segunda-feira, 29 de abril de 2019

Broxante VAR


Chiko Kuneski

“ Com o VAR o chato do politicamente correto chegou ao futebol”
Tita Kuneski

O futebol é lúdico, e dizer isso pode parecer uma obviedade infantil. Mas não uso lúdico como mero divertimento. Uso como prazer extremo. Só os apaixonados por um clube e pelo futebol entenderão o termo: “prazer extremo”.

Esse prazer pode ser comparado ao sexo pelos apaixonados. Há o conhecimento, a aproximação, o flerte com as cores, escudo, nome, a conquista mútua e, finalmente, a paixão arrebatadora, que vira amor por toda uma vida. O torcedor é assim. Um apaixonado amante.

Nessa relação há o prazer supremo...um grito, ou até um gemido coletivo, de gol. O gol é o êxtase da relação entre torcedor e time da paixão. É hormonal. A mesma endorfina do gozo sexual pode ser liberada pelo prazer do grito do gol. A paixão física. O êxtase supremo do futebol.

O VAR (Árbitro Assistente de Vídeo) se mostrou broxante. Adia o êxtase do grito supremo do gol. Não existe gozo adiado; somente gozo interrompido. O prazer do grito, da torcida, do tesão coletivo, do máximo da paixão pelo time, preso na garganta por um dedo no ouvido...do árbitro.  Todo o ritual da conquista mútua, do namoro, da paixão, da entrega, do gozo do gol, interrompido pelo frio olhar.

Como bem define Mauro Pandolfi: “ o futebol é um jogo de olhares”. Com o VAR o gélido olhar cibernético sobrepõe o calor humano das íris se tocando no espaço vazio. O êxtase do gol fica congelado nos sem fim de replays de olhares cibernéticos analisados por olhares humanos medrosos e temerosos.
Os árbitros de campo, amedrontados pelo calor human
o das torcidas, buscam na gelidez cibernética das câmeras e de juízes trancados em cabines aprova de som e com ar condicionado a desculpa para não assumir o erro. Se escondem atrás de minutos, infindáveis para os apaixonados torcedores,  das longas revisões, de ângulos, de câmeras, das comunicações secretas entre campo e cabine e respiram aliviados pelos indicadores fazendo um retângulo no espaço vazio. O VAR decidiu, culpe o VAR. 

O árbitro de vídeo conseguiu broxar até a última virilidade do torcedor: a alegria do êxtase orgástico do grito de gol.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

E, se ...

 

"Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios. Rompi com mundo, queimei meus navios. Me diz pra onde é que ainda posso ir".
Os 'ses' fazem parte de minha vida, das minhas escolhas e feito Chico Buarque queimei os meus navios sem romper com o mundo. Mas, não sei o motivo, nunca fiquei sem saber onde ir. Faltou esta 'loucura'...

Mauro Pandolfi

E, se ...
tivesse ficado em casa naquela manhã de 1967. Jogando botão, lendo - como sugeriu a Leda minha prima e fundamental professora -, estudado para alguma prova, brincando de qualquer coisa. Mas, saí de casa, atravessei a rua e fui ver o famoso Alcindo que jogava no Grêmio. Descobri a paixão! As três cores mágicas e nunca esqueci o chute de Alcindo que ainda balança o travessão em minha memória. Não seria gremista. E, o pior, por influencia do Inter de Lages, seria Inter de Porto Alegre. Ainda bem que sai de casa naquela manhã. Como seria triste a minha vida sem o Grêmio! Sem as alegrias, as dores das derrotas, as noites não dormidas, pela euforia ou pela tristeza, o prazer e o encanto do jogo bem jogado, poético, dos times de Roger e Renato. Faltaria algo na alma, teria um buraco no coração e um vazio intenso que me dá arrepio ao cogitar não ter o Grêmio na vida. Bendita manhã aquela do Maurinho!
E, se ...
não tivesse escapado de, quase, todas as paixões da vida. Falado de amor, trocados juras, roubados, mais, beijos. Ter confidenciado a paixão, não ter suprimido os desejos, não ter rasgados as poesias - bom, ficaram livres de versos tortos e pueris -, ter arriscado mais. Com quem teria ficado por mais tempo? Com a loirinha da esquina de casa que disparava o coração? Ou a moreninha que encontrava na hora de comprar pão? Ou na amiga da universidade, que me arrepiava de tesão? Ou a colega de trabalho de rosto suave, bem desenhado, harmônico, que desafiou os meus medos? Bom, entre todas as escolhas, a colega do trabalho me acompanha até hoje. Ainda fico encantado com os traços bem definidos do rosto e o fascinante amor ao Pedro e o André. Não tento imaginar outra escolha.
E, se ...
tivesse passado em direito em 1981? Que advogado seria? Um destes milionários ou um que lutasse por uma justiça 'mais justa'? Nunca serei rico, não tenho o perfil e ainda bem que passei em Jornalismo em 1982, o que me impediu, definitivamente, de ser rico. Fiz o vestibular para acompanhar a minha prima Liciane. Não estudei, não li nada e cheguei de madrugada na véspera da prova. Passei! Vivi alguns dos melhores anos da vida com os amigos que ainda mantenho. São de fé, são de sempre, são amores de quem não me desfaço. Tudo seria diferente se tive aceitado a proposta de ir para São Paulo. Foi lá por 1986. Medrei! Medo de arriscar, de ficar sozinho, longe dos meus. O tempo passou, a vida seguiu o seu rumo e o jornalismo virou uma doce lembrança. Às vezes, fico pensando, como seria a vida se tivesse aceito aquele convite?
E, se...
tivesse um bom assunto, uma ótima ideia, uma grande lembrança, teria escrito um outro texto. Melhor, mais poético, mais lúcido, menos perdido. Porém, tropecei nos meus delíros de tanto 'ses' que embalam a vida e saiu isto...

sábado, 20 de abril de 2019

O abismo deixado por Dener


 

"O gol é orgasmo do futebol. Como o orgasmo, o gol é cada vez menos frequente na vida moderna".
Eduardo Galeano ficaria desesperado, perdido na utopia do jogo bonito, com a retranca que assola o país que deixou de brincar de futebol.

Mauro Pandolfi


Se o gol é o orgasmo de quem ama o jogo, o título de campeão é o êxtase infinito de um devoto de cores. Apenas curti o título do Grêmio. Sofri o jogo todo na imensa solidão que me imponho em dia de futebol. Não cheguei a chorar. Nem rezei para os deuses da bola. Suspirei, apenas, na cobrança derradeira de André. A vibração foi tímida, tão silenciosa que despertou a curiosidade da Elaine. 'Pensei que tinha acontecido alguma coisa?', me disse. Faltou futebol, ousadia, coragem de brincar. Parecia o Grêmio de outros tempos. Não deste. Teve bravura, luta, empenho. Esqueceu a poesia do jogo, o brilho, o encantamento. Foi comum. Somente um time campeão. O título aliviou a angústia do desejo perdido, do jogo bem jogado. O que esperava do Grenal vi em Manchester City e Tottenham. Frenético e onírico. Vi o abismo do futebol que nos separa desde 1994, o ano da copa de Parreira e da morte de Dener.
Sterling chuta colocado. Um a zero.Son vira o jogo. Dois a um. Bernanrdo Silva empata. Dois a dois. O futebol em onze minutos. Estado puro. Legítimo, empolgante. Frenético e onírico. Jogo perfeito. Poesia e emoção. Uma partida digna de grandes times, de jogadores conceituados, de hábeis artesões. Quem sabe os melhores onze minutos da história da bola. No final do primeiro tempo, Sterling vira o jogo. Três a dois. A vida pulsava para o time de Guardiola.  Logo aos 14 minutos, Aguero, o artilheiro dos jogos fáceis, fulminou o goleiro. Golaço! Quatro a dois. O futebol agradecia os deuses. Num cochilo deles, com a juda do Var, o Tottenham marca o terceiro. Llorente foi o autor. Aí, apareceu mais o lado do futebol que embala a vida, o torcedor, o devoto. A emoção, o desejo, a bravura, o engano, a frustação. Sterling fez o quinto. A multidão em festa. O futebol em festa. Mas, teve o Var. Viu uma parte do corpo de Aguero à frente dos zagueiros. Um capricho desmedido, uma precisão indevida - porém, correta - anula o gol. Tottenham se classifica. Extasiado, meio chateado com a eliminação de Guardiola, vibro com a partida. Isto é o futebol! O Maurinho se apaixonou por isto!
180 minutos. Nenhum gol. Raras chances de gols. Lutado e brigado. 'Assim é o Grenal', dizem os especialistas. 'Nenhuma final é um grande jogo', mentem os comentaristas. Assisti tudo pela devoção. Esperei um lance isolado. Veio com Éverton. A velocidade, o drible, o chute em curva. Desprezada, a bola desvia da trave e vai embora pela linha de fundo. Minutos depois, Éverton driblou de novo, correu outra vez e acertou a trave. Capricho dos deuses. Ah, teve o Var. Pênalti em Cortez. Interpretação do árbitro, afirmou um comentarista de arbitragem. Nove minutos, duas expulsões, confusão e André desperdiçou. Tanto barulho por nada. Nos pênaltis surgiu um novo Marcelo Grohe. Paulo Vitor defendeu três e o Grêmio deu a volta dos campeões. O título amenizou a falta da poesia da partida. Minha vibração foi silenciosa e discreta. Sorri e abracei os meninos e a Elaine. Faltou o que mais gosto numa partida: o futebol!
Entendi o abismo. É profundo. Na sexta da paixão mergulhei nos meus pensamentos a procura do início do abismo. Vi uma bela matéria sobre os 25 anos da morte de Dener. O mais Garrincha dos substitutos de Pelé. O moleque com as 'asas na chuteira' - a bela expressão poética de Chiko Kuneski -, do drible mais bonito que o gol - afinal, 'o gol é só um detalhe', disse Carlos Alberto Parreira, esta espécie de Olavo de Carvalho da bola - da velocidade em linha reta, do sorriso, da genialidade. Morte bruta, sem nexo, 'foi falta grave no neguinho!', escreveu Tutty Vasques, na mais perfeita tradução da perda de Dener. Parreira ignorou Dener e Edmundo. Levou Ronaldo Fenômeno por pressão. Nunca deixou jogar. O futebol moleque morreu com Dener. Parecia ter renascido com Neymar. Mas, tudo indica, foi um engano. Neymar foi enquadrou ou se enquadrou. Que pena!
O Brasil resgatou a velha retranca, ferrolho sólido, trocou a técnica de Raí pela burocracia giratória de Zinho, buscou a bola longa, os cruzamentos e encontrou a genialidade de Romário. O abismo nasceu com o título. Parreira venceu a modernidade, os novos tempos do jogo, estabeleceu um parâmetro que Luís Felipe Scolari seguiu à risca. Foi mais fácil. Havia os Ronaldos e Rivaldo. Em sequência vem todos. Zagalo, Dunga, Mano, Dunga - outra vez -, Tite. O jogo defensivo, burocrático, de bolas longas, rifadas, de cruzamentos, de disputa intensa espalhou-se pelo Brasil. O Grêmio de Renato escapou por um tempo. Buscou o jogo de outros tempos, dos tempos atuais jogadas nas grandes equipes, adotou a bola, brincou com ela, ganhou títulos e desapareceu, não por completo. Há momentos que a idéia está viva, quando a bola está nos pés de Jean Pyerre e Matheus Henrique e flutua até encontrar Éverton. É este suspiro que mantém a minha paixão.

sábado, 13 de abril de 2019

Anos 70!

 
"Há quem diga que eu não sei de nada. Que eu não sou de nada e não peço desculpas.Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira. E que Durango Kid quase me pegou".
A música de Sérgio Sampaio embalou o primeiro baile noturno, o desejo de rebeldia e brincou com o meu herói preferido daquele tempo.

Mauro Pandolfi

O passado não passa. Me persegue. Achei que era só com as memórias. As lembranças que embalam meus dias de 'exílio'. Mas, ganhei, de amigo, um almanaque dos Anos 70. Está toda a década lá. Tem os meus sonhos, os meus desejos, as minhas utopias, as esperanças e todo o fracasso que perpassou na minha vida. Da ditadura ao desbunde. De Luís Carlos Maciel, meu guru de adolescência, até Rose do Primo, minha paixão de garoto. Tem o rock que descobri com Big Boy, nas noites silenciosas na sala de casa, a Odair José, que escutava escondido, num pequeno radinho azul sintonizado na Clube. Tudo, mesmo, está lá! Da calça boca de sino a gargantilha feita de cartilagem de peixe. Vi Pelé e encontrei André Catimba. Intenso período da vida. Do sonho da rebeldia até a procura de um trabalho. Coisas que o menino amava no início e que o adulto descobriu no final.  Como eram doces a bala Soft e o sexo. Anos 70! Lisérgico, anárquico, romântico, autoritário. Ainda bem que revivo apenas na leitura do livro, nas memórias, nas conversas...
O futebol é o fio condutor da minha vida. De menino ao velho. A bola é o meu balé, a minha dança, a música, a poesia que conduz, ilude, embriaga a minha existência. No livro descobri onde começou a fusão de música, futebol e poesia. Jorge Ben e Maria Alcina. Por instantes, por meros instantes, fui Flamengo ao gritar gol de Fio Maraviha, junto aquela multidão que parecia a entorpecida do Maracanã. A voz e a dança de Maria Alcina, a letra de Jorge Ben ainda sacodem os meus ossos já endurecidos pelo tempo. Nunca mais separei futebol de poesia.
...e que poesia teve os anos 70! Dudu e Ademir é lenda. Fino biscoito! Andrade, Adílio e Zico rimam com precisão, vida, talento, arte. Falcão e Paulo César me provocaram desilusões, choros e revolta. Tarciso, André e Éder me libertaram. Vibrei, de emoção, ao ver Garrincha, ao vivo, transformar o uruguaio Bunuel no último João de sua vida. Entendi, finalmente, a alegria de um drible. Fascínio era Pelé. O poema completo, épico, imenso, o 'deus negro' que transformou a bola no Santo Graal. Fascinante, mágica, deslumbrante. O objeto de desejo, de sonhos, que ressurge frenético com Messi e Cristiano Ronaldo.
Nomes e cores. Tanto bagunçaram a alma, despertaram o coração, bailaram a mente. Chico, Caetano, Paulo Francis, Elis Regina, Lima Duarte, Pasquim, Jaguar, Brizola e um certo Lula. Nenhum nome nome foi tão envolvente naquele adolescente curioso como Glauber Rocha. Louco, desbocado, irreverente, culto, provocador. Esperava ansioso o 'Abertura' para vê-lo. Seus filmes vi apenas nos oitenta. 'Terra em Transe" é o mais mítico. Achei, que no ano passado, com a prisão de Lula tinha entendido o filme. O transe catatônico, a loucura de Lula, o desespero de devotos, a satisfação do público sedento de vingança, a prisão de um mito me explicaram o filme. Foi um engano. Era apenas um fragmento. Lula parece mais um 'Santo Guerreiro', um messiânico, do que o vilão populista. O mais amplo fragmento do delíro de Glauber vem com Jair Bollssonaro. A estupidez, o fundamentalismo religioso, o reacionarismo, os preconceitos são o grande retrato de Porfírio Diaz. O capitão reformado também pertence ao filme 'Idade da Terra", onde loucura, politica e demência formam o caráter do personagem central. Bollssonaro é o pior que os anos 70 nos deixou.
Apenas 'National Kid' me tirava do futebol. Adorava a música, o enredo, a história, o professor Massao Hata, os vilões - os incas venuzianos pareciam tão cruéis - e a sala cheia de amigos. O jogo era só depois.O Mário me ensinou que cinema era mais do que Trinity, Nídia de Paula e Winnetou. Me apresentou Fellini. Nunca esqueci as cenas iniciais de 'Amarcord'. Assisti com ele 'O Poderoso Chefão', 'Operação França', 'Klute', 'Bonnie and Clyde' - onde fiquei fissurado em Faye Dunnaway, que revi a suavidade de seu rosto ao conhecer Elaine. Mas, isto é outra história -, tantos outros. Mário é minha referência em monte de coisas. Anos 70 é uma delas. Ler o livro, folhar a esmo, esquecer a cronologia, buscar as fiuguras, escutar as música presentes no livro, ver os filmes, é como voltar no tempo. Sem esquecer que o tempo passou, já foi, mesmo tentando voltar nas memórias. Que fique apenas nas memórias.No entanto, como diz o Mário, 'o passado é sempre atual!'

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Divino!

 

"Ademir impõe com seu jogo o ritmo do chumbo (e o peso), da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo".
João Cabral de Melo Neto decifrou em poucas linhas a elegância discreta de Ademir da Guia. O meia que dominava o jogo envolvendo o adversário com o seu ritmo morno, plácido, fatal.

Mauro Pandolfi

Acordei pensando em Ademir da Guia. Sonhei com as suas passadas largas, silenciosas, lerdas. Procurei no you tube alguns jogos, cenas dispersas, imagens de seu olhar vago, distante. Foi a derrota do Grêmio que me levou a pensar em Ademir. Foi Luan a causa de procurar Ademir da Guia. Luan foi lento, disperso, ausente. O close em seu rosto revelou o olhar angustiado, perplexo, extraviado. Um olhar que vi numa capa da Placar lá por 1973. Dudu e Ademir. Olhar confiante de Dudu. Desconfiado, o de Ademir. Desnorteado, vago, caído, exatamente como o de Luan, na derrota do Universidad Católica. Não é uma comparação de jogo. É de estilo, de passadas, de olhares, de quem parece estar ausente, fora, sumido. Os gremistas culpam Luan pelo fracasso na Libertadores. Ademir da Guia não é reverenciado como deveria. Não era somente um craque. Era Divino!!!
Futebol e poesia são duas paixões. Joguei pouco e brinco menos ainda com as palavras. As escalações são versos, rimados ou não, declamados como poemas livres, soltos, anárquicos. Leão; Eurico, Luís Pereira, Alfredo e Zeca; Dudu e Ademir; Edu. Leivinha, César e Nei. Poema épico, complexo, amplo, literartura pura. Poucos versos tem a dimensão de Dudu e Ademir. Duas palavras, dois nomes, dois símbolos, uma história moderna. Complementares de tão diferentes que eram. A segurança, a valentia, a liderança de Dudu. A imponência, a sutileza, a elegância, o estilo de Ademir. Nunca mais o Palmeiras repetiu versos como estes.
Ademir da Guia era o solista e o maestro do jogo. Cadenciava em seu ritmo cada movimento da partida. A saída de bola era determinada pela postura do adversário. Sabia a exata noção de tempo e espaço. Pouca gente gente percebeu que ele era um marcador implacável. Não combatia, apenas cercava, dificultando a ação do adversário. Um toque sutil e a bola escolhia seus pés divinos. Acelerava ou retardava o lance dependo da movimentação de seus parceiros. Ademir da Guia era um ritmista. Alongava o passe ou deixava ele curto. Ademir não era pictórico. Era inteligente e refinado. A lentidão era só uma bobagem de comentarista que nem o óbvio enxerga.
Nesta semana, Ademir da Guia fez 77 anos. Brinco com o meu passado Porém, não sou nostáligico em nada. Ah, quem sabe na música, mas, às vezes, sinto saudade de Ademir e de João Cabral de Melo Neto. E, declamo, sozinho no quarto, os versos de Cabral sobre Ademir: "Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro, impondo-lhe o que ele deseja, mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia, de água doente de alagados, entorpecendo e então atando o mais irrequieto adversário".