segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Amor bandido

 

Mauro Pandolfi

Luan é um meia insinuante, hábil, ligeiro. É marcado com muito rigor. Suas pernas tem tatuagens feitas pelas travas das chuteiras dos defensores. Não foge. Encara os 'zagueiros bandidos', ao gosto de alguns comentaristas, e continua com os dribles. É o craque do Grêmio. Ele quem encontra a solução, a saída para as vitórias, tão exíguas neste momento. Na sexta-feira (26 de fevereiro), de manhã, Luan foi cercado por 'bandidos'. Não os zagueiros. Mas, um bando vestido com  camisetas do Grêmio. Além de exigir raça, chamaram os jogadores de vagabundos, jogaram pipocas em Luan. Injusto. Muito injusto. Sacanagem. Ele é quem mais se expõe, cria, chuta a gol, é o artilheiro do time. Ao ler a notícia,  fiquei curioso em saber quem são estes 'torcedores'? Quem está de folga numa manhã de sexta? Meninos, aposentados? Não! Um bando de 'mangolões' desocupados, vadios, pertencentes as facções organizadas.
No início, eram uniformizadas. Amigos que se reuniam para ver o futebol. Vestiam as camisetas dos times, sentavam próximos para torcer, cantar, se divertir. Em todos os lugares era assim. Anônimas. Alguém criou nomes, estatutos, uniformes. Popularizaram-se. Viraram referências, identidades. Comercializaram produtos com os símbolos do clubes (sem pagar direitos de imagem), ficaram íntimos dos cartolas, tornaram-se donos de espaços nos estádios. Afastaram o torcedor comum. Tenho dúvida, se o torcedor organizado é um apaixonado, um amante, uma espécie de amor bandido. Ou, é só um bandido que aprisiona o amor do outro?
Viraram milícias, bandos, máfias. Facções muito parecidas com o grupo que chegou ao poder no país. Os torcedores rivais são inimigos. E, devem morrer! Matam aqui e lá fora. Quase nada acontece. As punições são brandas. Logo aliviadas por uma justiça e imprensa conivente. É só lembrar o caso de Oruro, onde Kevin, 14 anos, foi assassinado, por 'torcedores' da Gaviões e o apelo demagógico dos telejornais com os 'inocentes' corinthianos presos na Bolívia. Até o governo brasileiro (parceiro?) entrou em ação para libertá-los. Tempos depois, vários foram identificados em outras confusões. Um foi morto, num conflito, por drogas, com outras milícias. O futebol? É só um detalhe! A justificativa de tudo. A sombra das chuteiras imortais é o melhor escudo para os bandidos da bola.
As facções organizadas construíram um poder nem tão paralelo nos clubes. Ocuparam cargos diretivos (Botafogo é um exemplo!) e até a presidência (Andrés Sanches dirigiu - ainda dirige, via laranja - o Corinthians). Algumas máfias são tão poderosas, elegem parlamentares, e  inventaram uma fábrica de dinheiro que expandiram para as escolas de samba, para lavagem desta fortuna . O futebol virou refém. Há como fugir das organizadas? Uma revolução! Transformação total do futebol. Dentro e fora. Fim da Cbf, das federações, das torcidas organizadas, criação de ligas. Profissionalização dos clubes, superar a fase social, chegando numa espécie de empresa, sem perder a paixão. Revolução não se faz com o passado. É preciso ousar, buscar o 'novo'.
Luan é um rapaz de sorte. 'Meigas' pipocas o atingiram. Poderia ser pedras ou, algo pior, balas. Não as guloseimas. As perdidas que sempre encontram alguém. Qual é o caminho de Luan? Talentoso, deverá ir para um grande da Europa. Em quem jogarão as 'inofensivas' pipocas? Em Lincoln, a nova joia tricolor? No televisor, ao ver Luan marcando um gol decisivo? Ou, ficarão empanzinados de tanta pipoca comida, com raiva, após o medalhão decadente, recebido com festa, substituto de Luan, perder mais um gol, mais um jogo...?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Clássico é Clássico

Chiko Kuneski

No Crônicas Por Tubo o jornalista Mauro Pandolfi publicou um saudosista texto sobre os clássicos usando como exemplo um de 111 anos. Cabalístico ou mera coincidência? Escreveu: “ ...América x Bangu. O mais antigo do Rio. 111 anos de rivalidade. Tão velho que era chamado de Clássico Bisavô! Parei, olhei, viajei.

Isso que são os clássicos. Viagens no tempo, nas memórias, nas rivalidades sadias. Desorganizadas. Sem “organizadas”.

Mas banalizaram o conteúdo do clássico. Virou chavão televisivo, radiofônico, cada vez mais afônico, impresso por editores dos cadernos de esportes sem conteúdo histórico. No futebol dos campeonatos estaduais clássico é a disputa entre times da mesma cidade. O demais é puro devaneio marqueteiro.

No catarinense foi assim com Paysandú e Carlos Renaux (Brusque), América e Caxias (Joinville), Metropol e Comerciário (Criciúma), Palmeiras e Olímpico (Blumenau), Marcílio Dias e Barroso (Itajaí) e o mais antigo, ainda pulsante nas torcidas, Figueirense e Avaí (Florianópolis).

Esses foram clássicos dentro do campeonato estadual. A disputa que movimentava as cidades. Que dividia entre cores, camisas e torcedores. Os clássicos eram e ainda são os jogos imprevisíveis. A falta de lógica. A entrega total.

Pena ter restado somente um clássico que é clássico em Santa Catarina. E por conveniências escusas disputado não no tradicional domingo, mas numa lacônica  quinta-feira. Avaí e Figueirense é o único clássico do campeonato catarinense.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A grande arte



Mauro Pandolfi

Arte, futebol arte! Brigo com o termo. Não gosto. Raramente uso. Mas, se há arte no futebol, Neymar, Suarez e Messi são a melhor tradução. Dribles, chutes, gols. Pinturas de lances, delírios pictóricos. No mesmo patamar de Picasso e Dali. Quando visitei a exposição de Miró, fiquei emocionado. Era o mesmo que ver ao vivo o talento de Messi. Neymar e Suarez completam o trio mais fantástico da bola. Sei que tudo é relativo. Principalmente, o tempo! Há um trio mais fabuloso que este na história do futebol?
Três é um número mágico. É o equilíbrio na democracia. Foi o riso mais escrachado da tela. Uma delícia ou um desastre nas relações afetivas. Três foram os mais famosos heróis de espadas e de uma turma bendita de amigos jornalistas. Um em três numa santíssima trindade. Terceiro é o dia da volta de um salvador. Três! Há tempo que a bola suspirava por um trio tão espetacular. Um moleque de asas nas chuteiras, um mordedor inspirado e o cérebro mais vistoso do planeta. Neymar, Suarez e Messi não só geniais. São amigos! Los três amigos!
Gosto de brincar com o tempo. Há algum trio tão fantástico? Pelé, Tostão e Jairzinho é o mais mortal produzido no Brasil. Talvez, Garrincha e Vavá, ao lado do Rei, seja também insuperável. Eu gosto de Renato, André e Éder.(Além de um gremismo insano, nunca jogaram juntos. Nos meus sonhos, são insuperáveis!). Puskas, Cruyff, Di Stefano, Maradona também tiveram parceiros espetaculares.
Mas, o que torna extraordinário o trio do Barcelona é a visibilidade. É o visto, o assistido, presenciado. Todos os jogos na tela de uma tevê, computador, celular, etc. Não como lenda ou imaginário. Quanto mais longe o tempo do feito, mais aprimorado é o talento. Eles estão construindo a mitologia em tempo real. O eterno Evaristo Macedo tem uma exata definição. "Não sei se eles são os melhores. O futebol sempre se renova, se modifica, se transforma. Talvez, daqui alguns anos, apareceram melhores que eles. Sempre é assim. É a vida!".

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Jogos perdidos



Mauro Pandolfi

Há jogos que estão perdidos. Escondidos num velho almanaque, num arquivo de jornais antigos, na memória e, com sorte, no youtube.  O Guanal é um deles. Ypiranga e Atlântico é outro.  Partidas afetivas, emocionadas e lúdicas da aurora da minha vida. Era uma festa. Movimentavam uma cidade e duravam uma semana nas conversas com os amigos.  Dissecados, desconstruídos, eternizados. Eram clássicos de lotar estádios. Um fascínio dos estaduais. O ultimo movimento romântico da bola!
Quinta-feira vi um destes jogos. América x Bangu. O mais antigo do Rio. 111 anos de rivalidade. Tão velho que era chamado de Clássico Bisavô! Parei, olhei, viajei. Busquei Tadeu e Edu no 'Diabo Vermelho'. Esperava encontrar Paulo Borges e Parada nos 'Mulatinhos Rosados'. Tempos românticos em que os clubes tinham estes apelidos carinhosos. É, falta poesia na aridez moderna da bola.
O jogo foi em Mesquita, com menos de mil pessoas (990 para ser exato) no estádio.  Já foi um jogo para mais de trinta mil pessoas no Maracanã. Aliás, havia algo de Maracanã em Édson Passos:  O placar eletrônico era do antigo Mário Filho antes da reforma.  Fiquei esperando a frase: Adeg informa! Poxa! Tu é velho, Alvarenga!
E, foi um bom jogo. Algo de antigo. Tentativa de toque de bola. Ia e voltava. Lentamente! Quase nada de moderno. Dois times estanques, sem compactação das linhas,  nenhuma movimentação. Muito disputado. Virada de placar, alguns dribles e golaço de falta. Magnum, nome sugestivo para um 'matador', cobrou no ângulo.  Lá onde a coruja dorme. Fantástico! Cinco gols! 3 a 2 para o América. Dois históricos clubes que lutam contra o rebaixamento, o esquecimento, a sobrevivência e o fim. Deu saudade de um passado glorioso. 
Vitória por WO. Pontos perdidos por jogadores irregulares. Goleiro completando o time na linha. Zagueiro tornado goleiro. Campos disfarçados de estádios, interditados, vazios, esburacados, sem grama. Treinador expulso com um cone transformado em megafone gritando em cima da cabine de rádio.  Pessoas sentadas de muros, nas árvores ou das janelas das casas vendo o futebol. É a 'magia', o 'charme' dos estaduais. Um campeonato, que gosto, sendo assassinado pelos cartolas. Uma competição tornada anacrônica que vive os seus últimos momentos. Que pena! Ah, na quarta, o Corinthians jogou  no deserto. Um campo pequeno, ruim, com apagão, pouco público, quase uma várzea.  Paulista? Não! Libertadores! Soy loco por ti, América! Mas, somos, mesmo, a vanguarda do atraso.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

“Sofrências”

 Chiko kuneski

Cristiano Ronaldo mostrou que é um homem. Chorou. Hombridade. O mito tornou-se humano. Mostrou a alma. Talvez tenha mirado, finalmente, a lente da câmera como espelho. Um dia o espelho é o mais cruel dos conselheiros.

Nasceu aos choros
A vida é feita de choros
Da mãe no parto
Do nascido no parto
Um verbo de duplo sentindo
Partir
A chegada
O sair chegando
O cheio vazio
O vazio cheio
O chegar partindo
A cada instante
A cada segundo
Assim é a vida
Feita de águas
Chorosas

Até a última lágrima

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O pulga

Chiko Kuneski

O grande segredo da sobrevivência da pulga é não se deixar encurralar. Arisca. Rápida. Ocupando os espaços que sabe não serão observados. Só a percebemos  quando a coceira da picada já está feita. É leve demais até para a sensibilidade capilar da pele.

A pulga é uma ilusionista. Tão rápida e cheia de truques atávicos que quase torna-se imperceptível. A não ser quando suga o sangue. Tira a vitalidade do oponente. Movimenta-se tanto que apenas truculências a podem parar.

O apelido faz jus. Lionel Messi é isso. Veloz. Ágil. Esperto. Pulsante. Enganador. É um ilusionista para as chuteiras algozes. Usa a truculência adversária a seu favor. Sabe as demarcações de todos os espaços do campo sem olhá-los. Conhece o retângulo espaço de círculos e outros retângulos como nenhum outro de sua época.

Fazendo jus ao apelido, no começo jocoso, sobrevive na capilaridade da grama. Faz do seu futebol uma ilusão de picadas de toques. De bico de chuteira. De vorazes mordidas diretas até na jugular, sem ser percebido. O “pulga” vestiu e se investiu do codinome.

Pegadinha do Messi



Mauro Pandolfi

Pênalti é o gol anunciado. O narrador já prepara a garganta. O torcedor fica em pé.  Ou, ajoelhado, rezando por um milagre.  Onze passos e nenhum segredo. Chute forte no canto, é gol! Há a cavadinha. Delírio poético, sádico, cruel. O pênalti é um fuzilamento. A rede não é de proteção.  O matador está  pronto. Caminha, corre, chuta...., chuta? Gol! Não um gol comum.  Uma linha de passe. O toque curto para o lado. Goleiro desaba, torto, sem jeito. O parceiro entra sozinho, toca macio e a bola, suave, dorme na rede. Que pênalti foi este Messi? Poesia ou cinismo? Arte ou maldade? Sublime ou humilhação?  Ou, o teatro de grama e paixão é mais burlesco do que épico?.
Um lance repetido. Não sei se como farsa. Johan Cruyff e Jesper Olsen fizeram isto. Lá longe, muito longe, no século passado. Cruyff toca para o lado. O goleiro atordoado corre. Olsen devolve para o astro. Ele, com o gol vazio, marca. Mais um numa goleada do Ajax. Cruyff brincou com a seriedade, o conservadorismo, o eterno mesmo do jogo. Tirou a fatalidade do lance. Revelou que o futebol é mesmo uma brincadeira de meninos que curtem a vida adoidado.
Lionel Messi é um poeta que escreve versos com a bola. Líricos, abusados, épicos. Ora, rima com Neymar. Outras, explode em um monólogo insuperável. Neste domingo, reinventou o pênalti. Olhou o goleiro. Parou! .Transformou o verso comum, burocrático num hai-kai: A bola flutua mansa. Tocada, bailada, rebola. Na rede feito dança.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Pelada imaginária

Chiko Kuneski

A grama nos olhos verdes cobria o descampado, camuflando o vermelho barro, na maioria das vezes, lamacento. O céu viva cinzento. A cova da covanca era a futura arena, mas ele não sabia o que significava arena. Talvez aquele partido que o pai falava mal.

Nas traves o véu de noiva impecável. Tão transparente que parecia não existir, até porque não existia, a não ser nos seus verdes olhos faiscantes. Não viam os eucaliptos das traves aramados com barbantes. Não tinha travas.

As solas dos pés não tinham travas. Nem de borracha, nem de metal, nem de sonhos. Os olhos verdes fixos miravam o retângulo de eucalipto como brancas traves dos jogos da televisão. Não importava a rede. Que rede? Era tão transparente que somente sua imaginação a via estufar no chute potente.

Tão certeiro e direto que acabava com o jogo. A bola passava pelo goleiro atordoado, pela armação de eucalipto, pela rede imaginária que via estufar feito véu de noiva. Mas todo sonho para na pior realidade.


A bola de gomos polígonos, no cru couro do branco e preto, murchava na farpa da cerca de arame. Os espinhos metálicos destruíam a alegria sonora do grito de gol. 

O passado das coisas eternas

sábado, 6 de fevereiro de 2016

O maestro

 

Mauro Pandolfi

Esqueça Rivelino. Ótimo! Superestimado demais. Lembre de Dirceu Lopes. Estupendo! Injustamente subestimado. Escolha Ademir da Guia. Mais divino que Rivelino. Porém, não tem o reconhecimento dele. Que tal Dicá? Maravilhoso! Descobriram já velho. Então, Tadeu Ricci! Só os gremistas e americanos sabem o seu valor. Pita e seus lances mágicos. Ilusão de agradar os olhos. E, a modernidade de Falcão? Um futebol de outro tempo e o melhor parceiro dele. O grande jogador dos anos 70 no Brasil foi Paulo César! O Caju? Não, este foi só uma fantasia, lirismo. Um outro Paulo César, inteligente. mais cerebral, intenso, de uma junção entre o antigo e o novo. Ficou mais conhecido como Carpegiani na Copa de 74, para se diferenciar do outro, o Caju! E, como foram diferentes! Hoje (06 de fevereiro), ele está de aniversário (67 anos). Zico, Junior e Sócrates foram geniais na outra década, a de 80.
Há jogos eternos na história. Ficam marcados na memória, nos arquivos e no you tube. Fluminense e Internacional fizeram uma partida inesquecível, no Maracanã, em 1975. A Máquina Tricolor de Rivelino, Paulo César, Carlos Alberto Pintinho encarou o Internacional de Figueroa, Falcão e Paulo César. A arte e a força. O talento e a garra. Os estereótipos em campo. Venceu a arte e o talento. Não, o do Fluminense. O Inter destroçou a máquina. Caçapava anulou Rivelino. Outros, sumiram. Carpegiani desestruturou o jogo, comandou a partida, classificou o time para a final e garantiu o título brasileiro de 75. "Te cuida, Beckembauer!" diziam os jornais gaúchos. Porem, o Inter tropeçou na Libertadores. Mas, é outra história.
Paulo César Carpegiani dominava o campo. Parecia múltiplo. Estava em todo lugar. Sempre próximo de um companheiro para o passe. Jogava desmarcado, o adversário, atônito, não sabia como impedir a movimentação. Mestre do passe curto, da triangulação, da chegada na frente para o chute. Talentoso no lançamento. Poucos faziam uma virada de jogo tão precisa. Tão espetacular, que fez dois laterais comuns, Cláudio e Vacaria, entrarem para a história do clube. Ele alternava o ritmo da partida. Cadenciava ou deixava rápido. O dono do meio-campo. Parecia ver o jogo do alto da arquibancada. Como diziam naquele tempo, um maestro!
Carpegiani foi o grande jogador da década de 70. Quase esquecido, pouco lembrado, vive um ostracismo. Faltou uma Copa do Mundo. Se tivesse vencido, estava no panteão dos heróis. Queres saber, mesmo, como ele jogava? Quando vejo Iniesta, vejo Carpegiani. O mesmo talento em ler o jogo, a imensa sabedoria em mudar as coisas, o mágico em descobrir saída onde não há. Geniais! 
Os joelhos não resistiram. Tornou-se treinador. No primeiro ano, ganhou a Libertadores e o Mundial de Clubes com o Flamengo de Zico. Um time que jogava como ele.  Brilhou numa Copa do Mundo dirigindo o Paraguai. Treinou tantos clubes por aí. Bons e discretos trabalhos. O técnico era igual ao jogador. Muito tático, essencialmente tático, numa atividade no Brasil, que pede mais motivação. Carpegiani era um  armador incrível e um ótimo artesão de equipes. Muito inventivo. Aqui, quando o torcedor e o jornalista não entendem uma opção tática, eles o definem como 'inventor', um professor Pardal! Este epíteto grudou em Carpegiani. Ele sumiu, está escondido em algum canto, longe da bola. Azar do futebol brasileiro!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Adorável lavanderia



Mauro Pandolfi

No canto, na espera, ele surge rápido.  Parece que ninguém está atento. Tenta o drible. Passou pelo primeiro. Enganou o segundo. O terceiro não conseguiu pará-lo. Tudo certo. Vai em direção do gol da vida. Mas, tudo tem um mas... O quarto não o deixa prosseguir. É um zagueiro duro. Neymar foi parado. O fisco espanhol é mais ligeiro. Atropela o  craque, enquadra, ameaça de prisão. O pai, uma espécie de safadão, tenta livrar a cara do filho. Disse que pagará a multa e tentará escapar da cadeia no Brasil e na Espanha.
O futebol é como a vida. Tem as alegrias e as mazelas. É corrupto como a política.  Genial como as artes. Seus 'heróis' também são vilões. A imensa quantidade de dinheiro que circula o transforma numa grande lavanderia. Empreendimentos de russos, árabes e, agora, os chineses. Messi, Mascherano, Sergio Ramos, Leandro Damião, entre outros, enfrentam estes duros 'beques' da justiça.
Quanto custou Neymar? Quanto vale? Duas perguntas difíceis de responder. O Santos acha que recebeu pouco. Dirigentes atuais do Barcelona alegam que pagaram muito. Quem também reclama é Delcir Sonda, dono da DIS. Sonda é uma espécie de parasita que infesta o futebol. O fisco espanhol investiga a negociação, suspeita de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e fraude. Já ouviu esta semana ele e o o pai em Madri. O velho Neymar assume parcialmente as acusações e livra a cara do filho. "Ele só joga", afirmou. O fisco não tem a mesma convicção. E, Neymar poderá sofrer um processo. Atualmente, a multa gira em torna R$ 450 milhões.
No Brasil, Neymar está sendo processado pelo Ministério Público de São Paulo. Além das acusações do fisco espanhol, há outra: formação de quadrilha. E, Neymar poderá ser preso. Depois da Lava Jato, é bem possível um figurão ver o sol nascer quadrado no Brasil. É triste ver Neymar nesta situação. Um gênio em apuros por ganância, avareza, luxúria. É uma repetição na vida brasileira, dos milionários, dos rentistas. Patrimônio é fundamental. Quanto mais, melhor! Se o bem for um 'presente', mais maravilhoso é! Mesmo que seja necessário ocultá-lo! Mas, sempre tem um xereta de olho. E, aí, a desculpa tem de ser muito boa, convincente, com um advogado esperto, amigos na mídia, discípulos crentes e fiéis... etc.
Triste o futebol! Há os craques, os cartolas, os jornalistas, os canalhas. Às vezes, estão no mesmo time. Lado a lado. Corrupção, fraudes, acertos. Será que o resultado é correto? Ou foi armado? Não sei! Será que vale a pena ficar na frente da tevê ou na arquibancada? Ou, escrever? Enquanto continuar achando que é um teatro de grama e paixão, vale! A emoção de um passe, de um drible, de um gol, de um jogo épico, é maior que a canalhice ou a esperteza. É a visualização da paixão, do encantamento, do prazer, da vida. Viva o futebol!

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Canavarros

Mauro Pandolfi

Canavarros! Gostei da sonoridade do nome ao escutar o repórter da Sportv escalando o Grêmio em um jogo da Taça BH de Juniores em 2013. Canavarros! Mais um argentino, resmunguei, daqueles que a torcida gremista adora. Raçudo, vibrante, cabeludo, que nunca deu certo. Mas, os gremistas amam. Deve ser o sotaque, a alma castelhana, sei lá! O jogo começou. A câmera dá um close. Nada de gringo. Ao contrário, um guri bem brasileiro. Um jogador comum, com muita vontade, e, certamente, cheio de sonhos, como todos meninos que correm atrás da bola.
Em 2014, no início da temporada, o treinador Mabília escalou um time de jovens no gauchão. Canavarros estava entre eles. Bom marcador, voluntarioso, aplicado. Faltava qualidade ofensiva. Eis um garoto que vai ter uma carreira em times menores, pensei. O tempo passou. Mabília foi substituído por Enderson Moreira e Canavarros sumiu no vento. Mais um guri que desaparecia na fantasia do futebol.
O Internacional de Lages ressurge de um passado distante. A velha paixão, escondida na alma, está de volta, agora, longe do Vermelhão. Mabília é o treinador. Na lateral direita, Canavarros. Fez um campeonato catarinense de boa qualidade. Continuou um marcador eficiente e melhorou a parte ofensiva. Aprendeu a sair em diagonal, os cruzamentos mais precisos e um bom passe. Vai lutar pelos médios da Série A e os grandes da B, refleti.
O futebol é a porta da esperança de um menino pobre. A mobilidade social é possível graças ao talento. Também é assim nas artes. A má qualidade educacional do país limita muito o sonho de alguém que sobrevive na penúria, na pobreza, no isolamento que são os guetos onde moram os miseráveis. A bola é uma varinha mágica  Poucos, viram estrelas. Muitos, perambulam de clube em clube atrás dos sonhos imaginários que se despedaçam na poeira da vida, onde desaparecem sem deixar lembranças.
Cláudio Canavarros de Freitas buscou a vitrine do Campeonato Paulista, o mais 'charmoso' do país. Num treino banal do XV de Piracicaba, sentiu-se mal. Caiu desacordado.  Mal súbito foi o diagnóstico. Não resistiu. Morreu na manhã de segunda feira. Aos 21 anos! É muito cruel a morte de um jovem. Uma tragédia deixar a vida antes de começar a viver, a sonhar, a se encantar. Que falha grave tem a vida, os desígnios de Deus, o destino com a humanidade. Triste, muito triste, imperdoável morrer jovem! Canavarros, continue desfilando sua raça num campo de sonhos de algum fã!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Baliza

 

Mauro Pandolfi

Foi lá por 1973, céu aberto, verdes anos chumbados, que conheci Baliza. Três anos mais velho, mais alto, mais pobre. Carlinhos, amigo de rua e parceiro de time, me convidou para um torneio no Flodoardo Cabral. Mítica escola de Copacabana que dividia o muro com o Vermelhão. No segundo jogo, salvei um gol em cima da linha. "Tu me dá sorte, cara!", me abraçou. Era o início de uma amizade. Fomos campeões. Baliza defendeu dois pênaltis na decisão. A medalha e o pequeno troféu ficaram com o Carlinhos. Ajudei Baliza a desmontar as traves e colocar no saco. "São minhas. Nunca me traíram", disse. Sorridente com o imenso pacote nas costas partiu. "Só joga com elas. Nunca vi jogar sem as balizas, como ele as chama. É louco isto, Maurinho!", tentou me explicar Carlinhos. Nos despedimos na primeira esquina.
Baliza morava no alto do Copacabana. Uma pequena casa de madeira com a mãe faxineira, o pai músico da noite, duas irmãs mais velhas e um irmão mais novo. Vida dura como a de todos os pobres deste país. "A tua vida é boa, Maurinho. Come bem todos os dias. Aqui em casa é tudo contadinho. Só podemos comer quando o pai e a mãe estão em casa. Eles dividem a comida. Ninguém pode comer fora de hora. Por isto gosto de filar o café da tarde na tua casa, viu!". O sorriso maroto de quem confessava uma esperteza. Ri com ele. "Então, vamos! O tio Cacildo trouxe queijo e salame e a tevê veio do conserto, dá para ver National Kid". E, lá fomos nós. 
Uma tarde, Baliza bateu lá em casa. Me chamou para ir com ele buscar o dinheiro para seu pai numa boate da zona. Fiquei curioso, entusiasmado, intimidado. A zona ficava ao lado do cemitério. Entramos num labirinto de becos. Chegamos numa casa amarela. Na porta, uma mulher maquiada o recebe com um beijo. "Vanda traz o dinheiro do Bastião que o filho veio buscar!". Ela nos manda entrar. Nunca tinha visto tantos sofás e portas. De uma delas, sai uma morena pequena enrolada numa toalha verde. Olhei encantado. 'Nunca viu uma mulher, alemão?", perguntou. Vermelho, com vergonha, respondi baixinho, quase sussurrando: "de toalha, não!". Ela riu. Me encarou, acariciou meu cabelo e deixou cair a toalha. "E, sem?" Corpo bonito, seios pequenos, os pelos ralos, coxuda, bundinha redonda...um tesão!. "Qual é a tua idade?". "Treze!" A mulher maquiada a repreendeu e mandou entrar num quarto. A cena nunca fugiu da memória. Virou sonho, desejo, meu símbolo de prazer. Ainda penso na morena.
Futebol ao sol e à sombra. Todo dia era dia de bola. Num deles, justo contra o time do Carlo e do Orli, faltou goleiro. O Mosquito viajou. Lembrei do Baliza. Fui até a sua casa. "Contra quem o jogo?", perguntou-me. "Lá no Boldo, contra o time do Carlo", respondi. "O Fernando é que nem eu. Tem as suas balizas, só joga com elas. Então não vou!" Sempre me intrigou a histórias das traves. "Isto é uma bobagem, Baliza! Frescura!". Ficou irritado. "A tua vida é boa, já disse isto. As balizas são as únicas coisas que tenho. Fui eu que fiz. São extensão das minhas mãos, ficam embaixo da minha cama, converso com elas, passo cera, cuido bem delas. Nunca me traíram. Nunca uma bola bateu na trave e entrou. Ou vai para fora ou cai no meu colo. Me sinto gente embaixo delas. Só neste momento que sou respeitado", desabafou. As mãos grandes, seguras, ágeis esconderam as lágrimas. Foi a última vez que falei com ele. Quatro dias depois fui embora de Lages.
Março de 99. Um sábado quente. O meu filho André era um bebê e fui num casamento em Palhoça. O salão grande oferecia vários lugares. Escolhemos um longe da banda. Logo em seguida chegou um casal. Conheci de cara. Era o Carlinhos e a esposa. A noiva era prima da mulher dele e amiga da minha. A festa começou. Falamos de tudo. Vida, filhos, família, trabalho e Lages. Há um ano estava morando em Curitiba. Mas, falou de todos. Descobri que o Bolacha se tornou bombeiro; o Abel , contador; João e o Tonho assumiram a lanchonete do pai...de todos.
'E o Baliza?' perguntei. "Não sabe da tragédia, Maurinho? Foi em 78, o pai dele chegou bêbado e ninguém sabe como, tacou fogo na casa. Além do velho, morreu uma irmã. Não sobrou nada. Até as balizas dele queimaram. Ele desapareceu de Lages. Virei a cidade de cabeça para baixo e não encontrei. A família sumiu", contou. Paramos um pouco a conversa. O jantar foi servido. Mas, a cerveja era mais gostosa que a comida.
Carlinhos é um ótimo contador de história. Ele notou a minha tristeza. "Não fica assim, Maurinho. A história não termina aí. Em 87, estou fazendo um trabalho de pesquisa no Coral e quem encontro. Magro, mal vestido, mais silencioso: o Baliza. Almoçamos juntos. Contou o que aconteceu. A família foi para Carazinho, cidade da mãe dele e agora resolveu voltar. Pediu um emprego. Consegui na firma uma vaga para ele. Tu nem imagina o que aconteceu? Tem sempre um torneio de Natal. Faltava um no meu setor e convidei ele. Já foi avisando: não sou goleiro. Sou centroavante!", a história é cortada pelos noivos para as fotos.
A cerveja estava mesmo boa. Carlinhos não parava de falar com as pessoas, familiares de sua esposa. Passou um tempo e ele voltou à minha mesa. "Maurinho, o Baliza foi o artilheiro. Fazia gols de todo jeito. Uma coisa curiosa, geralmente a bola batia na trave e entrava. Ele ia lá beijar a goleira. Ele me dizia: sempre disse para vocês que o goleiro não pode confiar nas balizas. São como a vida,  traiçoeiras!". Chegou a hora de ir embora. Dei um abraço forte, um beijo no rosto do Carlinhos e nos despedimos. Nunca mais o vi.
Gosto de ler os jornais das cidade que morei. Em novembro, no obituário do Correio Lageano, vi está notícia: "...Antônio dos Santos, 58 anos, morreu atropelado ao sair da Igreja Deus é Pai por uma caminhonete dirigida por um motorista embriagado que foi detido pela polícia. Antônio foi goleador do futebol amador de Lages, onde era conhecido por Baliza..." A lágrima escapou no teclado. Lembrei dele, dos jogos, das conversas. Eu nunca soube o seu nome. Baliza era mágico. Não precisava saber o que estava escrito na certidão, fiquei surpreso ao ler que ele era Antônio como eu.