sexta-feira, 18 de maio de 2018

Notas sobre a cegueira


"A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão"
Li em José Saramago esta frase. Mas, só entendi o significado conversando com meu amigo Rai Carlos, o vidente cego.

Mauro Pandolfi

Há tempos que não via Rai Carlos. Fui ao boteco do Alemão, seu 'escritório' de todo final de tarde, para uma conversa sobre a vida, os amores, as paixões, os dramas, ou seja, futebol. Cercado de amigos, o copo de gim na mesa, ele centraliza o papo. "Vocês, e o Tite, não enxergam nada além do lance. Não percebem a alma, a energia, a força vital de um craque. Vocês só olham, e o pior, por cima, superficialmente. Maicon e Lucas Paquetá nunca deveriam ficar de fora. Eles inventam o jogo, fazem o time jogar, fluir, são os que chamam hoje de ritmista. Quem vai dar ritmo a este time? Fernandinho, Renato Augusto? Com a ausência de Daniel Alves, só Marcelo tem este dom. Se for marcado, a seleção desaba, some, perde. Escutei no rádio que Tite convocou o Fred e desistiu do Luan devido aos treinos. Alguém precisa dizer a ele a frase do grande Didi: 'treino é treino, jogo é jogo'. Então, chamou um leão de treino! Tite usou a cegueira da razão. Não viu ninguém depois das eliminatórias. Escolheu os mesmos. Usou a estupidez da coerência. Um dia, quem sabe após a copa, entenderá que a coerência não é estática, parada, definitiva. Sempre muda, sempre avança, progride. Como diz aquele macaco, o Simão, quem fica parado é poste!". Terminou de falar, bebeu o gim e me encarou.
"Olha só quem não vejo há tempos!  Mauro Pandolfi!  Tu deves estar frustrado pelas ausências de Luan e Arthur? É mais um cego que não vê Maicon!" O abraço e o beijo fraternal vem em seguida. 'São jogadores diferenciados, dão um dinamismo ao Grêmio que não vejo em nenhum outro time daqui. Tu não defendes a convocação deles?' , indaguei. A gargalhada famosa do bairro Nossa Senhora do Rosário explode no bar. "Então, acha que prefiro Fred e Taison? Tento escapar do Grêmio, da paixão, fugir da lógica do jogo do Renato. Tite tem outra lógica, outro padrão. Ele consolidou, não vai quebrar nem na hora do sufoco. Maicon ou Paquetá não fogem tanto dele', explicou.
Fiquei desoncertado com a explicação. Lembrei da observação do Matheus que chamou os gremistas de 'cegados por Luan', por verem um jogador que 'só o gremista vê'. Ainda confuso, perguntei: 'A páixão é cega, Rai?'. Não riu, pediu outro Gim, armou os braços na mesa e filosofou. "Só a estupidez é cega. A paixão abre a mente, expande o córtex, libera os hormônios, faz você acreditar em algo que só você vê. O Luan tem um jogo que é melhor visto pelos gremistas, que são apaixonados por ele, que acompanham todos os passos no campo, percebem os seus olhares para os companheiros, os passes, a movimentação é mais intensa a partir do seu olhar. Todo apaixonado, todo torcedor é assim. O desejo, o craque são mais do que são na verdade. Não por serem menos. Mas, por acrescentarmos mais virtude, mais encantamento, mais brilho. Luan é ótimo. Foi bom ele não ser convocado. Seria reserva, não entraria, que fique jogando no Grêmio. Lá ele é o maestro".
Gosto de Adenor Bachi. Recuperou a imagem da seleção, criou um time bom de se ver, que gosta da bola.  'Tu não gosta do Tite, Rai?'. O rosto triscou, pediu mais um gim, riu e diisse:"Não é uma questão de gostar, admirar, elogiar. Tite não é Pep Guardiola. Não viu Maicon, nem Paquetá e muito menos, Arthur, que será o substituto de Iniesta. Tite é um italiano. É um Capello, um Anceloti ou Conte. Está no seu dna. Seu time joga bem, é prático, dogmático, e por mais contraditório, namora com o acaso. Às vezes, envolvente. Nunca sedutor. Eu gosto do imprevisível, nunca do acaso. Tite usou o vácuo da falta de gente decente no poder deste país. Encantou as pessoas com a ética, o caráter. Porém, acho muito vaidoso, tem uma soberba disfarçada de humildade, de gente comum. Tenho medo disto".
Antes de ir embora, Rai complementou. "Tite deve saber que só há duas possibilidades na Copa. Ou a glória ou a desgraça. Quem o elogia hoje, os jornalistas que mudam de opinião a cada rodada, cada derrota ou vitória, serão os seus algozes ou seus laudatórios. Aqui, o futebol para a imprensa é um ensaio sobre a cegueira. Não há passado recente e nem futuro, só o mitificado. Importa apenas o triunfo do agora. A imprensa esportiva nada vê, nada enxerga, ergue, mítifica, endeusa quem vence. Destrói, esconde, anula quem perde".
Perto da porta, depois do abraço e do beijo fraterno, da despedida, tento uma previsão. "Esquece, Mauro! Me aposentei. Estava errando mais do que acertando. Mas, cuidado com a Argentina. Os deuses do futebol devem algo para Messi. A conta pode ser paga no Mundial. Ainda mais que Sampaoli vai para o suicídio ofensivo. Não esqueçam dos meninos ingleses e nem dos negros maravilhosos da França. Mas, deve dar o de sempre. Sinto muito!" Já de saída gritou: 'Vou torcer para uma zebra colossal. Meu time é o Panamá de Baloy!" Um pouco longe, já dobrando a esquina, escutei e reconheci a linda música que Rai assobiava. Era de Lupi.

terça-feira, 15 de maio de 2018

E, o Giuliano?


"O tempo dirá quem é melhor: Taison ou Messi?"
Taison tem a última chance de provar que Wianey Carlet não era um colorado delirante, e sim, um sábio do futebol e que não é 'ovelhinha' de Tite.

Mauro Pandolfi

Faltou alguém. Sempre falta. Dirceu Lopes, Ademir da Guia, Roberto Dias, Falcão, Neto, Zico, Romárioe Neymar já assistiram a Copa no sofá da sala. Fontana, Elzo, Zé Carlos, Batista, Felipe Melo,Carbone e Grafite estiveram lá. Alguns, beijaram a taça, desfilaram no caminhão de bombeiros, foram homenageados e, alguns, definitivamente, esquecidos. Tite seguiu a história. Preferiu os conhecidos, os que ajudaram a ganhar a vaga. Os treinadores são mais parecidos do que supõe a vã filosofia de botequim. Tite não é tão diferente de Dunga ou Felipão. Ele também gosta dos amigos por perto, de seus 'craques' de confiança. Felipão apostou nas 'pernas alegres' de Bernard. Dunga confiou na 'elegância discreta' de Felipe Melo. Tite acredita em Wianey Carlet. Escolher Taison ao invés de Luan ou Vinícius Jr é desafiar o talento, ignorar os novos ou desafiar os deuses da bola. Eles, os deuses, costumam ser cruéis.
Tite já foi unanimidade. Um homem correto, ético, de caráter. Teve um período que muita gente o queria como presidente. Adenor Bacchi, o Tite, é pragmático, previsível, perigosamente coerente. Reinventou a seleção. Recuperou o prestígio, a fama e a tornou a camisa amarela temida outra vez.  Armou um time forte, 'consistente' (o titês definitivo sobre a equipe), vigoroso na defesa, rápido no ataque, recomposição precisa nas eliminatórias. Um jogo que não repetiu nos amistosos este ano.  Tite aposta em único estilo, sistema ou forma de jogo. Se precisar de algo diferente, quem mudará o ritmo ou buscará a vitória? Taison? A surpresa da lista é a ausência de Giuliano. O que fez para ser esquecido? Futebol é um jogo de olhares e escolhas. Os meus são diferentes. Mas, quem sou eu para protestar?
Faltou ousadia na lista. Surpreender os outros. Foram os de sempre. Os gaúchos chamam de 'ovelhinhas'. O resto do Brasil de 'panelinha'. Não confio na zaga do PSG e nem em Allyson. Sempre falham em jogos decisivos. Dos laterais, gosto apenas de Marcelo. Fágner é a repetição de Zé Carlos. Casemiro e Coutinho são ótimos meias. Desconfio de Paulinho e Wiliam.  São inconstantes demais. Fred - quem garantiu a convocação foi o interesse de Pep Guardiola -, Fernandinho e Renato Augusto são um exagero como já foram Felipe Melo, Elzo ou Batista. O ataque é o melhor setor da lista. A exceção é Taison. Inexplicável convocação. 'Recompõe bem, joga a Champions, tem experiência", justificou Tite. Mas, nos últimos seis meses, marcou um gol. A esperança é ele virar um Josimar. Tite ignorou Luan. Não respeitou' a história, a experiência, as conquistas' do melhor jogador da América e do ouro olímpico em 2016. Se perder a Copa, Tite ficará marcado por não levar Arthur, o mais cerebral dos meias brasileiros. O craque que o Barcelona escolheu para substituir Iniesta. Tite preferiu Fernandinho, Fred, Renato Augusto.
Luan, Arthur, Vinícius Jr, Paquetá, Paulinho, Rodrygo vão embora! Busquem um time na Europa. Se não for num gigante, vão para o Shaktar Donest. Aqui, não adianta brilhar, se destacar, ganhar títulos, serem reconhecidos. O 7 a 1 está marcado na nossa pele. Jogamos um mau futebol, inferior aos grandes centros. Somos periferia. Entre os novos craques daqui e os medianos europeus, Tite vai preferir a 'história, a experiência, a consistência' da grife européia. Que sorte teve um certo Pelé. Só em 1958, com um técnico mais intuitivo, sem aplicativos, sem algorítmos, para apostar num menino de 17 anos. Às vezes, eu que adoro o futebol moderno de estratégias táticas e do passe, tenho vontade de querer a poesia do jogo, do drible, do menino que inventa lances inesquecíveis. Vou ao youtube reencontrá-lo!

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Os embalos de domingo à noite



"...Sinta a cidade agitando e todos dançando, E você está vivo, está vivo. Ah, ah, ah, estamos vivos, estamos vivos..."
Bee Gees, John Travolta embalaram os sábados da década de 70. Maicon, Arthur, Luan embalam as noites, os dias de futebol dos gremistas no século 21. 'Stayin' Alive....

Mauro Pandolfi

Lembrei de John Travolta neste anoitecer de domingo. De um baile que eu vi, curti, tentei ser igual, aos 17 anos. O bailado de Tony Manero que dominava a cena. Parecia sozinho naquela pista. Olhares eram todos para ele. Uma dança frenética, envolvente, sedutora. Fantástico balé de um filme cult, ruim, encantador. Maicon não tem o topete de Tony Maneiro. Tem a bossa. Tem o suinge. Tem a ginga.  Dominou o meio-campo, ditou o ritmo, regeu como um maestro a afinada orquestra de Renato Portaluppi. O dono do jogo. Um estilista, como os saudosistas do velho imaginário futebol brasileiro espalham em suas conversas de 'pescadores', um esteta. Maicon é o mais moderno meia destes lados da bola. Articula, arma, conclui, ocupa espaço, lidera. Completo, assim como Arthur, feito um Iniesta. Porém, num destes cochilos dos deuses da bola, assistirá a Copa em casa. Só o talento, nestes tempos, não basta. É preciso a 'grife' européia.
Até onde vai este Grêmio? A eternidade! Não ligo para os títulos que talvez conquiste. A minha alma está apaixonada pelo o futebol cintilante, ousado, poético, refinado, abusado deste time de Renato Portaluppi. Uma paixão que jamais terminará. Vou contar para os meus netos, bisnetos sobre este time. É o jogo que abandonou, rasgou, botou no lixo da história, um jeito de não jogar futebol, o que o Corneta do RW chama de 'futebol do Texas'. Não há o volante do calção sujo, o que sobrevive de porrada e carrinho, a bola alta, o balão, o cruzamento para o gol de cabeça do centroavante 'mandioca', o pontinho fora, o 'voltar vivo'. É um Grêmio que mais lembra um time de ponta europeu moderno, algo parecido com uma equipe de Pep Guardiola. O comentarista da rádio Globo, Francisco Aiello, disse no Redação Sportv, da semana passada, que "o Grêmio hoje joga no mesmo nível do Barcelona, Real Madrid e Bayern. Não é elenco, é o jogo de futebol, forma do time jogar". Exagero? O meu olhar pode ser. O de Aiello, não!
A Copa é logo ali. Não há lugar para todos os craques do Grêmio da seleção. Tite não tem esta ousadia. Mas, é injusto Maicon ver a Copa no sofá da sala. É o ritmista, o maestro, o solista de uma orquestra refinada. Tem o domínio do jogo, a inteligência de alternar o ritmo. Acelera e candencia. Faz o jogo fluir, inverte, subverte, cria uma dinâmica pouco vista por aqui. Maicon, aos 32 anos, atingiu o auge. Tem a maturidade, a experiência de 'um técnico' em campo. Arthur é o Iniesta jovem; Maicon é o Iniesta de hoje, de agora, ou da Copa de 2010, o cérebro que a seleção não tem. Nem vou falar de Luan (completo, articulado, driblador, poético, destruidor de linhas contrárias), de Ramiro (um dínamo), Geromel (o paredão), de Grohe (a muralha) e de Éverton (fantástico destruidor de defesas). Vou ficar por aqui. Acho que arrumo até lugar para o Léo Moura, Cortez, Kanemann (ainda dá tempo de narturalizá-lo?) e a maior das loucuras: Jael (o cruel). Este Grêmio é o meu show da vida. É fantástico!
Sei que os meus poucos leitores (os seis!) reclamarão de mais um texto sobre o Grêmio. Desculpem-me! É a paixão que aflora ao caminhar cantado os belos versos de Lupi, ao ver as três listras na camisa da moça que passa, no olhar de prazer de um gremista, na conversa que flui falando de amor. Este Grêmio de Renato Portaluppi é o meu livro de auto ajuda. Não há tristeza, desânimo, que não cure. Vou ficar mal acostumado. Um dia tudo será saudades. Mas, como dizia o velho poeta: 'Meninos, eu vi!'

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Álbum de figurinhas



"O livro é uma extensão da memória e da imaginação".
Não sei se Jorge Luís Borges colecionou álbum de figurinhas na infância. Sempre tive um álbum em meio aos meus cadernos. Eles me ajudaram a ter ídolos, imaginação e descobri a importância dos amigos. Sem eles é impossível completar um álbum.

Mauro Pandolfi.

A casa estava cheia. Dia da estréia do Brasil. Todos quietos. O silêncio foi quebrado por Ladislav Petrás. Quase ninguém ligou para o gol. O que gerou espanto foi a comemoração. Petrás correu, seus companheiros atrás, ajoelhou-se e fez o sinal da cruz. Meio enviesado. Nunca num campo de futebol se viu isto. Ainda mais, de um país, a Tchecoslováquia, comunista. O Brasil virou, venceu, Pelé quase marcou um gol espetacular lá do meio campo, Jairzinho comemorou o gol igual a Petrás. No dia seguinte ao jogo, Petrás era a figurinha mais desejada em Lages. Todos queriam. Quem tinha, barganhou bastante. Sei de uma troca por pastel e laranjinha. Nunca consegui. Meu amigo Carlinhos recusou trocá-la por Tostão e Gigi Riva. Dias depois, recusei trocar Dumitrache, atacante da Romênia, que marcou um gol contra o Brasil, por Beckembauer e Muller. Nem ele cedia Petrás, nem eu, Dumitrache.
Adoro álbuns de figurinhas. Tenho alguns na memória. Havia os que davam prêmio, tinham as figurinhas carimbadas. Difíceis, quase impossíveis de conseguir. Nunca cheguei perto de um prêmio.  Nunca completei um álbum. Faltaram cinco ou seis para completar o de faroeste. Andava no bolso, com uma moeda furada, a figurinha de Giuliano Gemma. Ringo em 'Um Dólar Furado'. Era a minha favorita. Ele era meu ídolo, meu herói. Tim Holt, John Wayne, Rim Tim Tim, Roy Rogers, mitos de minha infância. Outro marcante, era os 'Ídolos da TV'. Só completei a página da 'Jovem Guarda'. Lembro a alegria quando tirei a figurinha de Erasmo Carlos. Ainda me emociono com 'Sentado À Beira de Um Caminho'. São páginas de um livro bom, a vida!
Sábado, o André me surpreendeu. Pediu o álbum da copa. Ele que não gosta de futebol ficou envolvido com a alegria de Guilherme e Bianca, seus primos, trocando figurinhas. Gostei da idéia. Fizemos os álbuns desde a copa de 98. Em 2002, com quatro anos, André, que já sabia ler, conhecia todos os jogadores do álbum. Não precisava lista para as trocas. A memória visual era impressionante. Quando eu tinha dúvida de algum jogador, não lembrava quem era ou não conhecia, ele identificava. Foi assim em 2006 e 2010. O Pedro era idêntico ao André na identificação, na memorização, no abandono do futebol. Jà em 2014, o álbum ficou jogado num canto. Não lembro se foi completado, guardado ou jogado no reciclado. É assim que começa a perda da memória,.do passado, do vivido..
Fiz tantas mudanças na vida. De lá para cá, coisas, caixas, objetos se perderam, sumiram. Não perdi a coleção da Placar, nem os times de botão. Mas, os álbuns nunca mais vi, assim como alguns livros. Os sebos não vendem álbuns de figurinhas. Pertencem aos colecionadores. Aquele da copa de 70 deve valer uma fortuna. Poxa! A figurinha do Dumitrache ia me ajudar pagar as dívidas.