quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Universo em desencanto. O adeus?

 

"O homem é um vago bicho sem destino que nasceu em cima desta terra, sem saber porquê e nem para quê".
Foi com Tim Maia que me iludi com o Racionalismo. E, foi o mesmo Tim quem abriu os meus olhos sobre o Racionalismo e o desencanto do universo. Mas, há pensares deste Universo que levam à reflexão, à tentativa de entender os movimentos das pessoas durante este tempo sombrio, seus atos, sua estupidez. É a vida por um fio? Breve, não haverá ninguém? Ou é só um delírio de um velho com medo de enlouquecer? Ou, pior, descobrir a lucidez?

Mauro Antônio Pandolfi

Há tempos que não penso no futuro. Nada planejo. Nem cogito. Apenas, espero. Até o passado virou um enigma. Aconteceu mesmo ou é ficção, um desejo, um sonho que o tempo ou a imaginação criou? Entendi que o passado não é definitivo, nem para sempre. Ele muda, altera, inventa, vive. Cria ilusões, revela decepções ou apenas mitiga a saudade, a utopía perdida. Vivo o presente. Que presente? O agora, o já! O hoje que é igual ao ontem e muito semelhante com o amanhã? Todo dia tem o mesmo caminho. Até as nuvens não se modificam. Sei que muda quando vejo a lua. Outro dia é quando o sol me acorda. O meio do caminho é quase sempre o mesmo. É um buraco de minhoca onde o espaço permanece igual. Sei onde estou e com quem estou. Mas, qual tempo? O que já aconteceu? O que virá? O da criação da vida ou da destruição? A biopolítica que propõe a eternidade ou a necropolítica de rudimentares fundamentalistas que usam a Bíblia como um vulgar manual de autoajuda? 2020 bagunçou as minhas, parcas, ideias. As incertezas ruiram. Nada ficou de minhas dúvidas. Como se fossem sólidas, desmancharam-se no ar. Agora, busco as certezas que já tive. Muitas no passado de um adolescente sonhador. De um jovem que flertou com utopias. Loucura ou lucidez? Em 2021 espero ter algumas respostas.
Elas começam no futebol. A paixão vai se reconstruindo aos poucos. Encontro no Maurinho o desejo, a poesia que o Vermelhão despertava. A ansiedade que durava uma semana. Às vezes, mais. Uma doce angústia. Domingo, sempre gostei dos domingos, vestia a camiseta branca, com o símbolo vermelho, atravessava a rua, já me conheciam nas entradas do estádio, descia rumo à portão de acesso ao campo, ficava perto do Ricardo e entrava feliz com time. Nenhuma foto tenho! Gostava de ouvir os fogos, os gritos da torcida. Aqueles minutos de felicidade sempre foram eternos. Muitas vezes, ficava como gândula. Outras, ia para a arquibancada ou, como dizia meu pai, 'para casa se o Inter estivesse perdendo'. Foi ali, lá por 1966, que descobri como a bola é apaixonante. Durou pouco. O Inter foi jogar no Municipal, lá no Coral. Distante demais para um garoto de seis anos. O rádio, a tevê, a descoberta da leitura, as figurinhas, os jogos na rua, no Boldo, ampliaram o universo desta paixão. Agora, este rude tempo, de canalhas no poder, de genocidas, de verme e vírus, quase provocaram o desencanto da paixão. 'Sobreviver, neste tempo, é um ato subversivo', como diz o Mário. Manter o desejo, o tesão do que te encanta, também, é resistir a destruição programada. É um ato revolucionário! E, escrever, o que é?
Muitas vezes é um peso. Ainda tenho dificuldades de me expôr. Me revelar os segredos que a alma esconde. Afinal, uso muito este crônicas como terapia. Em vários momento, sinto alívio com que escrevi, contei ou analisei. Em outros, bate uma melancolia, especialmente, quando falo do passado, do que vivi, com quem vive, com quem sonhei. Por instantes, a tristeza e saudade formam uma dupla que afeta o coração e a mente. Mas, também, é prazeroso. Encontrar um 'achado', uma frase bem feita, redonda como uma poesia de Chiko Kuneski, um pensar lúcido, faz bem para a alma. E, principalmente, se alguém lê, curte e comenta. Aí, é uma vaidade gostosa.
É a hora do adeus. De fechar um ciclo. De agradecer os leitores, os que passam, curtem, ignoram, compartilham. Não penso no futuro. Este crônicas pode chegar ao fim ou até virar um livro. Vou deixar o tempo levar. Agradeço todos. Desejo um Feliz Natal e um 2021 resistente, lúcido, saudável.
Como um regalo, uns versos de Ferreira Gullar:

"Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa com a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bichjo
estelar
que sonha
(e luta).

 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Memórias...(14)

 

 

"Nunca vi coisa igual! Nunca vi coisa igual!
O espanto foi do lendário Ruy Carlos Ostermannm, o comentarista que sempre tratou o futebol como uma epopéia poética e analisava, cada lance, cada jogada, a dinâmica do jogo, com a profundidade de um filósofo.

Mauro Pandolfi

Poesia no futebol não é apenas o drible estético. Nem o passe métrico como um soneto. A poesia vai além da beleza pela beleza, do estilo pelo estilo, do devaneio pelo fetiche da arte. A poesia transforma o grito, a indignição, a fúria, em uma narrativa épica, gigante, imensa, indescritível. Assim foi a Batalha dos Aflitos. Nem o tempo diminuiu o fascínio deste jogo. O jogo mais inesquecível para os gremistas. Há 15 anos sofri, chorei. Mas, como um certo Roberto repete sempre, 'o importante foi que emoções, eu vivi!' As cenas se repetem feito um vídeoteipe na memória.
E, como foi emocionante! Assombroso! Não foi o melhor jogo que vi do Grêmio. Muito longe disto. Nem o mais importante. Renato comandou o mais relevante de todos numa madrugada de Tóquio. Porém, é o o que mais lembro. Já contei a história, feito um velho tio, inúmeras vezes para os meus sobrinhos, para os filhos dos amigos, para os meus. Hoje, 15 anos depois, André e Pedro lembraram de cenas, de palavras, de cantos, das lágrimas, da festa, da alegria. E, eles não ligam para o futebol. No entanto, a Batalha dos Aflitos, a emoção dos pais (Elaine chegou a chorar e borrar a maquiagem para o casamento da Ellis e do Guido) e dos tios, deixou marcas no coração, na alma, na história de nossas vivências e na memória afetiva.
É, provavelmente, a última memória que publico no blog neste ano. Deixei para o fim a Batalha dos Aflitos. Uma das maneiras de perpetuar algo é sempre contá-lo. Nunca como farsa. Sempre como epopéia. Eis a epopéia maior dos gremistas. Ah, parabéns a Ellis e o Guido pelos quinze anos de casados. Escolheram a melhor data possível para celebrar e comemorar um casamento. Um dia de batalha...


Dez anos!


Mauro Pandolfi

Impossível! O substantivo masculino do imponderável se transmutou em um outro extraordinário: Inacreditável! Há dez anos, um guri de 17 anos provocou esta mudança no léxico.  Anderson andou, flutuou, driblou zagueiros, entrou na área, deslocou o goleiro e transformou um simples gol numa façanha épica, eterna, contada como fantasia em todo mundo da bola. A Batalha dos Aflitos é o momento em que os gremistas descobriram que Cândido Dias inventou em 15 de setembro de 1903 foi a alma. O futebol é o elo que une as almas negras, azuis e brancas.
71 segundos tem o tempo da magia. Do pênalti defendido por Gallato ao gol de Anderson. Do medo, desespero, desconfiança, vergonha para a alegria, o prazer, a mistificação. Sete homens e um destino. A libertação da dor gremista. A fuga da 'humilhante' segunda divisão. É a grande vitória do Grêmio. Não é a maior. É a   mais impactante. O título é irrelevante, até desnecessário. A conquista é fantástica, mítica. É a nossa glória. A imortalidade cantada no hino é materializada.  Esta Batalha é o maior drama contado no teatro de grama e paixão.
Mas, é também a marca da nossa 'tragédia'. Somos reféns do feito. Esperamos sempre que se repita. Um lance, um pensamento mágico nos libertará, outra vez. O meu amigo Rai Carlos, o vidente cego, afirma que o Grêmio voltará a ganhar títulos quando deixar de ser imortal. "O novo só vem quando o velho vai embora. Para renascer, tem de morrer. O imortal é eterno. Vive dos feitos antigos. Só com fim do Olímpico e a Batalha dos Aflitos se tornar somente história, seremos campeões", afirma. Como um feito deste não ser eterno? Impossível! Inacreditável torná-lo algo mortal!.
Era sábado. Quente, muito quente, infernal. Fim do sufoco. Liberdade! A volta! O dia do casamento da Ellis e do Guido. Era o padrinho. O terno já estava separado. O jogo corria forte. Pedro e André, pequenos, saudades daqueles dias!, assistiam comigo. A Elaine estava se arrumando. Bisbilhotava sorrateira os lances. "Quanto tá?", perguntava. Veio a confusão. Parei. Um expulso. 'Meu Deus', exclamei. O pênalti. A segunda expulsão. 'Ferrou!', falei. A terceira expulsão. "Calma, pai!", diz o André. A quarta. 'PQP!', berrei. A Elaine veio até a sala. "O que foi?", quis saber. Contei. O pênalti vai ser batido. Silêncio. O jogador corre, bate, Gallato ... defende!!!. Vibramos! Nem deu tempo de gritar. Anderson está dentro da área....é golll! Pulamos, gritamos, saltamos, nos abraçamos. As lágrimas escapam. "Vou estragar a maquiagem", choramingava a Elaine. O bom senso dela não deixou eu ir ao casamento com a camisa do Grêmio. Lá, encontro o Márcio e o Mário. Abraçados, cantamos o hino. O dia de futebol mais emocionante de nossas vidas. Nada será maior.
Dez anos! O tempo passou. Vivemos tantas coisas. André e Pedro são adolescentes. Não gostam de futebol. A Elaine continua bonita. O Mário, o Márcio e eu ainda nos encantamos com o futebol, nem tanto com o Grêmio. A bola ainda me seduz. Vibro, suspiro pela bola bem tratada, bem jogada. Um belo jogo de futebol é uma das melhores aventuras da vida. No entanto, quando escuto o nome A Batalha dos Aflitos o coração dispara, aflige, machuca. Me sinto mais torcedor, amante tricolor, um imortal. Eu sou um highlander gremista. "Até a pé nós iremos......"!

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Gaia bola

 

"A vida necessita de ilusões...então, para viver, necessitamos de arte a cada momento".
Desconfio que Friederich Nietzsche treinou algum time alemão ou escreveu algum texto sobre futebol. Entendeu, como poucos, a função da arte e do imaginário no teatro de grama e paixão.

Mauro Pandolfi

O futebol é imaginário! A realidade é uma ilusão de ótica. A poesia é mais encantadora que a técnica. É mais apaixonante! Transforma em vida aqueles gritos de festa, de desespero, de chamada para a luta. A prosa sobrepõe a tática. Quebra a estratégia de um pensar com seu jogo encandeado, organizados em parágrafos, cerebrais ou intuitivos, mais poderosos que uma solidez defensiva. O drible, aquele dado por quem tem 'asas na chuteira' - o grande achado poético de Chiko Kuneski -,  não é um jogo de corpo para enganar o adversário. É um passo de uma dança, um balé requintado, tão surpreendente, tão envolvente, como se fosse uma metáfora de uma reflexão filosófica sobre ética e moral. O passe é um discurso silencioso mais eloquente do que o mais sagaz dos políticos. Há tempos que o futebol deixou de ser uma disputa tribal. A arena lembra mais um teatro de grama e paixão, onde a vida é encenada, como um espelho. O futebol é o mais espetacular engano da  vida. Quando o futebol perde o imaginário, ele se torna o mais lúdico e triste olhar da realidade.
O futebol de agora é real! Duro, seco, previsível. Não há mais poesia e nem prosa. O teatro de grama e paixão ficou vazio. Assim, como o jogo. Não foi a pandemia que destruiu a beleza da jogo. Ela, a pandemia, ressaltou o passado que desfilou dias e dias nas tevês cheia de ilusões, de farsas, de histórias, de heróis e semideuses. Foi a volta do futebol que aniquilou o imaginário. O futebol ficou mais burocrático, sem alma. Virou um evento chato, frívolo, muitas vezes, insuportável. Não há o grito que inventa vitórias e impede derrotas. Não há mais o canto que transforma o homem comum num 'superhomem' para nos redimir de nossos fracassos. Estamos vendo 'o crepúsculo dos deuses', onde Leonel Messi perdeu a divindade, assim com Pep Guardiola e Jurgen Klopp. Os grandes times pré pandemia se desmoronam jogo a jogo, tornando-se saudades. A solidez desmanchou no ar. Só Cristiano Ronaldo sobrevive. Mas, sempre duvidei que fosse humano.
Gosto de escalações. São poesias declamadas. A última que me doía tanto recitar era: Diego Alves; Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Mari e Filipe Luís; Arão, Gérson, Arrascaeta e Everton Ribeiro; Gabigol e Brino Henrique. Obra de Jesus, o mágico e sedutor. Parecia eterno, para sempre. É para sempre! No imaginário, na paixão de um torcedor. O tempo moveu a ilusão para a realidade. Jesus, depois do terceiro mês, partiu. O encanto foi sumindo, desaparecendo, surge por instantes, só por instantes. assim é o futebol! É efêmero e perene, na doce contradição do viver. Um flamenguista, assim como um gremista saudoso do Grêmio 2017 - já foram os santistas os botafoguense, os vascaínos, os colorados, todos os torcedores que amaram um supertime, esperam sempre o retorno da extrema felicidade vivida. O futebol é imaginário como memória. Só como história! Iguais aquelas contadas nas rodas dos bares, num almoço de domingo, num reencontro de velhos amigos. Era uma vez...
Nem todos os jogos tem noventa minutos. Às vezes, pouco mais de vinte ou dez. Vou desistindo quando a bola não é poética. Quando os passes não tem nexo. Chutados, largados, perdidos. Só Grêmio me mantém até o fim da partida. É o suspiro da paixão. Mas, não sofro mais. Nem grito gol com a fúria saindo das entranhas. Vejo por esperança, por desejo, por um drible de Pepê, por um gesto elegante de Jean Pierre, por reconectar com o Maurinho e o Vermelhão, por, ainda, amar o futebol.


 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Diego, 60!

 

"Lá na clínica tem um cara que diz que é Napoleão e outro que pensa que é San Martin. Quando digo que sou Maradona, eles não acreditam".
Diego Armando Maradona é o mais complexo ariete da Santíssima Trindade da bola. Foi deus e humano. Brilhou na lucidez de gênio e conseguiu sair vivo da loucura. A bola o tornou imortal.
Mauro Pandolfi
Há algo de Pelé em Maradona. Nunca foi 'Rei', nem 'Príncipe' e nem teve um bando de fidalgos para cortejá-lo. Diego Maradona foi mais divino. Flertou com 'Deus'. Tratado como Deus. Um 'Deus' cheio de devotos, uma igreja para para praticar os rituais e hereges para contestar a divindade. Dizem que na cruz deste Deus está marcado, em azul e branco, o número dez. Único e envolvente, Maradona seduziu com um jogo poético e mortal, forjados em dribles e chutes impossíveis. Fez o gol mais fantástico de uma Copa do Mundo. Correu 55 metros, com a bola acarinhada no pé, em sete segundos numa velocidade média de 29 km/h. Um velocista de 100 metros chega a 35km/h. Eles correm em linha reta, ninguém para atrapalhá-los, sem uma bola no pé. O ex-zagueiro Ruggeri contou, no programa Resenha da ESPN Brasil, sobre o lance.'Parei para olhar. Ele foi correndo, a bola grudada no pé, passou por um, por outro e quando chegou próximo do goleiro, nos contou que lembrou do irmão, que havia cobrado o drible no goleiro num lance parecido. Quem vai lembrar disto num ato de segundos? Um monstro! Diego precisa ser estudado!' Isto é Maradona! O 'Deus' que se tornou homem.
Há muito de Manoel Francisco dos Santos em Diego Maradona. Não só os dribles mágicos e alegria do povo os tornam parecidos. Flertaram, conviveram com a dor, o desespero, as tragédias pessoais, os fracasso levaram ao fundo poço. Mané Garrincha sucumbiu ao álcool. Da miséria, a depressão e a morte. Diego Maradona teve mais sorte. Saiu com vida. Sua ex-esposa Cláudia Villafañe declarou certa vez: 'Diego está sendo devorado por Maradona'. A prisão, o uso intenso de cocaína, a internação no hospício. Diego sobreviveu, assim como Maradona. A maturidade o deixou mais rebelde, contestador, provocador, às vezes, estúpido, ora, irreverente, divino. Altivo, orgulhoso, declara-se 'peronista, fã de Chaves, amigo de Fidel' e detestou quando João Havelange o chamou de 'filho'. Irritado, respondeu: 'no soy hijo de puta'. Maradona sempre precisou de um tango para bailar, sorrir, chorar, viver.
Diego Armando Maradona é a lenda da minha geração. O que mais vi jogar. Como garoto, como um velho. Temos a mesma idade, quem sabe os mesmos sonhos, não os mesmos pesadelos. É o último texto sobre os três da Santíssima Trindade. É o meu agradecimento aos três homens que inventaram a vida, a alegria, o amor, a dor no teatro de grama e paixão. Republico um texto sobre Diego Maradona.
Um tango para Diego
Mauro Pandolfi
"Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao
No ves que va la luna rodando por callao
Que un corso de astronautas y niños, con un vals
Me baila alrededor. Baila! Veni! Volá!"
"A balada de um louco" de Astor Piazzolla pode ser um tango para Diego.
Diego Armando Maradona é a ponta mais aguda do tridente nascido em outubro. Há algo de Pelé, muito de Garrincha. Diego é prosa e poesia. Diego é o futebol. Foi um gênio precoce. Um adolescente atrevido. Um adulto problemático. Um velho a beira loucura. Maradona é um homem complexo. Viveu a lucidez, a glória, a fama, o fundo do poço. Foi excluído como um pária. Reintegrado como um Deus. Desafiou a ordem, rebelde que transitou a margem no futebol. Flertou com a máfia, com ditadores, com drogas e com a morte. Maradona é o melhor representante do fim do século xx. O ídolo da minha geração. Um mito. Uma lenda. Um homem. Tão humano, tão frágil, tão estúpido, tão divino.Maradona e a bola. O futebol sempre foi e será uma fantasia. Ele dá uma media volta e segue a bailar. O canto da torcida lembra uma orquestra executando um tango. Desliza no gramado para o longo caminito. Mano a mano enquadra um rival. A bola é la cumparsita. A esquadra inglesa é envolvida pelos movimentos rápidos e elegantes. Os muchachos acompanham a dança. Vê o zagueiro e arma o gancho. O ultimo movimento é um corte no goleiro. A bola na rede é o derradeiro verso do tango, berrado em plenos pulmões no estádio Azteca. Diego Armando Maradona é o tango jogando. Lírico, encantador, dramático. Aquele gol é arte. Sublime arte. Arte eternizada pelo narrador uruguaio Victor Morales. Ele cantou assim:"....Quero chorar! Deus Santo! Viva o futebol! Golaço...Diegool! ....Maradona é para chorar. Maradona numa corrida memorável. A maior jogada de todos os tempos!....Graças Deus! Pelo futebol! Por Maradona! Por estas lágrimas!..."Futebol e guerra. O simulacro perfeito. Cores, símbolos, países. O campo e a batalha. O imaginário foi tão real na copa do México em 1986. A Inglaterra humilhara a Argentina nas Malvinas. O conflito suicida armado por um ditador louco e desesperado. Dor, sangue, lágrimas, jovens mortos. O futebol como revanche. Diego Maradona como o comandante supremo. Liderou a batalha, venceu com fúria. Um gol estupendo e uma falcatrua típica latina.'La mano de Dios' é a sua obra mais famosa. O lance que faz o transitar em sagrado e o profano. Entre deus e o diabo. Entre a glória e a desgraça. Entre a vida e a morte. Maradona é o mais trágico personagem do futebol. Também, o mais genial.
Diego Armando Maradona é a ponta mais aguda do tridente nascido em outubro. Há algo de Pelé, muito de Garrincha. Diego é prosa e poesia. Diego é o futebol. Foi um gênio precoce. Um adolescente atrevido. Um adulto problemático. Um velho a beira loucura. Maradona é um homem complexo. Viveu a lucidez, a glória, a fama, o fundo do poço. Foi excluído como um pária. Reintegrado como um Deus. Desafiou a ordem, rebelde que transitou a margem no futebol. Flertou com a máfia, com ditadores, com drogas e com a morte. Maradona é o melhor representante do fim do século xx. O ídolo da minha geração. Um mito. Uma lenda. Um homem. Tão humano, tão frágil, tão estúpido, tão divino.
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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Mané, o esquecido!

 

"Fui como Cristo, na vida particular e também no futebol. Já sei que, quando os dirigentes tentam passar os jogadores para trás, eles chiam e dizem: vocês pensam que sou um Garrincha? É isso aí, gente boa, virei um símbolo do que não se deve ser na vida".
Garrincha foi um 'prisioneiro' de Manoel Francisco do Santos. Só conseguia a liberdade de voar com a bola no pé. Aí, era o 'anjo torto' que alegrava o povo com o seu balé encantado...
Mauro Pandolfi

A tevê ligada me pega distraído. De soslaio vejo o Maracanã. Sem ninguém. Lembrei da música de Moacyr Franco. Vi a ilusão no estádio vazio. Sem torcida. Sem vida. O aplauso já foi um sonho. Agora, é quase um pesadelo sombrio. A saudade dos dribles aperta o peito. Nenhum craque repete as suas jogadas. A emoção molha o teclado. Com saudade viajo na memória em busca dos lances perdidos. O 'anjo torto' é um espírito aprisionado no esquecimento. Quase ninguém lembra dele. Numa reportagem sobre as estrelas de outubro não foi citado. Na votação dos melhores do futebol de todos os tempos, de uma revista européia, é um dos menos votados. Mané Garrincha não é mais a alegria do povo. É só um fantasma da ópera do teatro de grama e paixão.
Desiludido com o jogo da tevê busco o desejo no passado. Copa do mundo de 1958. Brasil e URSS. Dois minutos. Didi lança para Garrincha. Ele para. Há um soviético na sua frente. Negaceia o corpo, ilude o marcador e vai... Dez minutos. Outra vez Didi. Mais uma vez Mané. Já são dois soviéticos. Ele vai, volta, engana os marcadores e segue rumo ao gol. 32 minutos. Didi com a bola. O campo está vazio no lado esquerdo. Ele escolhe Garrincha. São cinco em fila indiana para impedir a jogada. Mané para como sempre. O corpo vai, lá foi um. O corpo volta, outro se passou. Toca na bola em velocidade. O terceiro não consegue acompanhar. Mané para, retorna. O quarto o espera. Não cai no conto do drible. Encurta o espaço e o quinto rouba a bola. Nada aconteceu. Não se transformou em gol e nem lance perigoso. Foi apenas poesia. O balé das pernas, das idas e vindas, do olhar feliz do torcedor, do riso alegre do teatro de grama e paixão. O espírito santo do futebol é o drible. O futebol é mais imaginário que real.
Manoel Francisco dos Santos foi um homem brasileiro que inventou o mais original jogador de futebol que o mundo viu. Mané era descendentes de indígenas e negros, operário, sobreviveu as tragédias e a miséria dos brasileiros como ele. Garrincha sempre foi a antítese de Pelé. No corpo e no jogo. O atleta perfeito e o 'torto'. O cerebral e o intuitivo. Pelé era o todo. Garrincha foi aprisionado na margem do campo. O profissional e o amador. Outra diferença é que Pelé sempre escondeu o Édson. Se impôs. A sua 'majestade' enquadrou o homem comum. Já Garrincha nunca se libertou de Manoel. Fora do jogo, viveu como o Manoel. Caçava, pescava e bebia com os amigos de infância de Pau Grande. Garrincha só 'incorporava' com a camisa sete no corpo. 'Era uma criança', disse seu protetor, padrinho, amigo até os últimos dias, Nilton Santos. 'Era um matuto, meio selvagem, meio índio, criado num submundo de miséria e ignorância, um lugar atrasado onde nem o trem parava', afirmou João Saldanha, numa descrição impiedosa, cruel e profundamente real. 'Garrincha, como disse o meu irmão Mário, foi a vingança do brasileiro pobre e sem futuro. Quando parou de jogar, a sociedade deu o troco em Manoel'. A vida sempre foi um João para o Mané Garrincha.
28 de outubro. A ponta mais bela e original da Santíssima Trindade da bola está de aniversário. Até Diego Maradona, o outro vértice do triângulo, foi meio Pelé. Garrincha foi único. "Pelé e Maradona foram geniais. Puskas e Cruyff sensacionais. Mas, o maior de todos foi o 'homem das pernas tortas' - Garrincha. Nunca vi ninguém fazer com a bola o que ele fazia". Quem disse isto foi Di Stéfano que disputa com Pelé e Maradona o título de melhor jogador de todos os tempos.
Garrincha sempre foi um enigma para mim. Gênio incomparável e ou personagem marcante para ressaltar a miséria neste país? Futebol ou sociologia? Arte na bola ou arquétipo na vida brasileira? Agora, rumo ao final, descubro jogos inteiros do Botafogo e da seleção e entendo o fascínio que despertava. que gerou a mais fantástica manchete de um jornal: 'De que planeta veio Garrincha?', jornal El Mercurio, do Chile em 1962. Elza Soares respondeu: fome! Mané deve ter dito o mesmo.
Recordo um texto que falo de futebol, paixão e as asas do desejo.
Asas do desejo
Mauro Pandolfi
Acordei cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido, um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava. Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático. Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a minha resposta. Ele riu. Levantou e disse: 'Vem cá que vou explicar a magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O encantamento do jogo".
A chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui, neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo. Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço pequeno, miúdo e cria ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns, retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra no outro". Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva emendou para o gol.
Vou de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos. Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo. Perguntei o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible, do povo.
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sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Édson, 80!

 

"Pelé não morre. Pelé nunca vai morrer. Pelé continuará para sempre".
Quem está de aniversário é o Édson Arantes do Nascimento. Vida longa! Enquanto rolar uma bola, num campo, numa praia, é dia de Pelé. Ele não nasceu e nem se tormou bola. Pelé é somente o futebol.

Mauro Pandolfi

Édson Arantes do Nascimento é um homem discreto. Muitas vezes, silencioso. Já até confundido com um poeta. Hoje a sua casa está em festa. Pouca gente. Quem sabe, só a família. É o isolamento deste tempo sombrio.. Édson comemora os oitenta anos. Acho que o seu alter ego vai aparecer. Se tivesse feito o concurso para o Banco do Brasil, como queria seu pai, poucos, quase ninguém, conheceria o seu personagem favorito. Mas, Édson preferiu a poesia do campo no lugar da burocracia bancária. Boa escolha! Perdeu a privacidade e ganhou o mundo. Não o Édson. Ele continua vivendo no seu mundo, protegido como identidade que um dia foi secreta, vivendo a reta final da vida com todas as dores, exatamente igual, aqueles que o tempo envelhece. Tenho dúvidas se o Édson consegui ser Èdson em algum momento. Deve ser muito difícil ser Édson quando se foi Pelé. Ele é um homem como eu, você, quem lê, se é que alguém vai ler, este texto é de carne, osso, mortal. Infelizmente, mortal! Enquanto Pelé é infinito. Para sempre!
Pelé era a maior foto na parede do quarto. Aninhado na rede do gol mil, beijando o santo graal dos tempos moderno. Acordava e olhava Pelé. Reverenciava a tanto Pelé, que não o usava em jogos de botões. Sabia que jamais poderia repetir o seu futebol. Já pensou errar um gol? Chutar a bola longe? Evitei o vexame de Pelé.  No meu mundo do botão, ele não existia. Era o funcionário do Banco do Brasil.
Já contestei a idolatria extrema de Pelé. O fato de ser tratado como insuperável. Um rei único. Insubstituível, me irritava. Qu esporte é este que parou a genialidade no tempo? Achava lenda. E, sei que a lenda é mais mágica que a realidade, então a lenda é cultuada, num ritual de devoção que me intrigava. Mas, de uns tempos para cá, a pandemia, o isolamento, o exílio me provocaram os abalos de minhas certezas. Desiludido com o presente, sem a promessa de futuro, mergulhei no passado. Vi as copas de 58, 62, 70, alguns jogos do santos. Me rendi!  Vi o meu equivocot. Messi é genial. Cruyff foi estupendo. Maradona é próximo de Deus. Mas, GOD is Pelé!, como foi a manchete do Sunday Times! Fui 'devorado' pela lenda. Nunca vi nada igual! Física e poesia. Equilíbrio e versos perfeitos. Extraordinário! Mesmo eu sendo republicano, me considero um súdito deste rei mágico e generoso. Um súdito que tem saudades  dos jogos que não viu de Pelé.
Não ia escrever nada. Quem ama o futebol precisa reverenciar e agradecer. Republico um texto simples, sem brilho, que lembra mais um marcador assustado, do que um lance inesquecível de Pelé.

Pelé. 75!

Mauro Pandolfi

O gol é o melhor momento do futebol? Ou, seria um drible? Uma defesa está fora da escolha? Ou, o gol que não quis acontecer? Não sei! Tenho dúvidas! Vibrei com tudo isto. São imagens que surgem, por insight, na mente. Estão na memória de um menino que brincava com bola. E, de tempos em tempos, revejo em sonhos, numa leitura ou no you tube. O gol da Rua Javari, que ninguém viu, é descrito com requintes de obra de arte. O drible antológico, sem bola, em Mazurkiewsc é um espanto. Impossível! O chute longo, louco, lúcido, do meio do campo, que irritou Gérson e desesperou Viktor, e foi para fora, é mais espetacular do qualquer golaço. A cabeçada certeira, firme, para baixo, como ensinam os manuais, escritos por Pelé, da defesa impossível de Banks. Isto é Pelé. Ele é o futebol! Pelé está de aniversário. Feliz 75!
O futebol é o mais louco dos esportes. E, nem é esporte. É um teatro de grama e paixão. Sempre está mudando o jeito de jogar. Reinventa-se a procura do novo, da surpresa, do imponderável. No entanto, uma coisa é imutável no futebol. Quer irritar uma pessoa do futebol? Questione a realeza de Pelé! Primeiro, único, insubstituível, mágico, deus, mito, atleta do século. Nada é maior que Pelé. Até quem nunca o viu, o defende com ferocidade. Pelé é sinônimo de futebol. Vi muito pouco Pelé ao vivo. Procuro em partidas perdidas no you tube. Era extraordinário! Corpo atlético perfeito. Técnica apurada. Senso de espaço, de colocação. Cerebral nos passes, na antevisão do lance, na vingança as agressões. O drible não era um um devaneio lúdico. Usava como um recurso para o gol. Como dizia meu pai, "um monstro!"
Copa do Mundo. México 70. O auge do futebol brasileiro. O único momento que a mitologia foi real, não a fantasia de uma história oral fascinante. O melhor time de todos os tempos. Uma máquina. A Seleção Brasileira nunca mais foi a mesma. Nem o futebol. Um jogo mágico, revolucionário. Compactada, os setores eram um só. Movimentação, articulação, contra-ataque, troca de passes. Time de craques, de jogadores comuns, comandada por um gênio, Pelé. Nunca mais estes jogadores, nem Pelé, repetiram a performance do México. Viveram, sobreviveram e permanecem na lembrança por aquele futebol extraordinário.
Quem mais foi Pelé? Diego Armando Maradona é o mito de minha geração. Vi ao vivo. Vi garoto, vi no auge, vi na decadência. Habilidoso demais! A bola era um extensão de seu corpo. Genial e genioso. É mais Garrincha que Pelé. É um outsider, um 'marginal', um rebelde, contestador. Maradona é poesia. Pelé é prosa. Johan Cruyff era a expansão do jogo de Pelé. Tornou o campo redondo e deixou o futebol mais simples, inventivo e complexo. Há outros tantos. Mas, o tempo foi passando e ficaram apenas na lembranças de seus torcedores.
Ninguém é tão Pelé como Lionel Messi. São parecidos em quase tudo. Gostam de vitórias, de gols, de títulos. Olho a tevê. Vejo o gol de Messi. No you tube, procuro Pelé. Vejo um gol. O lance é quase uma cópia. Arrancada pelo meio, passando pelos zagueiros, tabelando com o avante, recebendo na frente, fuzilando um goleiro indefeso. Dribles curtos, longos. Chutes precisos. Messi é Pelé. Estou vendo a rejeição da comparação. Uma pequena vaia no fundo da sala. Faz parte do jogo, da crônica.
Sujeito estranho este Pelé. Não o via como uma pessoa. Era um mito, um ídolo, um santo. A foto de Pelé era a maior do meu quarto em Lages lá por 73. Pelé aninhado na rede, beijando a bola num ato de amor. Cena do gol mil. O poster dividia a parede com vários outros deuses pops. A sua direita, um seio da bela morena Nídia de Paula escapava do biquini. À esquerda, o olhar melancólico de John Lennon era a minha inspiração para as redações da escola. Um maluco matou os sonhos de John. Nídia desapareceu sem deixar pistas e Pelé continua eterno.

domingo, 18 de outubro de 2020

Memórias...(13)

 


"O mistério da Santíssima Trindade cristã é o mistério do amor divino. Você vê a Santíssima Trindade, se você vê o amor".

A definição de Santo Agostinho baliza, também, a Santíssima Trindade da bola. Se você vê poesia na bola, você entende Pelé, Maradona e Garrincha. 


Mauro Pandolfi

Nas despedidas, a mãe me acaricia, beija o rosto, me abençoa e, geralmente, diz: 'confie na Santíssima Trindade'. Rio, agradeço, devolvo o beijo e o carinho, repito sempre: 'confio demais!' É a vez dela sorrir. Acho que sabe de que Santíssima Trindade eu falo. Ainda não sei quem é quem. Desconfio que Pelé é o Pai. Afinal, nem um ateu contesta a divindade, o olhar superior, o que flana sobre tudo. Já Diego é o filho. O 'rebelde' que desperta tantas paixões, como ódios acumulados. O que desafina o coro dos contentes, o crítico dos poderosos, imolado, crucificado tantas vezes, ressuscitou todas. Nenhum deles foi tão desesperadamente humano. O que foi tentado, sucumbiu, ressurgiu. Já Manoel, o Mané! é o mais etéreos dos divinos. O mais belo, o mais triste, o mais esquecido. O que não resistiu ao mundo visível. Nem no desprezo trataram como um homem. Até na dor exigiram o seu balé. Sempre o enxergaram como um 'Anjo de pernas tortas'. Quando vejo um pássaro lenbro de Mané. Certamente, preferiu 'reencarnar' um pássaro. Tomara que não esteja trancado numa gaiola cono o 'trancaram' como homem. Outubro é o mês deles. Como é o de minha mãe. As paixões estão sempre próximas.

No silêncio do quarto percebi que estou encurralado. Nos meus medos e na sobrevivência, pelos olhares aflitos de meus filhos com a vida cortada no início dela. Sem escolas, sem amigos, saídas fugazes. Todos os sonhos adiados. Embalam seus dias com filmes, séries, jogos. Relaxo quando escuto os risos, os gritos de vitória. A vida pede, às vezes, exageradamente, resiliência. Para escapar do encurralamento procuro uma poesia, sobre o nada que reflete o tudo, de Chiko Kuneski e os jogos perdidos  de Pelé, Maradona e Garrincha. Algumas vezes, no you tube. A maioria na memória.

No domingo preguiçoso, olhando a vida pela janela, não escrevo, uso a 'memória'  para reverenciar a Santíssima Trindade.

Ando com saudade do beijo, do carinho da benção, do conselho da mãe. Saudade de um belo domingo com todos.


Santíssima trindade de outubro

 


"Se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola"

A elegia de Armando Nogueira serve, também, para Garrincha, Maradona, Didi, Sivori, Falcão, Kopa. Gênios que nasceram neste mês. E, para Messi, que se nasceu em junho, foi 'fabricado' em outubro.


Mauro Pandolfi


A cor de outubro é rosa. A imagem é a bola. Não há nada tão perfeito como a bola. Não há lado, nem ângulos, nem arestas. Há o objeto que flutua entre o sonho e a poesia. A bola que rola macia, suave, rápida nos pés de gênios, magos, artistas que nasceram em outubro. Craques que acariciavam a bola como Didi. Ou, desfilavam a elegância com ela grudada no pé feito Falcão. Insinuante, ligeiros, fascinados pelo gol como Kopa e Sivori. Mas, é num trio que o futebol se explica, apaixona, encanta, dilacera, torna-se religião, literatura, arte. Pelé, Garrincha e Maradona. Sete dias em que a estrela brilhante no céu era uma bola. Pelé é do dia 23; Garrincha, de 28 e Maradona, dia 30.  A Santíssima Trindade! Os três poderiam ter nascido bola. Deram vida a bola. Tornaram a bola o Santo Graal dos tempos modernos.

Pelé! O nome que não precisa de adjetivo. É um adjetivo! Basta citar...Pelé! Você já sabe do que se refere. Ele não inventou o futebol. Nem a bola. Mas, virou símbolo, referência, sinônimo. Pelé é um nobre. Um rei coroado algumas vezes. A primeira, aos 18 anos, em 1958. A última, hoje 23 de outubro, dias dos seus 75 anos. Foi lembrado, muito pouco, quase nada, por alguns jornalistas, amantes do futebol e pelos torcedores do Santos. E foi chamado de Rei Pelé! Ele é um mito! Mitologia não se explica. É, e pronto! Édson Arantes do Nascimento nunca conseguiu ser um cidadão comum. Pelé nunca deixou. Pelé jogava feito prosa. Do passe medido, da tabela, do gol, do pulo com o punho cerrado, socando o ar. É a melhor frase do futebol!

Vi um só jogo de Mané Garrincha. O último! O da despedida com a camisa da seleção contra o time de estrangeiros que jogavam no Brasil. Foi em 73. Verdes anos, pouca coisa para contar, muitas para sonhar. Lembro do lance. Garrincha parado. Corpo arqueado, nada que lembrasse um atleta. A bola presa no seu pé. Negaceou. Foi e voltou. O uruguaio Bunuel foi. Na volta, virou mais um João. A bola passou entre as pernas. As 150 mil pessoas vibraram com o drible derradeiro de Garrincha com a camisa da seleção. Aliás, com Pelé e Garrincha em campo, o Brasil nunca perdeu. Garrincha é um poeta. O homem que sucumbiu as tentações, ao amor e a paixão. Garrincha é o maior fantasma do futebol. Esta sempre presente num campo. Está no desejo do torcedor, na saudade de um velho amante da bola, num drible, num passe cruzado, num corte, no chute certeiro...na ausência da alegria. Todo jogo burocrático, sem graça, sem alma é uma outra morte do Mané.

Diego Armando Maradona! Eu não era mais um garoto. Já tinha escapado no exército, de Brasília. em 79 Vi pela primeira vez um jogo de Maradona. Um amistoso contra Alemanha. Não lembro resultado, nem vou pesquisar no google. Há um lance que de tempos em tempos relembro. Em todos os jogos que joguei tentei repetir. Belo demais! Alguns fiascos. Quando deu certo, virou gol. O lance é magia pura. Bola lançada pela direita. Longa, quase escapando. Maradona domina. Cercado, da dois passos em direção à linha de fundo. E, de letra, com o pé esquerdo, passando por trás do direito, cruzou. Os alemães ficaram atônitos e Ramón Diaz perdeu o gol. Nunca mais perdi Maradona de vista. Acompanhei a sua carreira, a glória, a tragédia pessoal, os equívocos, os acertos, a canonização, a humanização. Maradona tem algo de Pelé e muito de Mané. Que falta faz!

O dia da poesia, 31, fecha o mês dos ilusionistas da bola que poderia ser definido assim: "Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma" (pequeno verso de Carlos Drummond de Andrade também de outubro, uma espécie de Pelé, ou seria Mané, ou quem sabe Maradona, entre os poetas?).

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Destroços da paixão

 

 

"Ainda que o frio te queime, ainda que o medo te morda, ainda que o sol se ponha e se cale o vento..nâo te rendas".
Ando seguindo o uruguaio Mário Benedetti em relação ao Grêmio. Nunca imaginei que a paixão escaparia pelos dedos, fugiria das entranhas da alma, se tornaria um sentimento banal. Só a vitória no Grenal deu suspiro que tenta sobreviver ao desencanto. 

Mauro Pandolfi

Ando estranho com o futebol. Distante, arredio, ausente. Não há mais o fascínio de outros tempos, nem a nostalgia dos velhos momentos. Até escrever ficou pesado, difícil, como num pesadelo mal acordado. O medo das derrotas, os fantasmas de um passado quase recente, pareciam ter despertado a paixão gremista. Vi os jogos possíveis (sempre tentaram me convencer que o monópolio é drástico, caro, ruim para a liberdade de expressão e de escolha. Até o ano passado assinava o Premiere e vi todos os jogos do Grêmio. Agora, para ver todas partidas preciso, por enquanto, assinar dois canais. Sem grana, o rádio voltou a ser meu parceiro), escutei outros e vibrei com a vitória no Grenal. Uma vibração suave, sem gritos ou abraços, apenas alegria. Era só um engano a paixão redescoberta. Sei que a vida passa, os amores, as paixões precisam dos mesmos olhares, dos silêncios de sempre, das ausências que só reforçam, dos encantamentos que fazem a alma balançar, o coração pulsar, o corpo tremer. Não achei mais isto no futebol, nem no Grêmio. Nem escrever sobre ele provoca o desejo que sempre acompanhou os dedos nas teclas do computador. Não é uma desistência, não imagino um até logo. Quem sabe, uma reclusão para procurar em cada reentrância da alma, a paixão que se perdeu.
Não sei se foi o 'arrodião' (como os gaúchos chamam o vareio, o baile, o chocolate) do Caxias. Ou, foi o pânico de um passado sombrio após a derrota para o Sport, o empate contra o Atlético Goianiense ou novo 'arrodião' da Universid Católica (temi por 'Bayern' chileno) que despertou um sentimento parecido com a paixão.Ou, foi só medo? Desconfio do jogo espetacular desaparecido, sumido, não deixou rastros que inibiu, assustou, escondeu, anulou o arrebatamento amoroso com a bola. Não havia mais a 'arte' do drible, nem a 'poesia' do jogo traçado, planejado, que me fazia suspirar e esperar ansioso a bola correr. Somente após a sessão de cinema, em casa com a família, assistimos 'O Poderoso Chefão', fui ver Atlético Mineiro e Grêmio. A partida passou diante dos olhos, sem emoção, sem vibração, banal como um jogo de um time qualquer. É o fim da paixão, vou recolhendo os destroços ou é a vida sugerindo outros olhares que não tinha percebido antes? O tempo dirá ou será uma nova vitória no Grenal?
Nas minhas contradições, deixo o Grêmio de lado e vibro com o Leeds. Velho encanto do menino de Lages que devorava o 'tabelão' do Placar apaixonado pelo time de camisa branca. Também, nem tão jovem, se enamorou pelo pensar de Marcelo Bielsa. O louco e doce treinador que nunca sacrifica o jogo. Só a vitória. Por momentos pensei que Renato Portaluppi fosse um Bielsa. Mas, não é! Ele sacrifica o jogo. Prefere só a vitória. "Sempre cresciinos momentos de fracassos e piorei nos perídos de êxitos. O sucesso é deformante, relaxa, engana, torna-nos piores, faz com que nos enamoremos de nós mesmos". Está frase de Bielsa revela outra diferença com Renato. Bielsa gosta da reclusão, da solidão como parceira da reflexão, onde reinventa o seu pensar sobre a bola. Renato prefere a festa, ser o centro da festa, não precisa saber mais sobre a bola. Sabe tudo. Renato inventou o melhor Grêmio que vi. Bielsa ainda não criou o time dos meus sonhos.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Resíduos...

 

"Os amores são como impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela".
Não sei se Milan Kundera gosta de futebol. Uso esta frase do autor de 'A insustentável leveza do ser', para tentar entender o 'desespero' com o 'fim' de Messi, Guardiola e do melhor Grêmio de minha vida. Será que o meu desancanto da paixão está ligado ao 'fim'?

Mauro Pandolfi

Ainda não esbarrei na paixão do teatro de grama após a volta do futebol. A dor da derrota, sim.  Massacrou forte a alma. Foi lancinante, angustiante, perversa. Em quatro dias, as poesias mais belas do futebol, aquelas provocadoras do reencontro com o Maurinho, desapareceram. Não por completo. Deixaram resíduos. Retalhos, pedaços, ruínas, que vão me consumindo devagar, aos poucos, para serem mais crueis. Messi, Guardiola, Grêmio de Renato - Luan, incluído - pertencem ao meu baú, onde guardo a eternidade. De tempos em tempos, abrirei. Para matar a saudades e encontrar a paixão, que está desaparecida. Espero que não tenha morrido de tristeza neste fim de semana.
Messi no canto do campo. Exilado, alheio ao jogo. A tevê explora o seu rosto. É de um homem destroçado. Sete a dois é o placar. O Bayern passeia, tripudia um Barcelona, inerte, atordoado, entregue, dolente. Messi encara o árbitro. Parece pedir ajuda, o final do jogo. O olhar complacente do juiz não impede o oitavo gol, de Philipe Coutinho. Num gesto de compaixão, Coutinho não festejou o gol. Respeitou o lendário craque argentino. Fim de jogo. A tevê acompanhou Messi. Distante, plangente, Lionel era um tango tocado em silêncio.
Há tempos que o Barcelona é um resquício do que foi. A frágil estruturação tática, o envelhecimento dos pílares, os pífios treinadores, se sustentavam na genialidade de Lionel Messi. Ele tentou, lutou, foi grande, mas, perdeu. O 8 a 2 marca o fim de dois 'impérios': o Barcelona, planejado por Cruyff, armado por Pep Guardiola, é só lembrança. O jogo contra o Bayern apagou os resíduos que existia na Catalunha; Messi, assim como Cristiano Ronaldo, não tem mais a magia poética de inventar soluções, saídas impossíveis, furar as linhas com passes e dribles. Só terá brilho, com um time jovem ao redor e uma estratégia bem definida, onde será somente 'o maestro'. Raramente, solista. Nunca mais o criador do jogo e do resultado. Nunca perderá o encanto.
Pep Guardiola é um autor a procura de um 'texto'. Uma ideia que renove tudo, outra vez. Guardiola é a negação do comum, do trivial. Rejeita, como sempre rejeitou, o burocrático, o previsível. Nunca antes na história, o futebol foi tão bem jogado. Ele é o idealizador. Nem Einstein desvendeu o espaço e tempo. Compactação, movimentos, velocidade, trocas de função, as linhas formando figuras geométricas, como um cubismo mágico e a bola nos pés. Quem tem a bola, tem o jogo. E, o Barcelona reinventou a arte do futebol. E, daí, tudo virou paixão.
Guardiola parecia um Merlin. Criou estratégias que confundia' o adversário. Estabeleceu conceitos, criou artimanhas e inventou segredos. Aos poucos, o 'enigma de Guardiola foi sendo decifrado. Não ganhava mais como antes. Os segredos não eram mais secretos. E, nem as novas ideias eram tão revolucionárias. Pep ainda tenta ser genial. Está longe de ser um treinador vulgar. Porém, na derrota para o Lion havia só resíduos do extraordinário Guardiola. E, por instantes, foram luminosos.
O Grêmio ainda toca a bola. Mais atrás, mais para o lado, falta quem fure a linha, como Luan ou Everton. Agora, a jogada é a bola alta em busca de Diego Souza. Jean Pierre ficou isolado, exilado no campo. Não há mais a parceria que desequilibrava o jogo. Tem de armar, criar o espaço e finalizar. Raramente tem conseguido. Falta alguém. O Luan de 2017 seria o parceiro ideal. Pena que Renato não percebeu isto. Luan me encantava pelo jogo sólido, belo, envolvente e a melancolia no olhar, nas passadas largas. No sábado, só encontrei a melancolia. Se há vestígios em Messi, em Guardiola, no Grêmio de Renato, não percebi resíduos em Luan. Isto é o mais triste nesta paixão desaparecida.


 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

'Hipocrisia'

 

"São curtos os limites que separam a resignação da hipocrisia".
Acho que ultrapassei os limites que o escritor espanhol Francisco de Quevedo estabeleceu. Em nome de uma paixão, que parece adormecida, resignei a coerência e a transformei em hipocrisia.

Mauro Pandolfi

Ao preferir ver o Grêmio em vez de um filme a convite do André, ouvi uma resposta que me desconcertou. "Você é contra a volta do futebol durante a pandemia. Então, não deveria assistir o jogo. Tem que ser coerente, pai! Ideias, palavras, só valem com a prática". Meu único argumento foi a paixão. O amor descoberto aos sete anos, tornou-se 'vício', trabalho, até terapia, motivo para escrever como fuga da louca sanidade deste 'estado de sítio' necessário da vida. O André foi gentil comigo ao falar em 'coerência' e não em hipocrisia. Vi o jogo. Um belo jogo! Assisti em silêncio, sem nenhum gesto de torcedor, nem no grito de gol, nem no desespero do empate, sem críticas ao Renato. Faltou tesão ao ver a bela camisa tricolor ocupando toda a tela. Não sei se a frase balançou os meus conceitos, se foi a 'hipocrisia', se o exílio forçado, se a vida banalizada, se a tristeza flertando com a depressão, senti a paixão desmoronada, destruída, sufocada. Sobrou só o teatro de grama.
Lembrei do meu velho amigo Rai Carlos, o vidente cego, ao 'perder' a paixão pelo Grêmio. Quando falávamos de amores, Rai lembrava da primeira paixão. 'Nunca acaba. Ressurgia forte ao sentir outra paixão se formando. Sempre se impunha. Foi assim durante muito tempo em vida. Até que um dia, a neutralizei. Estou livre, pensei. Era só um engano. Estes dias, ao escutar sua voz, a paixão explodiu. Estava escondida, guardada em algum ponto da alma, para aparecer feito uma emboscada', filosofava em meio aos goles de gim nas madrugadas de outro tempo. O Grenal será o sinal da paixão sufocada? Vou desafiar a minha 'hipocrisia', pensei.
Quarta-feira, ligo a tevê para a sessão de terapia. Descubro que será no Premiére. O meu fracasso financeiro me obrigou a cancelá-lo no final do ano passado. Paciência! Resolvi assistir Cricíuma e Chapecoense. Triste. Muito triste. Lamentável o futebol daqui. Obsoleto na ideia, obtuso na realização, medíocre no ato. Parecem ter uma organização defensiva. É um engano. É só uma retranca. Os ataques dependem da ação individual. E, aí, faltou talento. A decadência do futebol catarinense não tem nenhuma elegância. Passei para o derbi paulista. Se resisti trinta minutos com a partida daqui, aguentei quinze minutos na final de lá. Faltou tudo. Da inteligência tática até a habilidade. Um futebol tosco, precário. Entendi a opção do Flamengo pelo auxliiar de Pep Guardiola. O clássico de São Paulo mostrou o velho treinador bolorento e o novo técnico sem coragem. Não entenderam que o jogo pede beleza, arte, entreterimento e não só resultado. Nem a 'hipocrisia' resistiu.
Desliguei a tevê, liguei o rádio para ouvir o Grenal. O quarto no escuro, tirei os óculos, virei para o lado e dormi. Acordei com os 'gritos' do narrador falando das expulsões de Orejuella e Patrick. Vi o placar, o bom do rádio no facebook, que há uma tela com as informações do jogo, estava dois a zero para o Grêmio. Escutei até o final. Gostei da vitória! Esbocei um sorriso, uma leve alegria surgiu na alma. Era a paixão? Não!  Foi só uma piscadela de um flerte.
O jogo de domingo acabou ao mesmo tempo do filme do André. Nos encontramos no corredor. Nos olhamos em silêncio. Não foi preciso falar nada. Velho, na reta final da vida, entendi a lição do jovem que começa a vida. E, feliz, percebi que o André será um homem melhor do que eu. E, tomará, com mais sorte.

 

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Memórias...(12)

 

"A Saudade é por quem vivo apaixonado desde que envelheci..."
Estou desconfiado que o futebol não vai sobreviver a este isolamento. Quem sabe a saudade, cantada como beleza por Catulo da Paixão Cearense, mantenha vivo a paixão. Acho que sobrará apenas o teatro.

Mauro Pandolfi

Não gosto de rever muitos jogos do Grêmio. Aqueles que estão marcado na alma, escapo sempre. Escapava! Tenho o vídeo, o filme e nunca tinha revisto a Batalha dos Aflitos. Temia pela emoção. Ficava com medo de o coração explodir, como quase explodiu naquele novembro de 2005. Mas, distraído, sem nenhuma série para acompanhar, descubro o jogo. Relutei, fiz um zap rápido e resolvi encarar, num ato de bravura, um dos meus 'fantasmas'. Deixei o floral de lado junto com lenço. Vou chorar! O jogo foi passando, a emoção não chegava, tranquilo, sereno demais, não aconteceu nada. Foi só um jogo. O encanto da grande vitória quebrado em múltiplos pedaços. Não fiquei frustrado e nem perplexo. Apenas, indiferente. (I)Mortal indiferença!
Só sobrou Renato em outros dois jogos que revi. Contra o Penharol, na decisão da Libertadores, um horror. Que jogo feio, sem graça, sem ritmo. A única poesia foi Renato. O balaõzinho, o chutão no alto rumo ao infinito que encontrou a cabeça do César. Magnífico, Renato! Contra o Hamburgo, uma partida mais qualificada. O Grêmio com a sua força e outra vez, Renato, Entendi toda idolatria, a minha inclusive. Lamentoi que Renato não foi o que poderia ter sido. Não sei o que atrapalhou a genialidade. O homem que preferiu ser um jovem comum e festeiro? O que preferiu ser feliz em vez de lenda (além do Grêmio!)? Não sei se Renato poderia ser um Cristiano Ronaldo. O Mário garante que sim. A vida tem as suas escolhas, seus caminhos, seu destino. Assistindo estes Grêmio todos, o melhor é o Grêmio desenhado por Roger, lapidado por Renato. Eles inventaram o futebol no Grêmio. Será que sobrou esta saudade?
Não vi nenhuma partida inteira nesta volta do futebol. Não consegui. O coração e alma rejeitaram. Dez minutos, busco um filme, uma série, qualquer coisa que me afaste do jogo. Não é o futebol que me encantou, que virou paixão, que me faz escrever e sonhar. Não lembra de vida ou festa. Me parece um escape contra a morte. É necrofutebol! Me disseram que tudo tem começo e fim nesta vida. Talvez, o fim chegou. Meu amigo vidente cego, Rai Carlos, disse uma vez que 'paixão nunca termina. Apenas se esconde!' O tempo vai me revelar. Enquanto isto, republico uma crônica apaixonada por este jogo.

O teatro de grama e paixão

Mauro Pandolfi
 
Não gosto de esporte.  Gosto de futebol. Futebol não é, mais, um esporte. É teatro de grama e paixão. A vida é representada, vivida, repartida. Tudo está lá.  O drama, a comédia, o amor, o mistério, a aventura, os enganos, os desencontros, o terror, a esperança, o sonho. Tudo contado em atos. Nem sempre bem separados. Às vezes, tudo junto. Quase nunca misturados. Atores e públicos são parceiros, ou rivais, em cena.
O primeiro ato. Vem em bandos. Trazem bandeiras, trapos, tambores e painéis com os rostos dos heróis. Os cantos são desafios bem embalados por um 'coral' afinado. De guerras ou de apoio. Dispostos a tudo. Fundamentalistas da paixão. Há o que chega sozinho. Solitário no silêncio. Aos poucos, descobre o grupo nos gritos, nas vaias, na festa. O soar do apito. Assim começa o teatro de grama e paixão.
O segundo ato. O campo, o jogo, os times.  A bola rola. Troca de passes. O jogo estudado feito um ensaio. O posicionamento lembra a marcação de uma peça. Flui em diálogos, os passes. Ou, um monólogo, o drible. O jogo vai crescendo em intensidade. Os murmúrios da plateia exige uma outra postura. A agressividade vai substituindo o riso, a diversão. Fim do segundo ato.
O terceiro ato. A pressão da vitória, o grito pelo gol, o desespero pelos erros de passes geram um drama que vai crescendo com o passar do tempo. Os olhares são de aflição. O torcedor tem o medo da derrota, do fracasso que é o seu parceiro diário. O jogo tem um segredo, um enigma. Decifra-me ou te devoro? Os enganos e os desencontros surgem na tentativa de descobrir a saída. A bola vai alta, longe, dispersa. Até que alguém descubra a magia. Decifre e crie a alegria do teatro. A plateia explode em êxtase no gol. Fim do terceiro ato.
Epílogo. O trilhar do apito. O suor, as lágrimas, os risos, os abraços, a festa, a derrota. O jogo não termina aí. O teatro de grama e paixão continua. Às vezes, como farsa. Outras, como epopeia.  Um jogo de futebol tem a duração da eternidade.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Memórias...(11)

 

"Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson: Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino".
A mais bela poesia do futebol. Épica, dialética, romântica. Sonora, rítmica, inesquecível. O verso 'Pelé' é mais que perfeito.


Mauro Pandolfi

Queria escrever um texto sobre os 50 anos do tri de 70. Falar daquele time maravilhoso, ousado, de seus deuses da chuva, da revolução feita por Zagallo. Mário Jorge Lobo Zagallo nunca entendeu o que fez. Após a Copa, em seus clubes e mesmo na seleção até Copa de 74, mostrou que tudo foi um acaso, a sorte, que segundo ele, sempre o acompanhou. A transgressão tática de 70 foi um 'equívoco' em sua jornada. Zagalo sempre foi reacionário, tanto no futebol, como em vários setores da vida. Esta seleção, de tempos em tempos, me visita. É uma das lembranças mais fortes da minha infância. Queria escrever sobre ela. Sobre a magia, a ilusão, o fascínio que os nomes me provocam. Ainda sei o nome completo de todos os campeões. A escalação é a melhor poesia de futebol que conheço.
Não consegui criar um texto sobre o futebol daquele esquadrão. Passei segunda e terça pensando, abrindo baú da memória, e vi apenas um guri que gostava de correr para sentir o vento balançar os cabelos longos. Saudades! De tudo, principalmente, dos cabelos.
No quarto, isolado, embalado por Roy Orbison, vou revivendo 1970. Não chegou a ser 'um buraco de minhoca'. Foi somente lembranças. Como gostava de olhar o Vermelhão de Copacabana. O primeiro olhar do dia. Ao chegar na cozinha, a 'Alma Cabocla", da Clube, terminava o despertar. Queria sair rápido de casa. Fugir da música caipira, dos avisos, chegar no Flodoardo Cabral e ainda bater uma bolinha no campinho de terra. As aulas, com a querida Leda, tinham o seu encanto. Quase fui um príncipe numa peça de teatro. Perdi o personagem para o Paulo Roberto. Talvez por ele ser melhor aluno, melhor ator, ser mais comportado. Mais bonito, não era! Fui ser o 'abacate'. Infelizmente, ou seria felizmente?, a peça não foi realizada. Acho que a Leda ficou doente. Gostava daquela turminha. Ainda lembro de muitos. Todos ficaram na poeira da saudade. Depois de 70, encontrei alguns nas escolas, nos bailinhos,.no futebol. Desde que saí de Lages tornaram-se imagens, que às vezes, duvido que existiram.. Quem mais queria rever, nunca mais vi. Nádia! Nome mágico. Loirinha linda, cheia de sardas, meiga, de um sorriso doce, uma paixão escondida em algum canto da memória . Nunca disse que gostava dela. Amor e paixão confessei poucas vezes.
Foi o futebol que me levou à leitura. A Leda falou ao meu pai da minha dificuldade na leitura. Ele garantiu que iria resolver. Fiquei eufórico! Mais gibis, pensei. Um diua o pai entrou em casa com um monte de jornais e disse: divirta-se! Logo percebi que era divertido saber sobre as coisas, o mundo e o futebol. Até hoje leio jornais. Fui até jornalista por algum tempo. No curso de jornalismo fiz grandes, eternos, mágicos amigos. Isto é para uma outra sessão de terapia.
1970 foi uma transição de amigos. Os da primeira infância se mudaram. Precisei encontrar outros. O Flodoardo foi fundamental. Descobri que o seu Jeremias, dono do armazém onde a mãe comprou a primeira meia de futebol. Era branca, vermelha e preta até a primeira lavagem, tinha um filho chamado Tadeu. Antônio Tadeu que todos conheciam como Bolacha. Antigo parceiro de mascote do Internacional. Virou amizade, um time de futebol, uma parceria, uma história que indicava ser longa ou eterna e que relembro num texto antigo do Crônicas.
Fim de sessão!

Meninos de Kichute

Mauro Pandolfi

"O tempo não para. Só a saudade é que faz o tempo parar..." 

                                                                   Mário Quintana.


O passado é teimoso. Nunca passa. Sempre esquece que passou. Olhe aí! Preste atenção, feche os olhos, relaxe e, surpresa, o passado está presente. Numa foto, numa lembrança, numa cena, num olhar. Voltei aos quatorze anos, estes dias, ao assistir o ótimo Meninos de Kichute. É como se fosse o filme da minha adolescência.

O time da rua, a escola, os amigos e a viagem de mudança para nunca mais voltar. 1974, aqui vou eu! Vou botar o meu bloco na rua, ler Charlie Brown e jogar como Carlos Babington (um dez daqueles que detesto hoje em dia). Meu amigo Bolacha preferia Cruyff.

Copacabana nunca me enganou. O lugar mais próximo do paraíso que conheci. Lá morei onze anos, fiz amigos, curti as primeiras namoradinhas e as festinhas embaladas por Roberto Carlos, Beatles e um grupo estranho de gente, e nome, esquisito: Secos e Molhados. Enfrentei muitas filas para assistir Mazzaropi e o Gordo e o Magro no Tamoio. E uma paixão nunca confessada: adorava os filmes do Trinity. Bons tempos aqueles, hein?

A bola é a vida deste blog. O encanto de Copacabana era o Vermelhão. O antigo areião que transformou-se no campo do Internacional. Depois, como o Colorado passou a jogar no Municipal, o Vermelhão foi abandonado ao vento. Virou campo de ninguém, de todos. O nosso Maracanã.

Como era bom jogar lá. Não era só um menino com sonho. Era um jogador. Afinal, tamanho oficial, traves e arquibancadas. Algumas vezes corri de braços abertos, balbuciando algo em busca do aplauso imaginário. Também, ouvi broncas, reclamações por um gol perdido. Não era a torcida. Eram os parceiros de time. "Pqp! Não dá para perder um gol destes, Maurinho!". Abel era o meu crítico mais feroz.

Oi, girando! Oi, girando! O campo ficou redondo para a gang de Johan Cruyff. Todos em todos os lugares. Espaço e tempo em um outro conceito. Bolacha, que era o principal líder do time, ficou encantado com a Holanda. Passou a Copa toda falando da Laranja Mecânica. No dia do jogo contra o Brasil, a sala da casa da dona Lucinda, mãe do Bolacha, ficou lotada. Divididos entre a paixão do Bolacha pela Holanda e o 'nosso' patriotismo. 'Ame-o ou deixe-o" dizia o adesivo colado na caderneta escolar. Por instantes, preferirmos o 'deixe-o'. Uma grande escolha.

Ah, gira, girou! Nunca tinha visto um time como aquele. Entendi o encantamento do Bolacha. Neeskens, Resembrink, Johnny Rep e seus amigos rodavam num carrossel mágico, igual aos dos parques que invadiam Lages de tempos em tempos. A vitória laranja virou uma festa. Gritos, pulos que irritaram seu Jeremias, pai do Bolacha. "Piás de merda! Cadê o patriotismo?", reclamou. No Boldo, uma espécie de Pacaembu, imitamos a Laranja Mecânica. Treinamos as movimentações, as trocas de posições, o passe rápido, a velocidade e a obsessão pelo gol. Fui Cruijff durante uns meses. A minha camisa era a 14. Aos poucos, a Copa foi se tornando saudades. Saudades que tenho até hoje.

O dia chegou. Julho de 1975. Um domingo. Passei com a turma da rua Irma Laurinda. Fui ao cinema, no bailinho do Juvenil, no bolão do Princesa. Terminamos a noite no bar do seu Chico, que ficava perto de nossas casas. Às onze da noite dei um abraço forte, fraternal, final nos amigos. Acompanhei todos indo embora. É a última imagem que tenho deles. O tio Danilo nos levou à rodoviária. Lages foi ficando para trás, longe. Mas, sempre volta em sonhos e lembranças. Pena que aquele tempo ficou naquele tempo.