quarta-feira, 19 de maio de 2021

O Maquinista da poesia

 

 

"Prezado amigo Afonsinho. Eu continuo aqui mesmo. Aperfeiçoando o imperfeito. Dando um tempo, dando um jeito. Desprezando a perfeição..."
Poucos cantaram tão bem o futebol, a rebeldia, a paixão como Gilberto Gil. Dois ídolos que já foram posters no meu quarto e hoje habitam as memórias que guardo, sei de cor e amenizam o exílio forçado.

Mauro Antônio Pandolfi

Nei e Afonsinho. Aprendi este verso no jogo de botão que comprei, no Bazar Almirante Soares, em Lages lá por 1969. Era só um menino que amava o futebol, o Inter de Lages, o Grêmio e o Botafogo, exatamente nesta ordem. Junto veio o Flamengo. Uma 'dura conquista' de meses, guardando as moedas que ganhava ao ir no armazém e na padaria. Valeu a pena aqueles meses de sonhos. Meus primeiros times, oficiais, de botão. Já estava cansado das 'improvisações'. Eram tão espetaculares que vinham com a foto dos jogadores. Depois vieram outros times, outros modelos de botões, com a Placar criei novos esquadrões, bolei campeonatos, vivi uma infância que inventou a paixão pelo futebol. A lágrima que caiu no teclado é só a saudade do Maurinho. Nada mais.
Esta poesia nunca esqueci. Do verso que começa torto com Cao. Continua sem ritmo com Moreira, Chiquinho, Leonidas e Valtencir. Nei e Afonsinho é um primor. Preciso e quase perfeito. O êxtase desta poesia tem a sonoridade que poucas tem no futebol daqui: Rogério, Jairzinho, Roberto e Paulo César. Tão sublime verso que povoa os meus sonhos infantis até hoje. Quase nada lembro daquele Flamengo. Não há poesia em Doval, Bianchini, Dionísio e Rodrigues Neto. Tenho dúvida se algum rubronegro declama cheio de saudades estes versos..
Descobri quem era Afonsinho na música de Gilberto Gil. Nunca foi Pelé e nem se aproximou de Tostão. Eu tinha uma pequena foto dele na parede de meu quarto, a contracapa da Placar. Já amava os Beatles e os Rolling Stones - mas 'arrastava a asa' por Suzy Quatro -, além da Placar, lia a Pop, a revista de rock, cinema, quadrinhos, artes. Lá conheci Jards Macalé, a Mafalda e um diretor de cinema chamado Pier Paolo Pasolini, um italiano que dizia que 'futebol brasileiro era poesia, o restante era prosa'. A Pop revelou a rebedia de Afonsinho. Se recusou a cortar a barba, o cabelo, berrou por liberdade no futebol e foi proscrito dos grandes clubes. Um rebelde como aqueles que o Maurinho sempre adorou. Seja como adolescente, jovem ou velho, que tenta fugir da senilidade, seguindo ainda uma rebeldia perdida no tempo. 'Ay que endurecer, pero...'
Uma outra poesia descobri cortando as fotografias da Placar. O fantástico time do Olaria, que fez eu pintar, de azul parte dos botões brancos. É outra poesia encantada, que gosto de recitar. Pedro Paulo; Haroldo, Altivo, Miguel e Alfinete; Roberto Pinto e Afonsinho; Osni, Antoninho, Luís Carlos e Salvador (se a memória não me traiu, era assim a bela canção da Rua Bariri). Foi o 'castigo' para o idealista Afonsinho. O jovem estudante de Medicina, que lutou pelos direitos dos jogadores, nunca foi o que prometia como um craque no meio-campo. O reacionarismo do futebol brasileiro cortou os seus desejos, minando seu imenso talento criativo.
Hoje, é ainda, um subversivo, um 'rebelde'. Afonsinho é o criador de um time chamado de 'O Trem da Alegria'. Nos anos setenta e oitenta oferecia uma saída aos desempregados - como ele - do futebol. E, nestes tempos sombrios, sobrevive e ainda joga as suas peladas em algum campo dos sonhos. No canal do you tube Museu da Pelada reencontrei Afonsinho. Barba e cabelos brancos, o olhar melancólico de sempre, o doce sorriso ao explicar a sua missão como 'maquinista' do trem': "Estou em busca da poesia perdida do futebol!" O idealismo nunca morre para um sonhador. Nem a rebeldia.