domingo, 18 de julho de 2021

Gigantes

 


"Eles são personagens de nossas vidas. Os que vimos foram nossos heróis. Os que não vimos jogar fazem parte de uma história compartilhada, de um passado comum a toda irmandade do futebol, não importa a idade".
Mais do que craques de uma história fantástica, os 'gigantes' são personagens do teatro de grama e paixão construída com lirismo, seja pelo autor da frase, Luís Fernando Veríssimo, ou por João Máximo e Marcos de Castro, dois esgrimistas das palavras,  que reverenciam os semideuses de uma mitologia fascinante. Ora, heróis; ora, trágicos.

Mauro Antônio Pandolfi

Ir caminhando ao trabalho tem suas vantagens. Uma delas, é a saúde. O corpo precisa de movimento, de exercício, de suor. A outra, é passar por ruas pouco, ou quase nunca, percorridas de carro ou de ônibus. A cidade se abre, se descortina, se revela, se desnuda. As suas ruas e seus moradores mostram a trágica vida brasileira, a miséria ampliada pelo vírus, pelo verme. Mas, há também as vitrines e suas ilusões. Seja um doce, um celular, uma calça desbotada em um brechó, um restaurante à quilo, um boteco onde o tempo não tem pressa. Foi na vitrine de um sebo que vi um 'tesouro'. Um livro que povoou o meu imaginário de menino apaixonado pelo futebol. O livro falado na Placar, nos comentários de jornais ou nas jornadas esportivas dos rádios. 'Gigantes do Futebol Brasileiro', de dois amantes da bola, que ao contrário dos jornalistas esportivos - loucos por resultado - olhavam o futebol como poesia. Quem sabe, João Máximo e Marcos de Castro não soubessem driblar, nem chutar ou tabelar. Mas, com as mãos inventaram a genialidade dos deuses mágicos que habitam, flutuam, tornam-se divinos nos templos sagrados do futebol. Eternos!
Gosto de almanaques. Destes que tem verbetes. Leio aos pedaços, sem ordem. Vou escolhendo, nem sempre ao acaso. A gênese do futebol brasileiro está neste livro. Se você procura sabedoria, ela está em Domingos da Guia. Ele tornou o defensor um deus. Alguém que amava a bola como um meia. Se deseja ousadia e rebeldia tática, há Fausto. Há o início de tudo com Frienderich, o primeiro Pelé! A sequência com Tim, o mais extraordinário estrategista, com Romeu, o que nunca errava um passe e a exuberância do diamante negro. O magnífico Lêonidas da Silva que transformou a referência em uma marca. Textos poéticos, deliciosos, como era belo o futebol que nunca vi. Entendi a perfeição do prefácio de Luís Fernando Veríssimo. Não é somente grama neste teatro. Tem a paixão, a vida, destes personagens, ora heróis, ora dramáticos. Demasiadamente, humanos.
Tenho mania de dividir os almanaques em blocos. O segundo é o meu preferido. É o período que gostaria de viajar no tempo e viver num estádio. Aqui se constrói o conceito do futebol brasileiro, o lendário jogo perfeito dos craques. Entendi o fascínio de meu pai com Heleno de Freitas. O mais dramático personagem do teatro de grama e paixão. O que explodia em talento e raiva. Há o craque de Pelé, Zizinho. Se Pelé o elege, nada mais precisa ser dito. Um velho amigo, marinheiro de tantos portos, o considerava melhor que Pelé. Ele ia ao Maracanã para ver o mestre Ziza. O príncipe Danilo e seu jogo vistoso e o goleador Ademir, vivo, arisco, como um poema de João Cabral de Melo Neto completam o bloco. Vejo este quatrilho no meu 'campo dos sonhos'.
No terceiro bloco do livro, a arte se transforma em futebol. É a mais perfeita tradução da mitologia inventada por alguém que dormia com a bola. Seja como carinho, seja como lascívia. Amantes inseparáveis. Uma geração que nunca mais se repetiu. Tornaram o futebol brasileiro uma fantasia, um imaginário que acreditou nascer em cada esquina um craque, uma sofisticação de uma era dourada, de Brasil moderno, do Cinema Novo, da Bossa Nova, dos cinquenta anos em cinco. Um tempo que foi muito rápido. E, intenso!
Nilton Santos tornava o futebol simples, fácil, mágico. Didi inventava lances, ousadia, sem perder a elegância de um dândi. Gérson media o passe com a precisão de um matemático. Calculava o peso, a força, a velocidade como físico. Porém, o passe era de poeta. Rivelino era a fúria sem os dramas de Heleno. A potência de uma bomba. Meu favorito é Tostão. Fino, delicado, sublime, flutuava pelo ataque. Ninguém foi tão Cruyff como ele. Ou, será que, Cruyff foi um Tostão europeu? Eu era menino, tinha o álbum de figurinhas, não perdia uma partida no rádio ou na tevê, e só depois de adulto entendi o que assisti. Não eram partidas de futebol. Eram concertos, shows. Espetáculos que mato as saudade num vídeo do you tube. Há Pelé e Garrincha neste bloco. Basta dizer Pelé e Garrincha. Nada mais. Tudo já é explicado.
O último bloco é o reencontro com jeito brasileiro de brincar e os sobreviventes desta brincadeira. Os autores citam Falcão e Zico. Nunca houve um volante como Falcão. Ele é a soma de Fausto, Danilo e Gérson. Elegante, altivo, preciso. Tão genial que uma bola só não cabia em seu talento. Ganhou o apelido de 'bola-bola'. Assim explicava melhor a intimidade com ela. E, o que dizer de Zico? O Maracanã não era só o seu campinho particular. Era a sua academia, sua biblioteca, seu museu. Há inúmeras obras de arte que numa visita no Maracanã é possível ver, rever. Basta apenas fechar os olhos, deixar a poesia levar. Ou, no you tube, se você for cético, assistir as maravilhas do 'galinho de Quintino'.
Ao folhar o livro, notei que as páginas sobre Romário e Ronaldo estão de cabeça para baixo. Defeito de impressão ou ato falho? São sobreviventes de um tempo árido, onde o gol foi um detalhe. Cada um, ao seu modo, ganhou o mundo. Um rápido; outro, cerebral. Um mágico na pequena área; outro dono do campo inteiro. Os herdeiros de um jeito de jogar que nunca vai desaparecer. Um menino, uma menina, uma bola, uma paixão. Aí, sobrevive o futebol brasileiro.
O livro é ótimo e apaixonante. Mas, fiquei frustrado. Há os deuses de uma mitologia, de uma história que é de todos nós. Não só dos craques. Fizemos parte desta história. Sofremos, choramos, vibramos com eles. Fomos para as ruas, soltamos fogos, nos reconhecemos neles. Eu sinto a falta de dois craques que ajudaram a me forjar como torcedor, homem, brasileiro. Dois gênios que comemoravam gols com o mesmo gesto. O braço erguido, o olhar feliz. Contestadores e sonhadores. Desafiaram a ditadura e pensaram num outro país possível. Um foi Rei de uma nação. Outro foi o filósofo que inspirou a Democracia de outro povo. Reinaldo foi o mais soberbo centroavante da história. Para ser Reinaldo, tem que juntar Careca, Romário e Ronaldo. Ele é os três em um só. Nunca vi alguém como Sócrates. Inteligência apurada, um toque sutil, de calcanhar, grandeza e ética.  Uma lágrima escapou ao lembrar deles.
Esta edição é 2011. Há alguém deste tempo, caso tenha uma terceira edição, entraria no livro? Há um só candidato: Neymar. Tem as 'asas na chuteiras' - expressão de Chiko Kuneski - que uso indevidamente para falar de Neymar. Tem o talento destes 'deuses'. Não tem o caráter do jogo. Nem fora dele. Não tem a alma de um menino que brinca com a bola. Tem a boçalidade de 'quem é o dono da bola'. Tem a estupidez típica deste tempo sombrio. Neymar será somente mais um perdido na multidão do estádio. Que pena!
Ir caminhando ao trabalho tem suas desvantagens. Há o cansaço, o suor, o risco de atravessar a faixa de segurança e encontrar um motorista que vê a vida como um beque de roça.