. Todos os sonhos adiados. Embalam seus dias com filmes, séries, jogos. Relaxo quando escuto os risos, os gritos de vitória. A vida pede, às vezes, exageradamente, resiliência. Para escapar do encurralamento procuro uma poesia, sobre o nada que reflete o tudo, de Chiko Kuneski e os jogos perdidos  de Pelé, Maradona e Garrincha. Algumas vezes, no you tube. A maioria na memória.

No domingo preguiçoso, olhando a vida pela janela, não escrevo, uso a 'memória'  para reverenciar a Santíssima Trindade.

Ando com saudade do beijo, do carinho da benção, do conselho da mãe. Saudade de um belo domingo com todos.


Santíssima trindade de outubro

 


"Se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola"

A elegia de Armando Nogueira serve, também, para Garrincha, Maradona, Didi, Sivori, Falcão, Kopa. Gênios que nasceram neste mês. E, para Messi, que se nasceu em junho, foi 'fabricado' em outubro.


Mauro Pandolfi


A cor de outubro é rosa. A imagem é a bola. Não há nada tão perfeito como a bola. Não há lado, nem ângulos, nem arestas. Há o objeto que flutua entre o sonho e a poesia. A bola que rola macia, suave, rápida nos pés de gênios, magos, artistas que nasceram em outubro. Craques que acariciavam a bola como Didi. Ou, desfilavam a elegância com ela grudada no pé feito Falcão. Insinuante, ligeiros, fascinados pelo gol como Kopa e Sivori. Mas, é num trio que o futebol se explica, apaixona, encanta, dilacera, torna-se religião, literatura, arte. Pelé, Garrincha e Maradona. Sete dias em que a estrela brilhante no céu era uma bola. Pelé é do dia 23; Garrincha, de 28 e Maradona, dia 30.  A Santíssima Trindade! Os três poderiam ter nascido bola. Deram vida a bola. Tornaram a bola o Santo Graal dos tempos modernos.

Pelé! O nome que não precisa de adjetivo. É um adjetivo! Basta citar...Pelé! Você já sabe do que se refere. Ele não inventou o futebol. Nem a bola. Mas, virou símbolo, referência, sinônimo. Pelé é um nobre. Um rei coroado algumas vezes. A primeira, aos 18 anos, em 1958. A última, hoje 23 de outubro, dias dos seus 75 anos. Foi lembrado, muito pouco, quase nada, por alguns jornalistas, amantes do futebol e pelos torcedores do Santos. E foi chamado de Rei Pelé! Ele é um mito! Mitologia não se explica. É, e pronto! Édson Arantes do Nascimento nunca conseguiu ser um cidadão comum. Pelé nunca deixou. Pelé jogava feito prosa. Do passe medido, da tabela, do gol, do pulo com o punho cerrado, socando o ar. É a melhor frase do futebol!

Vi um só jogo de Mané Garrincha. O último! O da despedida com a camisa da seleção contra o time de estrangeiros que jogavam no Brasil. Foi em 73. Verdes anos, pouca coisa para contar, muitas para sonhar. Lembro do lance. Garrincha parado. Corpo arqueado, nada que lembrasse um atleta. A bola presa no seu pé. Negaceou. Foi e voltou. O uruguaio Bunuel foi. Na volta, virou mais um João. A bola passou entre as pernas. As 150 mil pessoas vibraram com o drible derradeiro de Garrincha com a camisa da seleção. Aliás, com Pelé e Garrincha em campo, o Brasil nunca perdeu. Garrincha é um poeta. O homem que sucumbiu as tentações, ao amor e a paixão. Garrincha é o maior fantasma do futebol. Esta sempre presente num campo. Está no desejo do torcedor, na saudade de um velho amante da bola, num drible, num passe cruzado, num corte, no chute certeiro...na ausência da alegria. Todo jogo burocrático, sem graça, sem alma é uma outra morte do Mané.

Diego Armando Maradona! Eu não era mais um garoto. Já tinha escapado no exército, de Brasília. em 79 Vi pela primeira vez um jogo de Maradona. Um amistoso contra Alemanha. Não lembro resultado, nem vou pesquisar no google. Há um lance que de tempos em tempos relembro. Em todos os jogos que joguei tentei repetir. Belo demais! Alguns fiascos. Quando deu certo, virou gol. O lance é magia pura. Bola lançada pela direita. Longa, quase escapando. Maradona domina. Cercado, da dois passos em direção à linha de fundo. E, de letra, com o pé esquerdo, passando por trás do direito, cruzou. Os alemães ficaram atônitos e Ramón Diaz perdeu o gol. Nunca mais perdi Maradona de vista. Acompanhei a sua carreira, a glória, a tragédia pessoal, os equívocos, os acertos, a canonização, a humanização. Maradona tem algo de Pelé e muito de Mané. Que falta faz!

O dia da poesia, 31, fecha o mês dos ilusionistas da bola que poderia ser definido assim: "Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma" (pequeno verso de Carlos Drummond de Andrade também de outubro, uma espécie de Pelé, ou seria Mané, ou quem sabe Maradona, entre os poetas?).