quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Memórias...(14)

 

 

"Nunca vi coisa igual! Nunca vi coisa igual!
O espanto foi do lendário Ruy Carlos Ostermannm, o comentarista que sempre tratou o futebol como uma epopéia poética e analisava, cada lance, cada jogada, a dinâmica do jogo, com a profundidade de um filósofo.

Mauro Pandolfi

Poesia no futebol não é apenas o drible estético. Nem o passe métrico como um soneto. A poesia vai além da beleza pela beleza, do estilo pelo estilo, do devaneio pelo fetiche da arte. A poesia transforma o grito, a indignição, a fúria, em uma narrativa épica, gigante, imensa, indescritível. Assim foi a Batalha dos Aflitos. Nem o tempo diminuiu o fascínio deste jogo. O jogo mais inesquecível para os gremistas. Há 15 anos sofri, chorei. Mas, como um certo Roberto repete sempre, 'o importante foi que emoções, eu vivi!' As cenas se repetem feito um vídeoteipe na memória.
E, como foi emocionante! Assombroso! Não foi o melhor jogo que vi do Grêmio. Muito longe disto. Nem o mais importante. Renato comandou o mais relevante de todos numa madrugada de Tóquio. Porém, é o o que mais lembro. Já contei a história, feito um velho tio, inúmeras vezes para os meus sobrinhos, para os filhos dos amigos, para os meus. Hoje, 15 anos depois, André e Pedro lembraram de cenas, de palavras, de cantos, das lágrimas, da festa, da alegria. E, eles não ligam para o futebol. No entanto, a Batalha dos Aflitos, a emoção dos pais (Elaine chegou a chorar e borrar a maquiagem para o casamento da Ellis e do Guido) e dos tios, deixou marcas no coração, na alma, na história de nossas vivências e na memória afetiva.
É, provavelmente, a última memória que publico no blog neste ano. Deixei para o fim a Batalha dos Aflitos. Uma das maneiras de perpetuar algo é sempre contá-lo. Nunca como farsa. Sempre como epopéia. Eis a epopéia maior dos gremistas. Ah, parabéns a Ellis e o Guido pelos quinze anos de casados. Escolheram a melhor data possível para celebrar e comemorar um casamento. Um dia de batalha...


Dez anos!


Mauro Pandolfi

Impossível! O substantivo masculino do imponderável se transmutou em um outro extraordinário: Inacreditável! Há dez anos, um guri de 17 anos provocou esta mudança no léxico.  Anderson andou, flutuou, driblou zagueiros, entrou na área, deslocou o goleiro e transformou um simples gol numa façanha épica, eterna, contada como fantasia em todo mundo da bola. A Batalha dos Aflitos é o momento em que os gremistas descobriram que Cândido Dias inventou em 15 de setembro de 1903 foi a alma. O futebol é o elo que une as almas negras, azuis e brancas.
71 segundos tem o tempo da magia. Do pênalti defendido por Gallato ao gol de Anderson. Do medo, desespero, desconfiança, vergonha para a alegria, o prazer, a mistificação. Sete homens e um destino. A libertação da dor gremista. A fuga da 'humilhante' segunda divisão. É a grande vitória do Grêmio. Não é a maior. É a   mais impactante. O título é irrelevante, até desnecessário. A conquista é fantástica, mítica. É a nossa glória. A imortalidade cantada no hino é materializada.  Esta Batalha é o maior drama contado no teatro de grama e paixão.
Mas, é também a marca da nossa 'tragédia'. Somos reféns do feito. Esperamos sempre que se repita. Um lance, um pensamento mágico nos libertará, outra vez. O meu amigo Rai Carlos, o vidente cego, afirma que o Grêmio voltará a ganhar títulos quando deixar de ser imortal. "O novo só vem quando o velho vai embora. Para renascer, tem de morrer. O imortal é eterno. Vive dos feitos antigos. Só com fim do Olímpico e a Batalha dos Aflitos se tornar somente história, seremos campeões", afirma. Como um feito deste não ser eterno? Impossível! Inacreditável torná-lo algo mortal!.
Era sábado. Quente, muito quente, infernal. Fim do sufoco. Liberdade! A volta! O dia do casamento da Ellis e do Guido. Era o padrinho. O terno já estava separado. O jogo corria forte. Pedro e André, pequenos, saudades daqueles dias!, assistiam comigo. A Elaine estava se arrumando. Bisbilhotava sorrateira os lances. "Quanto tá?", perguntava. Veio a confusão. Parei. Um expulso. 'Meu Deus', exclamei. O pênalti. A segunda expulsão. 'Ferrou!', falei. A terceira expulsão. "Calma, pai!", diz o André. A quarta. 'PQP!', berrei. A Elaine veio até a sala. "O que foi?", quis saber. Contei. O pênalti vai ser batido. Silêncio. O jogador corre, bate, Gallato ... defende!!!. Vibramos! Nem deu tempo de gritar. Anderson está dentro da área....é golll! Pulamos, gritamos, saltamos, nos abraçamos. As lágrimas escapam. "Vou estragar a maquiagem", choramingava a Elaine. O bom senso dela não deixou eu ir ao casamento com a camisa do Grêmio. Lá, encontro o Márcio e o Mário. Abraçados, cantamos o hino. O dia de futebol mais emocionante de nossas vidas. Nada será maior.
Dez anos! O tempo passou. Vivemos tantas coisas. André e Pedro são adolescentes. Não gostam de futebol. A Elaine continua bonita. O Mário, o Márcio e eu ainda nos encantamos com o futebol, nem tanto com o Grêmio. A bola ainda me seduz. Vibro, suspiro pela bola bem tratada, bem jogada. Um belo jogo de futebol é uma das melhores aventuras da vida. No entanto, quando escuto o nome A Batalha dos Aflitos o coração dispara, aflige, machuca. Me sinto mais torcedor, amante tricolor, um imortal. Eu sou um highlander gremista. "Até a pé nós iremos......"!

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Gaia bola

 

"A vida necessita de ilusões...então, para viver, necessitamos de arte a cada momento".
Desconfio que Friederich Nietzsche treinou algum time alemão ou escreveu algum texto sobre futebol. Entendeu, como poucos, a função da arte e do imaginário no teatro de grama e paixão.

Mauro Pandolfi

O futebol é imaginário! A realidade é uma ilusão de ótica. A poesia é mais encantadora que a técnica. É mais apaixonante! Transforma em vida aqueles gritos de festa, de desespero, de chamada para a luta. A prosa sobrepõe a tática. Quebra a estratégia de um pensar com seu jogo encandeado, organizados em parágrafos, cerebrais ou intuitivos, mais poderosos que uma solidez defensiva. O drible, aquele dado por quem tem 'asas na chuteira' - o grande achado poético de Chiko Kuneski -,  não é um jogo de corpo para enganar o adversário. É um passo de uma dança, um balé requintado, tão surpreendente, tão envolvente, como se fosse uma metáfora de uma reflexão filosófica sobre ética e moral. O passe é um discurso silencioso mais eloquente do que o mais sagaz dos políticos. Há tempos que o futebol deixou de ser uma disputa tribal. A arena lembra mais um teatro de grama e paixão, onde a vida é encenada, como um espelho. O futebol é o mais espetacular engano da  vida. Quando o futebol perde o imaginário, ele se torna o mais lúdico e triste olhar da realidade.
O futebol de agora é real! Duro, seco, previsível. Não há mais poesia e nem prosa. O teatro de grama e paixão ficou vazio. Assim, como o jogo. Não foi a pandemia que destruiu a beleza da jogo. Ela, a pandemia, ressaltou o passado que desfilou dias e dias nas tevês cheia de ilusões, de farsas, de histórias, de heróis e semideuses. Foi a volta do futebol que aniquilou o imaginário. O futebol ficou mais burocrático, sem alma. Virou um evento chato, frívolo, muitas vezes, insuportável. Não há o grito que inventa vitórias e impede derrotas. Não há mais o canto que transforma o homem comum num 'superhomem' para nos redimir de nossos fracassos. Estamos vendo 'o crepúsculo dos deuses', onde Leonel Messi perdeu a divindade, assim com Pep Guardiola e Jurgen Klopp. Os grandes times pré pandemia se desmoronam jogo a jogo, tornando-se saudades. A solidez desmanchou no ar. Só Cristiano Ronaldo sobrevive. Mas, sempre duvidei que fosse humano.
Gosto de escalações. São poesias declamadas. A última que me doía tanto recitar era: Diego Alves; Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Mari e Filipe Luís; Arão, Gérson, Arrascaeta e Everton Ribeiro; Gabigol e Brino Henrique. Obra de Jesus, o mágico e sedutor. Parecia eterno, para sempre. É para sempre! No imaginário, na paixão de um torcedor. O tempo moveu a ilusão para a realidade. Jesus, depois do terceiro mês, partiu. O encanto foi sumindo, desaparecendo, surge por instantes, só por instantes. assim é o futebol! É efêmero e perene, na doce contradição do viver. Um flamenguista, assim como um gremista saudoso do Grêmio 2017 - já foram os santistas os botafoguense, os vascaínos, os colorados, todos os torcedores que amaram um supertime, esperam sempre o retorno da extrema felicidade vivida. O futebol é imaginário como memória. Só como história! Iguais aquelas contadas nas rodas dos bares, num almoço de domingo, num reencontro de velhos amigos. Era uma vez...
Nem todos os jogos tem noventa minutos. Às vezes, pouco mais de vinte ou dez. Vou desistindo quando a bola não é poética. Quando os passes não tem nexo. Chutados, largados, perdidos. Só Grêmio me mantém até o fim da partida. É o suspiro da paixão. Mas, não sofro mais. Nem grito gol com a fúria saindo das entranhas. Vejo por esperança, por desejo, por um drible de Pepê, por um gesto elegante de Jean Pierre, por reconectar com o Maurinho e o Vermelhão, por, ainda, amar o futebol.