domingo, 17 de maio de 2020

Memórias...(8)


"A arte, seja escrever, ler, pintar, desenhar, é o exercício, a terapia, a saúde mental..."
A frase do ator francês, François Perrot, mostra que arte é um alívio para a alma. Uso os textos, longe de ser arte, como terapia, um exercício para sobrevivência.

Mauro Pandolfi

No silêncio da quarentena, na escuridão do quarto, Elis cantando baixinho, faço a minha terapia diária, um quase acerto de contas. Do que foi e do que poderia ter sido. Do sonhado e do imaginado. Do valioso, precioso, do comum, do repetitivo, da eterna poesia circular do cotidiano, da poesia encantada nos olhares da amada. O espelho do quarto, na penumbra, reflete a minha imagem. Um pouco sombria, pela falta de luz, um pouco pelos olhos 'degenerados' pela mácula estropiada. A reflexão me faz ficar nu. Esqueço, como é difícil?, as emoções. Sobram apenas os sentimentos. Revejo a vida. Olho no fundo do coração e faço o inventário. Busco o todo. Disseco, sem paixão, as entranhas das relações amorosas. Das platônicas, das rápidas, das desejadas. Tento descobrir se foram perigosas ou amorosas demais. Ou, de menos! Aos sessenta, na reta final da vida, sou somente dúvidas. Nenhuma certeza. Melancólico, reflito sobre as escolhas recolhidas pelos caminhos. Foram as melhores escolhas? Foram! São as que escolhi. Outras escolhas? Não há como saber o que me tornaria. A saída de Lages, aos 15 anos, durante muito tempo, me pareceu apressada, equivocada. Agora, no hoje, na dureza da vida e do entendimento sobre a vida, considero vital, necessária, fundamental, para formação como pessoa mais solidária. Lages é uma saudade gostosa. Só saudade! Não sei se outras escolhas evitariam as 'minhas derrotas'. Derrotas? Chegar até aqui talvez seja uma vitória. Na pior das hipóteses, um empate.
Sou Fernando Pessoa ao admitir que a 'vida vale a pena'. Bem vivida. Ora, emocionante, como um grito de gol. Ora, corriqueira, como o gol perdido.  Vida sempre cercado de bons amigos, de uma família maravilhosa, de chegadas e partidas. de alegria e tristeza, como a vida de todos. O futebol baliza a minha vida e o 'crônicas' é a terapia favorita. E, já que citei lages, republico um texto sobre este tempo.

Reflexões sem dor

"Infância - A vida em tecnicolor.
Velhice - A vida em preto-e-branco".
A singela poética de Mário Quintana pode ser verdadeira. Mas, espero que a minha velhice seja tão bela como 'Asas do Desejo', o sonho em preto e branco.

Mauro Pandolfi

Foi lá por 1974, num sábado, após o cinema no Tamoio, noite de Trinity, fomos na Petisqueira, que ficava na frente do cinema. Era o sinal de fim de noite. Para encerrar, pastelão com vitamina de abacate. Éramos quatro. Bolacha, Carlinhos, Abel e eu. Conversas longas, alguns sonhos, muitos desejos. Futebol era o papo principal. O nosso jogo da tarde, do Inter no domingo e a ilusão de ser jogador de futebol. Apenas o Carlinhos não queria. Pensava em engenharia. Perto da meia noite fomos para casa. Morávamos todos na mesma rua. E, pela primeira e última vez, falamos da velhice. Como seríamos velhos? Fim do futebol? Eu disse que não imaginava ficar sem jogar bola. Planejamos até uma partido quando chegássemos aos 60 anos. Vou fazer 59 anos, esta semana, há 16 anos que não sei o que é correr, ou ficar parado, num campo de futebol. Como nunca mais falei com eles, o jogo ficará apenas no sonho. Melhor assim! A imagem que ficará em suas lembranças será a do Maurinho. Exatamente, como guardo eles na memória, jovens e hábeis com a bola no pé.
O futebol é o elo com a infância e a adolescência. É a minha religião, a auto ajuda nos momento de tristezas, de incertezas e de saudades. Ás vezes, gosto de um jogador por lembrar aquele tempo. Luan, do Grêmio, é um deles. Parece um romântico com seu toque sutil, sua elegante movimentação, sua 'lentidão' mentirosa. Viajo no tempo e revejo jogadores como ele. Não é uma comparação de qualidade. É a poética do jogo. Há algo de Ademir da Guia em Luan. A passada larga, a genialidade, o entendimento de espaço e tempo. Também, uma certa tristeza no olhar. Parecem distantes, eremitas, saudosos de algo. Um time de Guardiola também me lembra Lages. Aí, a memória é afetiva, ingênua, graciosa. Os meninos da rua Irma Laurinda pareciam ser treinador por Guardiola. Ávidos pela bola, pela parceria reverenciada nos passes, pelo prazer de brincar, pelo desejo do drible e do gol. Poxa! Fiquei com saudade! A vida foi tão rápida, apressada, marcante, sofrida, alegre, bem vivida. Porém, aquele tempo, poderia ter durado mais. Ou, por magia, por instantes, voltar!
Vi o futebol de dentro. Por um breve tempo fui jornalista esportivo. Quando fui contrado pelo Diário Catarinense, vibrei. 'Vão me pagar por aquilo que faço de graça?', exultei com toda inocência até descobrir que tudo era muito maior do que ver, escrever, analisar, conversar sobre uma partida de futebol. E, foi o futebol que me causou a primeira decepção no jornalismo. Fui demitido porque me recusei fazer uma matéria. O assunto,  a abordagem feria a minha ética, meus princípios, meus conceitos. Parecia o fim de duas paixões: uma terminou, o jornalismo; a outra, o futebol, recuperei com o tempo. Como ficar longe da bola, de 'uma religião', dos deuses, do Grêmio? Quando Chiko Kuneski me convidou para fazer este blog,  fiquei em dúvida. Voltar a escrever e sobre futebol? Há três anos que o blog é a minha sessão de análise, a minha louca terapia, onde mostro o meu pensar, revelo as minha angústias, e, até, os 'monstros' - às, vezes, escapam - que ficam encastelados do lado da alma.
Aquele sábado, descobri muito tempo depois, foi a despedida da infância. No seguinte fomos numa 'festinha' - uma espécie de balada, geralmente, na casa de uma menina - de uma amiga do Bolacha. Teve um pouco de tudo. Dança, 'resenha', bebida, uma mão mais atrevida e muita diversão. Voltamos juntos para casa. O pastelão com vitamina ficou para os domingos, depois dos jogos do futebol da tarde. Os sábados pediam outros embalos que foram até julho de 1975. Quando numa noite de domingo, vi pela última vez, meus amigos subindo e desaparecendo na escuridão. Às vezes, revejo esta cena num sonho, numa tarde de chuva ou num momento de solidão.



sexta-feira, 8 de maio de 2020

Memórias...(7)

 

"O sol já se foi, agora só nos resta as memórias daquela luz".
Lembrei da frase de Naruto, um anime que meus filhos assistem, ao lembrar do gol de bicicleta de Pelé em 'Fuga para a Vitória', de John Huston. É o encontro da beleza com a liberdade. Também, é o temor que a liberdade se torne somente a luz que ficou do sol.

Mauro Pandolfi

Há 75 anos o mundo começava a festejar a liberdade. Era o fim da Segunda Guerra na Europa. O terrível vírus tinha uma forma humana, embora chamar Adolf Hitler de humano é um exagero, que destruiu sonhos, matou milhões em nome da estupidez racial, da soberba eugenia e do totalitarismo criminoso, estava derrotado. No Redação Sportv, Ariel Palácios despertou a memória afetiva do futebol que divido em duas: a mágica, triste, fantástica história do Start.  A primeira, a leitura na Placar sobre o Time da Fábrica de Pão. Tinha 14 anos, me emocionei com a história, nunca esqueci. A outra, foi no cinema, já adulto, ao vibrar com o gol de Pelé, a bicicleta mais que perfeita, em A Fuga Para Vitória, o libelo de John Huston. As lágrimas sempre aparecem quando vejo cenas do filme, trechos da reportagem de Placar ou quando é contada com maestria, como fez Ariel Palácios.
Na minha sequencia de memórias, a minha fuga para manter a lucidez, republico o texto que fala do filme, da história, a magia do futebol. Quem sabe, alguém irá ler. Talvez, se emocione.

Fuga para Vitória

"Não temos armas, mas podemos batalhar pela nossa própria vitória no gramado. Vamos jogar com a cor da nossa bandeira, os nazistas vão ver que esta cor não pode ser derrotada."
Declaração de Nikolai Trusevich, lendário goleiro do Dínamo de Kiev nos anos 30, que formou com amigos o fantástico time FC Start. O 'time da padaria', como era chamado, ganhou um campeonato organizados pelos alemães no de 1942. O maior desafio foi no dia 9 de agosto quando venceu a revanche contra o Flakelf, equipe da Luftwaffe, por 5 a 3. Dias depois foram presos num campo de concentração. Alguns foram executados. Os sobreviventes são considerados heróis e o futebol virou símbolo de resistência e liberdade.

Mauro Pandolfi

Quinta à noite. Os dedos ágeis no controle buscam um bom jogo de futebol. Os canais vão passando. Música, séries e os bons meninos da Copa São Paulo. Vi por instantes. Insatisfeito, busco uma reprise de uma grande partida. Encontro um filme. O primeiro 'ator' que ocupa toda a tela é Pelé. Está lá o olhar atilado, o topete, o jeito confiante, a certeza. A câmera procura outros. Vejo Ardiles e Bobby Moore. Ao ver Michael Caine reconheço o filme. 'Fuga para a vitória' tem algumas cenas mais geniais do jogo da bola. O gol de bicicleta de Pelé é mais do que arte. É um gesto de liberdade. A liberdade que a multidão descobre ao final do filme.
 O que mais gosto no filme são as cenas do futebol. É tão difícil reproduzir o instintivo jogo de dribles. Lembro que vibrei com o gol de Pelé. A bicicleta perfeita. O corpo no ar, o giro, a batida seca e forte. Os gritos da multidão e o meu isolado no cinema.  Ouvi risos! A paixão falou mais alto. Quando Michael Moore explica o jogo, o trinitário Luis Fernandes o interrompe. pega o giz e mostra como será o lance. "Eu pego a bola aqui, passo por ele, vou por ali, avanço e faço o gol!'. Na dublagem, fica claro quem é ele, ao terminar dizendo: 'entende!'
Tinha entre treze e catorze anos quando li a matéria na Placar sobre o 'time da fábrica de pão'. Os ousados ucranianos que desafiaram os nazistas e preferiram a morte do que perder a partida. Aquela história sempre me acompanhou. Quando assisti 'Fuga para vitória' chorei. Vi que futebol é mais que um jogo. Um libelo, um desejo de vida. O olhar terno de John Huston com os perdedores tornou o filme, pelo menos para mim, inesquecível. Tempos depois li a frase de Arrigo Sacchi: 'futebol é a coisa mais importantes das coisas sem importância' Será? Acho que o futebol é apenas fundamental.
A fuga estava desenhada para o intervalo. A derrota, os gritos de um estádio, mudaram a decisão dos jogadores. Resolveram encarar o provável destino e mudar o resultado. Quando Sylvester Stallone defende o pênalti, a multidão arrebenta os alambrados, os portões, invade o campo, carrega os jogadores para a liberdade. Futebol é assim. O futebol sempre flerta com a liberdade. Basta ver um menino com uma bola na rua, num campinho, numa praça. Livre e solto. Nada o prende. Só desejo de brincar. O drible é o seu balé. O gol fica eternizado em sua memória.  Peça para um adulto lembrar de sua infância: há sempre um gol nas suas lembranças.

sábado, 2 de maio de 2020

Memórias...(6)


"A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente".
Quase me perdi no 'delírio' de Einstein ao assistir Argentina x Inglaterra da Copa de 1986. Por raros instantes pensei que era outra vez o jovem jornalista que se encantou com Diego Maradona. Logo percebi que sou somente o velho que ainda se encanta com Maradona. Valeu a ilusão perdida do tempo. 

Mauro Pandolfi

Revi o jogo de Diego Maradona quando usou a mão de Deus para enganar os ingleses. Feito um falso pastor usou a divindade em seu benefício. Exatamente igual aos truques dos falsos pastores utilizam para enganar os crédulos ingênuos, os desesperados, os estúpidos e multiplicar as suas fortunas. Maradona é o gênio de minha geração. Inexplicável como uma teoria de tempo e espaço. Parecia perdido em meio a fortaleza de atletas vigorosos, rápidos e obedientes. Rebelde com causa, Maradona demoliu as certezas de um futebol mais do que perfeito. Controlou o tempo e o espaço feito Deus. Fez o milagre ao usar a mão, imperceptível aos olhos dos juízes, inacansável ao olhar do simples mortal. Driblou em linha reta. a bola como parte inseparável do pé, uma esquadra inteira. O exíguo espaço tinha a dimensão do espaço sideral e os segundos da jogada tornaram-se eternidade.
Viajei pela memória. Por instantes, meros instantes, me vi fazendo a crônica do jogo. Era a minha primeira Copa. Foi a única Copa. A vida tem caminhos, atalhos, curvas, precipícios. Nem o futuro, o que é o presente de agora, garante o acerto ou o erro das escolhas. Diego Armando Maradona é a melhor saudade que tenho do futebol quando fui jornalista esportivo. Virou personagem de minhas mal traçadas linhas como escriba deste blog. Escolhi este texto para lembrar a minha ilusão de tempo e espaço. Mas, como todos já sabem, as ilusões estão perdidas. 

Um tango para Diego 

 Mauro Pandolfi

"Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao
No ves que va la luna rodando por callao
Que un corso de astronautas y niños, con un vals
Me baila alrededor. Baila! Veni! Volá!"
"A balada de um louco" de Astor Piazzolla pode ser um tango para Diego.

Maradona e a bola. O futebol sempre foi e será uma fantasia. Ele dá uma media volta e segue a bailar. O canto da torcida lembra uma orquestra executando um tango. Desliza no gramado para o longo caminito. Mano a mano enquadra um rival. A bola é la cumparsita. A esquadra inglesa é envolvida pelos movimentos rápidos e elegantes. Os muchachos acompanham a dança. Vê o zagueiro e arma o gancho. O ultimo movimento é um corte no goleiro.  A bola na rede é o derradeiro verso do tango, berrado em plenos pulmões no estádio Azteca.  Diego Armando Maradona é o tango jogando. Lírico, encantador, dramático.  Aquele gol é arte. Sublime arte. Arte eternizada pelo narrador uruguaio Victor Morales. Ele cantou assim:"....Quero chorar! Deus Santo! Viva o futebol! Golaço...Diegool! ....Maradona é para chorar. Maradona numa corrida memorável. A maior jogada de todos os tempos!....Graças Deus! Pelo futebol! Por Maradona! Por estas lágrimas!..."
Futebol e guerra. O simulacro perfeito. Cores, símbolos, países. O campo e a batalha. O imaginário foi tão real na copa do México em 1986. A Inglaterra humilhara a Argentina nas Malvinas.  O conflito suicida armado por um ditador louco e desesperado. Dor, sangue, lágrimas, jovens mortos. O futebol como revanche. Diego Maradona como o comandante supremo. Liderou a batalha, venceu com fúria. Um gol estupendo e uma falcatrua típica latina.
'La mano de Dios' é a sua obra mais famosa. O lance que faz o transitar em sagrado e o profano. Entre deus e o diabo.  Entre a glória e a desgraça.  Entre a vida e a morte. Maradona é o mais trágico personagem do futebol. Também, o mais genial.
Diego Armando Maradona é a ponta mais aguda do tridente nascido em outubro. Há algo de Pelé, muito de Garrincha. Diego é prosa e poesia. Diego é o futebol. Foi um gênio precoce. Um adolescente atrevido. Um adulto problemático. Um velho a beira loucura. Maradona é um homem complexo. Viveu a lucidez, a glória, a fama, o fundo do poço.  Foi excluído como um pária.  Reintegrado como um Deus. Desafiou a ordem, rebelde que transitou a margem no futebol. Flertou com a máfia, com ditadores, com drogas e com a morte. Maradona é o melhor representante do fim do século xx. O ídolo da minha geração.  Um mito. Uma lenda. Um homem. Tão humano, tão frágil, tão estúpido, tão divino.