domingo, 29 de março de 2015

7 a 2

Mauro Pandolfi

Saiu o segundo gol do Brasil contra a Alemanha. E foi de Dilma Roussef.

Poxa! Quem diria! A presidente encurralada, driblou por instantes o cerco, e assinou uma medida provisória que poderá mudar o futebol brasileiro. Os clubes terão vantagens no pagamento de dívidas com a União e o fisco. As contrapartidas, se forem cumpridas, é que modificarão a história.  Acabarão os donos do poder, as capitanias e os feudos. Os coronéis e os caudilhos sairão de cena. Sairão mesmo? Delfim de Pádua Peixoto será só um retrato na parede. E, não haverá saudades.

Lamento que a medida não seja radical e extermine a cbf e as federações. Há uma brecha para a criação de ligas. Dependerá dos clubes. Chegou o momento do futebol profissional sair do campo e invadir os castelos dos cartolas. A partida nem começou. Os adversários são caneludos, traiçoeiros, 'picaretas' e 'achacadores'. 

O futebol brasileiro vive de fases. Começou no social, na urbanização das cidades. Os bairros surgiram ao redor do campo de jogo. Os moradores inventaram clubes. Aqui surgem os grandes. Campeonatos citadinos foram disputados e os jogadores eram do bairro, amigos. O amadorismo foi substituído por um profissionalismo chamado de 'marrom', isto é, pagamento por fora.  

O rádio começa se interessar pelos jogos. Eles são transmitidos e tornam-se um vício que nunca terminou. Jornais esportivos são criados e ingressos passam a ser cobrados. Políticos percebem o alcance do esporte. É o tempo de 'governar é construir estradas'. O futebol vira estadual.  Há importação de jogadores, profissionalismo de fato, outra leva de extinção dos clubes. Surgem as federações e os políticos transformam-se em cartolas.  É a segunda fase.

A globalização, dos anos 90 e a deste século, provoca a terceira fase e a quarta: a nacionalização e a internacionalização do futebol. Uma nova onda de extinção voltará aos clubes brasileiros. A terceira fase e quarta fase são a econômica e a financeira. A medida provisória provocará a entrada do futebol como componente de atividade econômica, com regulação, leis, multas, lucros, empregos. Basta o congresso aprovar a medida e a lei ser aplicada.
Porém ..., como fala um célebre filósofo local: "diz pro bonequinho". A medida provisória foi uma promessa de Dilma ao Bom Senso.  Neste caso, em quase todos, promessa é dúvida.

De boas intenções, o congresso está cheio. O inferno, também! Dilma está sitiada. O apoio no congresso é um balcão de negócios. Tomara que a medida provisória não se torne instrumento de barganha. Há uma grande chance de ocorrer esta negociata. A esperança, todos sabem, é a última que morre. No Brasil ela é sempre trucidada.

Petistas e tucanos andam de mãos dadas na bancada da bola. São unidos, fortes e contam com apoio da cbf, das federações e dirigentes de clubes. O deputado Vicente Cândido (PT|SP) é o principal articulador da bancada. É o vice da federação paulista e sócio de Marco Polo del Nero, presidente eleito da cbf.  Otávio Leite (PSDB|RJ) e o ex-presidente do Corinthians, Andrés Sanches (PT|SP), íntimo de Lula, são empecilhos para aprovação. Além dos parlamentares, dos cartolas das federações e dos clubes, há jornalistas esportivos contrários a transformação do futebol brasileiro. Eles vivem, e enriquecem, com as maracutaias da bola. No momento da discussão e da votação é a vez de um panelaço. Sei que é difícil pedir para bater as panelas em favor de algo neste país que tenha as digitais de Dilma Roussef.  Mas, já separei uma frigideira.

Mandato curto para os dirigentes, responsabilidade fiscal - mais rígido que o futebol europeu -, proibição de antecipação de receitas da tevê, auditorias anuais, pagamentos das dívidas em longas parcelas, investimento na base e no futebol feminino e rebaixamento por não cumprimento do acordo ou atraso salarial aos jogadores são as bases da medida provisória.  Faltaram itens fundamentais. Um deles é um calendário para todos os clubes pequenos que jogam três ou quatro meses por ano.

Sonho? Esperança? Certeza? Nunca antes na história deste país houve uma oportunidade de revolução do futebol como esta.  Nos últimos doze anos todas as reformas cruciais e as transformações foram ignoradas em troca de uma grande mistificação social e política. Se o PT de Lula, o PSDB de FHC, o PMDB de Cunha não atrapalharem a aprovação, ou exigirem uma doação legal, o Brasil entrará no século 21.

Pena que só no futebol está ocorrendo a passagem para o futuro. A educação, a saúde, o pensar político, econômico continuam presos no passado que nunca passa.


O drible derradeiro

Chiko Kuneski

- Expulso?  Eu? Mas o que eu fiz?
- Nada!!
- Então porque estou sendo tirado de campo?
- Já mandei! Fora! Sai por bem ou chamo os policiais.
- Se é assim...
Um longo respirar de resignação, olhar triste para o gramado, cabeça baixa.
- ... eu saio, senhor juiz.

Caminhou em passos lentos, lamentoso. Não iria participar dos minutos finais e cruciais daquela partida tão importante. Nem xingou em pensamento o árbitro, ele não merecia sequer seu desprezo. Não olhou para trás. Apenas caminhou calmo, respirando ofegante, encharcado pela torrencial chuva de final de verão que não parava de cair.

As lágrimas na face não eram de tristeza, de raiva, de revolta. Soluçava pelo inédito momento. E tinha que ser logo naquele fatídico dia. Mas a chuva adoçou o amargor da expulsão. A chuva e a quase incontida euforia, já misturada com a precoce saudade.

Aquela partida seria sua última. Depois de tantas, sempre no mesmo campo. Sempre por seu time do coração eleito ainda criança. E, logo nesse jogo, sua única exclusão de campo e por não ter feito nada.

Antes de deixar o gramado teve a petulância de parar, virar o corpo, olhar altivo e ouvir o estrilo do apito. O jogo acabou. Acariciou com carinho a bola que surrupiou sem que ninguém visse e vibrou. Vibrou como nunca antes na vida.


Aquele era o primeiro campeonato do time que tanto amava e por quem dedicou tantos anos a cada domingo. Embalou a bola com o manto sagrado do time do coração, ainda do menino, que secretamente vestia sob o uniforme já surrado de gandula.

domingo, 22 de março de 2015

O inventor da fantasia

Chiko Kuneski

Antes dos torcedores conhecerem o factual da imagem de um jogo de futebol pela televisão, o imaginário da velocidade das palavras dos locutores esportivos construíam a dinâmica do torcedor. Até mesmo quando se tinha a sorte de ir ao campo ver o time, a magia do descritivo das ondas do rádio ia junto.

Os lances, às vezes mornos, ganhavam dramaticidade no descritivo, na entonação, na empolgação verbalizada. Quando não estava no estádio, com o rádio colado ao ouvido, de olhos fechados, o torcedor desenhava mentalmente o lance, detalhe por detalhe, até os inventados pelos mágicos da fantasia.

A partida imaginária do ouvinte era a narrada pelo locutor esportivo. Cada um tinha seu eleito e esse lhe era intocável. A fantasia das palavras começava nas “vinhetas” que apresentavam as vozes que faziam sonhar. Um sonho acordado toda quarta-feira à noite e domingo no final de tarde.

O grito de gol era amplificado com o toque do dedo no volume. Todos tinham que ouvir o estilo do locutor para mostrar a vibração da torcida quando do estufar das redes. Por respeito, o ouvinte apenas gritava o gol segundos depois do locutor do rádio.


Antes das transmissões costumeiras de futebol pela televisão, com sua fria imagem e sem o poder do imaginário, o jogo bretão era mais lúdico, sonhado e fantasiado. O locutor esportivo de rádio, ainda tem quem o prefira, continua sendo um inventor da fantasia futebolística.

O bom, o mau e o feio.

Mauro Pandolfi

O torcedor adora o clube, vive por ele. Vira sócio, torna-se um consumidor de seus produtos ou da pirataria. Veste a camisa como se fosse um fraque. Cada partida é um baile, uma festa, um evento. Não vai ao jogo em bando. Leva o filho ou poucos amigos. Faz do filho o herdeiro da paixão. Ele troca o pão pelo circo. Grita, pula pelo gol. Chora na derrota. Enfrenta uma depressão na ausência de título. Porém, não abandona o time. O amor só aumenta. A bandeira do clube é o símbolo maior. Às vezes, vira cortina, toalha ou lençol. Nunca torce contra, raramente vaia. O rival é só um adversário que merece zoação. É o bom! 

O torcedor organizado tolera o clube. Ama a facção. O time é só um detalhe. Briga pelas cores, pelos cantos, pelas vantagens recebidas dos cartolas. Chantageia, ameaça nas derrotas. Andam em bandos, em quadrilhas. Provocam brigas ou arruaças. São os donos do estádio. Tornam-se cães de briga. As outras facções são inimigas, independente de clube. Aspira o poder. Tem tanta força que de cabo eleitoral transforma-se em cartola. O torcedor organizado afastou o torcedor comum pelo medo. É o mau!

O fanático não ama o clube. Acha-se dono, sente-se o dono, comporta-se como o dono. Não tolera o outro, não convive com o outro. Para o fanático o adversário não é rival. É inimigo. Como inimigo deve ser aniquilado. O fanático cobra do time, xinga, vaia, briga por ele. Não admite uma crítica externa. Ameaça, provoca, parte para a briga. Só assusta o torcedor comum. É o feio!


Não sou tão maniqueísta assim. Não divido a humanidade em grupo ou facções. Só brinquei com a intolerância. Ela é a alma gêmea da festa do futebol num estádio. O bom, o mau e o feio é um faroeste de Sérgio Leone. Uma obra-prima para assistir em um dia chuvoso.

quarta-feira, 18 de março de 2015

O Flamengo do Chiko

Mauro Pandolfi

Sou um caçador. Largo tudo. Não leio, não escrevo, não cozinho, não namoro. Nem futebol na tevê assisto. É a hora da caçada. Vou seguindo pistas, relatos, indícios, suspeitas em busca da caça. A tela do tablet é pequena. A do celular é menor ainda. Mas, agora tenho uma smart tv. Procuro o youtube. Localizo na tevê. O sinal de pesquisa aparece.

Vou em busca de um jogo perdido. Vou atrás de um futebol que nunca existiu. Ou, se existiu, foi esporádico. Sou um caçador. Nunca um desmistificador. Não sou um Mister M do futebol romântico. Posso ser, quem sabe, um idiota que recusa o passado tão glorioso, fantasioso, mágico. Considero o passado, e o futebol incluído, uma ilusão. Uma bela ilusão. E como todos já sabem, as ilusões estão perdidas.

Adoro sonhadores como Chiko Kuneski. Ele é um poeta da vida e da bola. Escreveu um texto belíssimo sobre o Flamengo de Zico. Este time, ainda, me encanta. Não cheguei aos anos 80 na minha 'caçada' ao futebol. É complicado discutir mitologia. Mas, vamos lá!

Este Flamengo é uma poderosa equipe tática. Posicionamento, marcação alta, velocidade. A posse de bola como arma é um engano na análise deste time. Ao contrário, a bola é jogada com rapidez, procurando o espaço vazio do contra-ataque. A bola constantemente atravessada, viradas de jogo sempre em busca do contrapé do adversário. Tão bem esquematizado que encaixotava o rival.

O Chiko vai me matar. O Flamengo era defensivo. No Brasil poucos times marcaram como ele. Os dois zagueiros (Mozer e Marinho) eram rápidos, grandes e versáteis.  Tinham uma antecipação primorosa. Com dois laterais (Leandro e Júnior) inteligentes e hábeis encurtavam o espaço. Ora, abriam como laterais. Ou, fechavam como meias, sempre em diagonal, como autênticos alas. Aliás, alas não substituem pontas. São as 'novas atribuições' dos meias.

Ou seja, o novo lugar dos meias. Eles não desapareceram. Mudaram de lugar. Dois pontas (Lico e Tita) flutuavam. Este movimento bloqueava o time adversário e criavam opções de ataque. O volante (Andrade) funcionava como um terceiro zagueiro. O primeiro combate é sempre seu. Assim como, a saída de bola. Os meias (Adílio e Zico) coordenavam o jogo. Acelerando o ritmo ou diminuindo. A chegada na frente era vertiginosa, geralmente, com o Zico, paravam dentro do gol. E tinha um bom definidor (Nunes). Não esqueci o goleiro (Raul). Era discreto, fugia do padrão voador, tinha uma boa reposição. Vários contra-ataques começavam com ele.

Este Flamengo foi uma construção de anos. Inicia com Carlos Froner, passa por Joubert, Coutinho e é burilado por Carpegiani. Paulo César Carpegiani foi um jogador subestimado. Tão talentoso como os medalhões de seu tempo. Um meia hábil com uma noção tática raramente vista nos campos brasileiros. Um Xavi! É também relegado como treinador. Seus times fugiam dos modelos daqui. Quando a imprensa e os torcedores não percebem, ou não entendem, uma variação tática chamam o técnico de inventor. Carpegiani é ousado. Porém, aqui, ousadia é a palavrão.

O Flamengo era tão fantástico no posicionamento, na forma de jogar que jogadores medianos (Andrade, Adílio, Tita e Mozer) pareciam 'craques'. Zico era superior, extraclasse. Leandro e Júnior (o mais completo jogador de sua geração)  foram espetaculares. Lico era o moderno. O símbolo de um time instigante e poderoso.


Os olhares do poeta. Chiko vê o Flamengo com poesia. O drible é o verso que não precisa rima. Se materializa no engano do adversário. O gol é um poema completo. Chiko sugere a dança e o balé. Futebol arte. Futebol é espetáculo. Meus olhares são outros. Gosto do passe. O passe é prosa. O jogo é um teatro de grama e paixão. Gosto de vitórias, aquelas arrancadas de forma épica. O Flamengo do Chiko ainda é intocado na lembrança.  Como já perdi o encanto de tantas equipes, não sei se irei à caça. Acho que vou! Nem que seja para provocar o Chiko.

Cronicamente poético

Chiko Kuneski

Normalmente ocupo esse espaço com prosa, mas hoje faço da poesia minha crônica


Futebol não é exato
Um simples de fato
O corrido
Futebol é sentido
Durante a partida, no imediato
O futebol é jogo sonhado
Mas, depois...
... o que fica é o resultado

sábado, 14 de março de 2015

Cores, futebol e paixões

Chiko Kuneski

As cores. As cores são as verdadeiras paixões do futebol. Antes de entenderem a dinâmica dos times que torcem os meninos amam suas cores. Os que transformaram a paixão no amor nunca trairão essas cores, que rejuvenescem as lembranças instintivas, mesmo que as camisas mudem pelo desejo dos patrocinadores e sua necessidade, lógica, de mercado.

As cores do time são como as dos olhos da primeira namoradinha que, ainda púbere, pegou na mão. A primeira paixão; ou o único amor.

Mesmo que o time deixe de existir e uma nova paixão tenha que ser buscada, as cores não são traídas. Na necessidade, busca-se o amor em outro manto, mas nunca num que tenha as cores antagônicas. Seria traição demais.

Vibrar por um novo time não é esquecer a velha paixão. É, ao contrário, buscar recriá-la. Ressuscitá-la. Fazê-la ganhar vida imaginária. Os nomes, os escudos, os desenhos das camisas podem mudar; mas as cores nunca. Nunca e jamais para cores que lembrem as dos rivais.


Troca-se, por necessidade, até de escudo; mas a cor do sagrado manto do primeiro amor é uma traição impensada. 

Guanal ... saudades da alma lageana! *

Mauro Pandolfi

Madrugada, toca o celular. Acordo assustado. Era Rai Carlos, um velho amigo que convive com o sobrenatural. "Sem susto, Mauro! Preciso que tu venhas de manhã conversar comigo. Tenho uma mensagem para você. Fique tranquilo. Volte a dormir!", disse Rai. Dormir? Rai estava me gozando. Ainda bem que passava o videotape do Grenal de domingo. Nunca é demais ver o inesquecível.

É de manhã, o sol se esconde nas nuvens. Rai mora num pequena rua do bairro Nossa Senhora do Rosário, em São José. O velho papagaio Pablito avisa a minha chegada. "Olha só quem vejo bem cedo! Mauro, todo assustado, preocupado com o nada. Não se assuste. É apenas uma mensagem  psicografada do seu primo Juca. Ele pediu para você  construir um Campo dos Sonhos, lembra do filme, né?, para um Guanal!". Como?, interrompi. Aonde? E, com que dinheiro? indaguei. Rai riu. Como é cego vive dizendo: "vocês só veem, não enxergam! Olham o mar. Não percebem o mar. Ficam no simplório, no engano do ver. Procure olhar o mar no fundo de seus olhos. O dia que conseguires, vai ver o que vejo!" 

Sei disto, respondi. Mas, o Campo dos Sonhos? Riu abraçou-me, deu um beijo no meu rosto, apertou a mão e disse: "o campo é o imaginário. Construa com as suas ferramentas. É um texto que ele quer, Mauro!". Despede-se e assobia "I just called to say i love you". Quando estou no portão chama-me: "teu primo disse que todos estão bem". 

O Vermelhão sempre foi o meu campo dos sonhos. Lá descobri paixões de toda a vida. Entendi que a bola move o mundo, um time e um gol. Descobri a luta, a garra, que o impossível é muito provável. Aprendi a vencer e a perder, e o empate é uma continuação da vida. A esperança, a fé e as ilusões achei após um gol perdido ou numa defesa espetacular. Voltar ao Vermelhão é encontrar o Maurinho. O menino que vi correndo, desesperado, após o gol desperdiçado. O guri que enrolou a bandeira, guardou a camisa cinco de lã e foi embora. São 39 anos de saudades.

A memória é um baú que nem sempre abro. Sempre escapa algo triste.  Estão todos lá! O menino loiro, pequeno mascote vai ao campo, ao lado do goleiro, que ele chamava de Caminhão. O nome, que fugiu da memória, parece ser Gilberto ou, quem sabe, Laércio. Mas, poderia ser outro goleiro. Califa e Luís Fernando eram espetaculares. Meus amigos Bolacha e Zé acompanham Setembrino, Mário José e Bim. Entram Dair, o Barata sem roda, como o chamávamos, Gaspar, Vitor Hugo, Nicodemus, o genial Puskas, Ricardo, o inesquecível Zezé e Anacleto Oliboni, que marcou, certa vez, um extraordinário gol de bicicleta. Eu, menino, não conseguia entender um gol destes. Como ele jogou de bicicleta? No banco está Roberto Caramuru, ao seu lado, Aparício Viana e Silva. Nas cadeiras noto as presenças de João Saldanha e Rogério Sbruzzi, dois gigantes vermelhos. Meu primo Juca, também, está lá.

Há tantos outros!
O Vermelhão explode. A Arquibancada de madeira está lotada. A de concreto vai enchendo aos poucos. Não há lugar nas gerais que rodeiam o campo. O cenário está pronto. Aquelas camisas vermelhas voltam a desafiar o vento. Tremulam, balançam ao som dos aplausos.

E, o guaraná-Guarani? Era assim que gritávamos ao ver o áureo-cerúleo do batalhão rodoviário. O uniforme é um dos mais bonitos que vi. A camisa azul, cortada ao meio, por uma faixa amarela. Muito parecida com a do Boca Juniors. Também, o estilo de jogar. O Guarani nunca desistia. Corria, lutava até o lance final do jogo. A última vez que vi o Guarani foi um amistoso, em 1974, contra o Gaúcho de Passo Fundo. Perdeu por 3 a 1 (ou teria sido outro o resultado? Estou lembrando de memória!).

Lembro de gols de Luís Freire e Bebeto, dois mitos do interior gaúcho. Foi a derradeira tentativa de sobreviver.
Lá vem o guaraná-Guarani! Meu amigo Carlinhos é o mascote. Era o único da turminha que torcia para o Índio. Estão lá Almirante, Orli, o veloz Neco. Aliás, Setembrino sempre teve problemas com ele. Nicodemus ficava na cobertura. Mas, o velho Sete era fabuloso. Vi o grande sorriso no belo desarme.  Os campeões invictos de 1962 estão presentes: Naddi, Dante, Zilvio, Denerval, Vicente, Octávio, Pillila, Farias e Gozzo.  A entrada é uma festa que  emociona a vibrante torcida.  O major Estrela conversa animadamente com Batista Luzardo Muniz. Será que estão tramando a volta do Guarani?

O Guanal é o símbolo da minha paixão do futebol. Graças ao Guarani e ao Inter que descobri o Grêmio. O tricolor foi fazer um amistoso contra o Guarani. Treinou no Vermelhão. Eu, menino de sete anos, interessado em conhecer Alcindo, fui ver o treino. O Vermelhão ficava na frente de minha casa. Da janela, via uma área e o gol. Todos de branco. Um chute poderoso estremece o travessão. Quem chuta é o camisa 13. Ele usa uma camisa diferente dos demais, tão incrivelmente linda em três listras azuis,  brancas e negras. Perguntei quem era aquele que chutou. "Alcindo!", responderam. Tornei-me gremista. Grato, dupla Guanal.

O jogo flui. Guanal era disputado. Bola alta, disparada para frente. Retomadas, viradas de jogo. Cruzamentos mortais. Boas defesas. Um jogão. De repente, um longo passe de Dair encontra Zezé, na frente de Orli... Os lances vão sumindo da tela, escapando pelos labirintos da vida. É hora de trabalhar! Tem gente no balcão. A vida pede mais esperança, ilusão e campos de sonhos. Mas, tenho que garantir o leite das crianças. No entanto, hoje e amanhã, o Guanal vai ficar flutuando no meu imaginário. 
....será que Zezé marcou o gol?

*Guarani de Palhoça  e Internacional de Lages fizeram a final da segunda divisão. Um quase Guanal. Paulinho Scarduelli pediu um texto sobre o Guanal e publicou em seu facebook. Agora, republico no blog

quarta-feira, 11 de março de 2015

O ídolo!


Mauro Pandolfi

O tempo está indo embora. São quase quarenta do segundo. As unhas do torcedor são esmagadas por dentes vorazes. Os músculos triscados de tensão. Olhares atônitos. A aflição é maior que a esperança. A bola flutua perto área. Os zagueiros estão firmes, atentos, seguros. O tempo voa. A organização tática desmancha-se. A bola rola rápida e nervosa, sem rumo para os lados ou apressada para frente.

O adversário erra. A bola encontra o pé santo no ar. Desce mágica, mansa, serena. Cabeça erguida, atento, vai abrindo o espaço exíguo, célere, escapa da falta, arma a tabela, recebe na frente, só o goleiro.  Num átimo dribla-o e toca leve a bola feliz para a rede.

Os gritos, os urros, os pulos explodem no estádio. O impossível é um drible no futebol. Sempre acontece. O ídolo surge assim. No desespero, na desesperança, no medo.

O espelho separa o torcedor do ídolo. Reflete nele o desejo, o sonho, a frustração. O torcedor nunca erra, não falha, perde no equívoco do outro, do árbitro, da injustiça.  O ídolo é a certeza da vitória, da entrega, do título.  A camisa é o manto sagrado, o ídolo é o semideus, o estádio é o templo de uma religião que não admite ateu. O torcedor batiza o filho com o nome do ídolo. É a esperança de um dia o mito se materializar em casa, próximo, ser alguém da família.

O ídolo nem sempre é o craque. Nunca é o comum. É o que lembra o torcedor em campo. O que luta até a última gota de suor. O sangue na camisa é o grande troféu do ídolo. A camisa suja de sangue dada ao torcedor é mais sagrada que o Santo Sudário.


Ao ídolo tudo é consentido. Vira verso nos hinos, o rosto estampa os trapos da torcida, entra na história. Tudo é permitido ao ídolo. Perder um pênalti ou marcar um gol contra nada impede a idolatria. Ao ídolo não é tolerado a troca de camisa. Jogar no rival é um crime de lesa clube, mortal. Quando ocorre, o ídolo é imolado, destruído num ódio bíblico.

As laranjinhas

Chiko Kuneski

Na sua crônica de domingo Mauro Pandolfi usou a memória afetiva para externar como o lúdico que envolve o futebol encantou sua infância/adolescência. E o título não podia ser mais feliz: “meninos de Kichute”. Quem já chegou aos 50 sabe o valor que era ter um Kichute com travas de borracha. As chuteiras eram para os profissionais.

Mas, pegando uma carona no Kichute do Mauro Pandolfi, minha infância tinha, além do calçado, outro objeto de desejo. A “laranjinha”. Laranjinha era um refrigerante nacional que tentava rivalizar com o Cruch. Vinha em garrafas de 200 ml e matava a sede depois das peladas dos meninos da rua. Isso quando se tinha dinheiro para pagar ou a autorização dos pais para “por na conta”.

A turma do Beco, que na verdade era uma rua com saída que dava no descampado de barro, a beira-rio e bem abaixo de um barranco, que unia três ruas, se encontrava nessa “covanca”, transformada em campo de pelada. As traves eram de eucalipto, sem redes e as dimensões poderiam ser o que atualmente se chama de “futebol sete”. Mas era o nosso campo. O “covanca”.

Como futebol sem rivalidade não existe, depois de muitas peladas que misturavam os da rua da direita, com os da rua do meio e da rua da esquerda em amistosos de puro prazer, alguém resolveu que, como os adultos nos casados contra solteiros que terminavam em cervejada, tínhamos que montar dois times e jogar “às veras”. O cobiçado troféu seria uma caixa com 36 laranjinhas. Somente os vencedores beberiam o refrigerante. Aos perdedores caberia a água da bica.

Alguém teria que montar os times rivais. Eu e o Kido, amigo da rua da esquerda, como somos deficientes físicos, acabamos sendo os técnicos. Destino interessante e sabedoria infantil, aos dois que não poderiam ganhar as laranjinhas jogando coube o direito de escolher quem as ganharia vencendo a partida.

Pela primeira vez os amigos da “turma do beco” levaram o futebol a sério. Durante uma semana foram conversas ao pé do ouvido, encontros, conchavos buscando os melhores para seu time. No sábado mágico, com a caixa de laranjinhas, comprada com dinheiro de uma “vaquinha” de todos, garantida, e ai estava o melhor sentido dessa disputa, veio a contenda.

O jogo mais pareceu um clássico, até com juiz, um adulto para impor respeito, disputado a cada lance, a cada bola, a cada jogada. O Time do Kido tinha o Farias, mais velho, mais forte, o craque e goleador do barro do “covanca”. Mas o que eu montei tinha o Maninho, baixo, troncudo e veloz, um “carrapato” no próprio conceito de volante de marcação, muito tempo antes de saber que isso existiria.


Naquele jogo, como se fosse uma decisão de mundial das três ruas do Beco, as 36 laranjinhas valiam bem mais que a diversão de jogar futebol. O craque tudo tentou, mas o volante não deixou a bola passar dentro da marca dos três paus de eucalipto. Tudo acabou na “venda do “seo Venâncio” com as 36 garrafinhas de laranjinha sendo saboreadas por todos da Turma do Beco, no melhor zero a zero da minha vida.

domingo, 8 de março de 2015

O futebol do sonho

Chiko Kuneski

Revendo o jogo da decisão do Mundial de Clubes de 1981, épico para os torcedores do Flamengo e talvez até para outros, redescobri o prazer de sonhar acordado. Não pelo título, mas pelo ilusionista futebol do começo da década de 80. Até mesmo o fracasso na copa de 1982 é mais lembrando que os sucessos posteriores vindos de esquemas bélicos.

Não quisemos apenas levantar taças. A lógica era a mesma do ilusionismo. Do encanto. Do aplauso pela magia do inusitado comandada por técnicos que divertiam se divertindo. Coutinhos, Carpeggianis e Teles buscavam o espetáculo, o divertimento, a contemplação do talento.

Os esquemas eram balés com jogadores dignos dos malabaristas de Soleil. O futebol brasileiro era circense, encantador, espetacular. Os dribles pareciam usar espaços impossíveis. Às vezes apenas imaginados pelo driblador. Os movimentos confundiam até os mais atentos torcedores.

Pior para os marcadores. Não se marca sonhos. Os sonhos são voláteis. Os dribles dessa geração do futebol brasileiro eram tão etéreos que apenas se materializavam na bola abraçada pelas redes. Somente o gol enredava a magia ilusionista início dos anos 80.

O Flamengo conquistou o mundo desmistificando o pragmatismo do futebol jogado pelos inventores do esporte bretão num três a zero mágico sobre o, então imbatível, Liverpool da Inglaterra. Foi com um futebol ilusionista.


As jogadas escondiam a bola. Passavam a bola. Driblavam até lógica da bola, mas os ingleses não viam a bola. Somente as redes abraçavam a bola. As redes, como os torcedores, adoram a ilusão da magia do futebol. Raul, Leandro, Marinho, Mozer, Júnior, Andrade Adílio e Zico, além de Tita, Lico e Nunes, eram mais que jogadores. Sonhavam o mesmo sonho: o espetáculo.

Meninos de Kichute

Mauro Pandolfi

"O tempo não para. Só a saudade é que faz o tempo parar..." 

                                                                   Mário Quintana.


O passado é teimoso. Nunca passa. Sempre esquece que passou. Olhe aí! Preste atenção, feche os olhos, relaxe e, surpresa, o passado está presente. Numa foto, numa lembrança, numa cena, num olhar. Voltei aos quatorze anos, estes dias, ao assistir o ótimo Meninos de Kichute. É como se fosse o filme da minha adolescência.

O time da rua, a escola, os amigos e a viagem de mudança para nunca mais voltar. 1974, aqui vou eu! Vou botar o meu bloco na rua, ler Charlie Brown e jogar como Carlos Babington (um dez daqueles que detesto hoje em dia). Meu amigo Bolacha preferia Cruyff.

Copacabana nunca me enganou. O lugar mais próximo do paraíso que conheci. Lá morei onze anos, fiz amigos, curti as primeiras namoradinhas e as festinhas embaladas por Roberto Carlos, Beatles e um grupo estranho de gente, e nome, esquisito: Secos e Molhados. Enfrentei muitas filas para assistir Mazzaropi e o Gordo e o Magro no Tamoio. E uma paixão nunca confessada: adorava os filmes do Trinity. Bons tempos aqueles, hein?

A bola é a vida deste blog. O encanto de Copacabana era o Vermelhão. O antigo areião que transformou-se no campo do Internacional. Depois, como o Colorado passou a jogar no Municipal, o Vermelhão foi abandonado ao vento. Virou campo de ninguém, de todos. O nosso Maracanã.

Como era bom jogar lá. Não era só um menino com sonho. Era um jogador. Afinal, tamanho oficial, traves e arquibancadas. Algumas vezes corri de braços abertos, balbuciando algo em busca do aplauso imaginário. Também, ouvi broncas, reclamações por um gol perdido. Não era a torcida. Eram os parceiros de time. "Pqp! Não dá para perder um gol destes, Maurinho!". Abel era o meu crítico mais feroz.

Oi, girando! Oi, girando! O campo ficou redondo para a gang de Johan Cruyff. Todos em todos os lugares. Espaço e tempo em um outro conceito. Bolacha, que era o principal líder do time, ficou encantado com a Holanda. Passou a Copa toda falando da Laranja Mecânica. No dia do jogo contra o Brasil, a sala da casa da dona Lucinda, mãe do Bolacha, ficou lotada. Divididos entre a paixão do Bolacha pela Holanda e o 'nosso' patriotismo. 'Ame-o ou deixe-o" dizia o adesivo colado na caderneta escolar. Por instantes, preferirmos o 'deixe-o'. Uma grande escolha.

Ah, gira, girou! Nunca tinha visto um time como aquele. Entendi o encantamento do Bolacha. Neeskens, Resembrink, Johnny Rep e seus amigos rodavam num carrossel mágico, igual aos dos parques que invadiam Lages de tempos em tempos. A vitória laranja virou uma festa. Gritos, pulos que irritaram seu Jeremias, pai do Bolacha. "Piás de merda! Cadê o patriotismo?", reclamou. No Boldo, uma espécie de Pacaembu, imitamos a Laranja Mecânica. Treinamos as movimentações, as trocas de posições, o passe rápido, a velocidade e a obsessão pelo gol. Fui Cruijff durante uns meses. A minha camisa era a 14. Aos poucos, a Copa foi se tornando saudades. Saudades que tenho até hoje.

O dia chegou. Julho de 1975. Um domingo. Passei com a turma da rua Irma Laurinda. Fui ao cinema, no bailinho do Juvenil, no bolão do Princesa. Terminamos a noite no bar do seu Chico, que ficava perto de nossas casas. Às onze da noite dei um abraço forte, fraternal, final nos amigos. Acompanhei todos indo embora. É a última imagem que tenho deles. O tio Danilo nos levou à rodoviária. Lages foi ficando para trás, longe. Mas, sempre volta em sonhos e lembranças. Pena que aquele tempo ficou naquele tempo.


quarta-feira, 4 de março de 2015

O Gol!!!

Mauro Pandolfi

O gol é um latifúndio. Tem a imensidão da desgraça e a fúria da esperança. É o ponto de encontro do riso e da dor. Vitória e derrota são o mesmo lado da moeda, gêmeos no desespero.

É o lugar onde a humanidade tropeça. O herói é desconstruído. O comum é tornado deus. O erro e o acerto andam de mãos dadas feito namorados. No erro, o ídolo é imolado, decapitado, consumido em partes, devagar. O perna de pau é devorado por inteiro, num ódio bíblico. Mitificam-se no acerto. O gol é a tragédia do futebol.

Maldito. Perambula pelo espaço exíguo como se tivesse perdido no infinito. Vive intensamente a emoção da glória e do fracasso. O goleiro não é um jogador de futebol. Nem detalhe tático, nem profissão. É um angustiado personagem de um teatro de grama e paixão. Solitário ator que tenta impedir o desejo do jogo. A alegria do gol é o riso da morte de um goleiro.

O medo diante do pênalti. Estáticos. Olhares trincados. Músculos retesados. Tensão. Há algo cínico no pênalti. Onze passos de uma execução. Pelotão de fuzilamento. A rede não é de proteção. Ele corre. Ele curva-se. Ele bate. Ele voa. A bola, traiçoeira, escapa, tocando nos dedos e aninha-se na rede. Ele pula, soca o ar! Ele estatelado, soca o chão.


Os gritos se confundem! De alegria e fúria. A cena pode ser outra. Mas, só é encantada quando o goleiro é do nosso time.

O ladrão de sonhos

Chiko Kuneski

Eram apenas duas vidas. Distintas. A bola e a rede. Vidas cheias; vidas vazias. A bola de ar, de inspiração, do ataque. De fazer cantar em uníssono a torcida com o surdo som esfuziante de emprenhar a rede. Encher. Esticar. Estufar. Dar vida a sua insignificância estática. A rede quieta, mas inquieta no desejo de ser acarinhada pela bola, no escorregar macio do êxtase da torcida em delírio de um único grito:

- Golllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll.

Eram apenas duas vidas. Distintas. Uma pedindo. Outra implorando. Subservientes aos caprichos dos homens. Dos deuses. Do imponderável do futebol. Duas vidas unidas pelo desejo único, acabado, perfeito, do encontro. Do gozo coletivo. A catarse que só as duas juntas poderiam provocar:

- Gollllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll.

Eram apenas duas vidas. Distintas. Duas desconhecidas. Duas esquecidas pelo desleixo. Pelo desprezo. Pela inexatidão da falta do zelo. Pela preguiça. De olha-lhas, em um só átimo, precioso para entender a importância de sua união. Da bola estufando a rede. Da rede abraçando a bola. Da alegria de gemido coletivo de:


- Gollllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll.

Inacreditavelmente, para as duas vidas. Duras vidas. O atacante suprimiu da bola e da rede o prazer único de darem alegria. Acarinhando-se, nas suas malemolências, sob o cantar eufórico da torcida. Preferiu a trave. Dura como sua “perna de pau”.

domingo, 1 de março de 2015

Armadilha!

Mauro Pandolfi


Uma armadilha sequestrou o futebol brasileiro: o passado, idilicamente, romântico. Está encurralado nos conceitos, na gestão e na análise. Assim como o país, é só um zumbi de um tempo glorioso. Sobrevive das conquistas e da mitologia de outras épocas. Aqui é o lugar onde o atraso fez a morada. Tudo em construção. Mas, a ruína é a paisagem mais vista. O 7 a 1 da Alemanha foi o melhor retrato do futebol brasileiro: desorganizado, ultrapassado, frágil, perdido, decadente. No entanto, a derrota transformou-se num simples 'apagão'. Nada foi alterado. Só os nomes foram trocados. E, que nomes, hein, foram os substitutos?

Bendito Pep Guardiola! Reinventou um futebol sonhado. Transformou o tiki-taka em um jogo envolvente, mágico, vencedor. A bola é sempre nossa! Este é o conceito de Guardiola. De posse dela, jogamos. Movimentação, diminuição de espaços, abertura de espaços, chute precisos, passes e uma intensa marcação ofensiva. Nunca vi um time defender como Barcelona. Tão sólido que parece ser sempre ofensivo. O sistema de jogo é simples. Complexo é a análise. É necessário novos conceitos e nomenclatura.

Um olhar que fuja da dualidade (aqui tudo vira opostos, antagônicos, rivais) ataque e defesa. O futebol é mais do que isto. É um jogo de espaço e de precioso tempo de bola. A bola é sempre nossa! É deles, quando encontra-se com o véu de noiva.

Decifra-me ou te devoro? O enigma do futebol moderno é um pesadelo para os técnicos brasileiros. Não conseguiram entender Guardiola. Fazem um jogo de imitação. Aqui o moderno é farsesco. Uma clonagem defeituosa. Não há a organização tática ousada do espanhol. Não há o conceito novo do Bayern. A releitura é um equívoco. Não construíram nada e destruíram o antigo. Os times brasileiros estão perdidos numa maçaroca tática. Perdeu-se o histórico estilo e transformou o novo num pastiche.


Guardiola é um desafio. A menção de seu nome para dirigir a seleção revoltou os técnicos tapuias. Como o país da bola importaria treinador? Heresia! O futebol brasileiro foi moldado por estrangeiros. Não qualquer treinador, como fizeram o Inter (com Jorge Fossati e Diego Aguirre) ou o Palmeiras (com Ricardo Gareca). Não um simples repetidor de um sistema de jogo. Mas, alguém conceitual, ousado, inovador. Dori Kruschner e Bélla Gutmann são emblemáticos 'professores' que vieram de fora. Eles reinventaram, modernizam e criaram uma escola de futebol. Sampaoli, Gallardo, Loco Bielsa, Angel Cappa, só para ficarmos com os hermanos, seriam um sopro. Tite é uma, tênue e frágil, esperança. Felipão, Luxemburgo, Murici, Geninho etc, são a vanguarda do atraso. Um retrato alemão na parede. E, como dói!

Deu na trave

Chiko Kuneski








Todo dia, antes de começar o treinamento, o goleiro alisava a trave. Como o cavaleiro acariciava seu cavalo, conversava com quem poderia ser sua glória ou seu algoz. Sabia que dependia dela, que marcava sua vida de goleiro em passos, metros, centímetros definitivos. Não seria um goleiro sem sua trave. Melhor que confiasse nela.

Era sempre seu ponto de referência. Sua mira para o golpe de vista, como gostam de dizer os locutores e comentaristas esportivos. Como se golpe não fosse contra si próprio. Diriam melhor se chamassem os três “paus” da trave de referência. O goleiro sabia disso. Só goleiro. Na solidão dos extremos do campo. Como as traves.

Quantas vezes ela o tirou de apuros em jogos importantes, sendo a extensão da ponta dos dedos a impedir a consagração do artilheiro. Como ele, mais lembrada pelo desalento adversário, do que por alegria dos torcedores do time “bafejado pela sorte”. O torcedor vibra com a trave, sacudida pela explosão da bola, mas faz questão de esquecer o lance, assim que acaba.

A bola na trave é o misto do “huuuu” de decepção; com “huuuu” de alívio. Não altera o placar, mas altera a relação amorosa do goleiro com a trave. Como uma amante. Defende o amado. Vibra sonora a chamar sua atenção; ou, traiçoeira, empurra a bola para o gol. O goleiro sabia disso. Antes de começar o jogo, conversava com ela. Mimava. A fazia gostar dele. Mesmo sendo duas, dividia-se.

No jogo mais importante de sua vida, o que valia o grande campeonato, o goleiro estava nervoso. Tenso demais até para falar com a trave. Só pensava nele. Na responsabilidade. No título da carreira. No primeiro tempo a bola no travessão salvou todo o time, mas ele, focado, não acariciou, agradecido, a trave. No segundo tempo, a trave, amante do goleiro, deixou a bola explodir ao seu encontro e, vingativa, fez rebater de encontro às suas costas. De joelhos, entre as traves, o goleiro escutou o estufar da rede encontrando a bola.


Escrito em julho de 2008. Neste domingo, 1 de março de 2015, aconteceu o lance no clássico Botafogo e Flamengo. Premonição?