quarta-feira, 1 de abril de 2020

Memórias...


"Acho espantoso viver, acumular memórias, afetos..."
Na quarenta descobri o significado da frase de Caio Fernando Abreu. No 'exílio' entendi que as memórias, as lembranças me mantém vivo, forte, resistente, esperançoso e evita a loucura.

Mauro Pandolfi

Não queria publicar nada neste tempo. A vida é o que importa. Tudo é secundário. Tudo!! Sobreviver é a melhor forma de resistir a este governo (sic) que flerta com o genocídio. Que trata a vida com números. Os mortos podem ser somente estatísticas. No entanto, não fale em estatística com alguém que perdeu quem ama. Isto é tragédia. Para fugir da loucura do pensamento fui mexer nas caixas onde guardo parte de minhas memórias. Descobri um velho texto. Uma coluna, quando substitui JB Telles, publicada no Diário Catarinense lá por 1987.  Aliás, propício a este dia, primeiro de abril. Compartilho com vocês.

Um  Achado!
Estava lá! Perdido entre o Camus e Sartre. Escondido atrás de ingênua restauração. O esparadrapo na lombada impedia a queda de folhas. A capa amarela escondia um desenho de Miró. Uma alegoria sobre a bola. Longos traços, finos traços que se encontram no ar. O livro que define futebol. "A Lenta Morte de uma Arte chamada Futebol", de Dahlor Tadrae, não era uma lenda! Sempre desconfiei que fosse mito. Nas minhas mãos uma edição portuguesa de janeiro de 58. De uma pequena editora chamada 'Greira'. João Saldanha tinha falado num programa de rádio. Armando Nogueira referiu numa crônica. Rui Carlos Ostermann explicou num comentário. procurei em sebos de várias cidades. Encontrei numa bucólica cidade do interior do Rio Grande do Sul. Uma livraria espremida entre um brechó e uma cantina no final da avenida Comandante Kramer, em Erechim. O limite da lenda.
Um inglês perplexo. Um jornalista com espírito de historiador. Um curioso apaixonado pela bola. Tadrae criou uma bela revista de futebol nos anos 50. A 'Daily Sports' revolucionou o olhar sobre a bola. Investigativa e poética. A bola de futebol era uma bola de cristal para Tadrae. Um ilusionista. Crítico mordaz, não gostava de cartolas ("ainda vão matar o futebol, essa gente", disse sobre os dirigentes).O humor era leve. Tinha uma filosofia que está na orelha do livro: "Aconteça o que acontecer é fundamental manter o bom humor". Tadrae achava o futebol a grande arte e o estádio, um imenso palco da vida.
Conta a história do futebol. Temia a morte da arte. Tadrae culpava o capitalismo pelo fim da alegria. "O profissionalismo vai acabar com a brincadeira de todas as crianças, de todos os adultos apaixonados pelo futebol, de todos os artistas, afinal, onde entra o dinheiro tira o prazer, some a alegria e a diversão, sobrevive o lucro e a ganância". Tadrae considerava a camisa de um clube um manto sagrado. "Espero não estar vivo para ver isto, a propaganda roubando o brazão. Será muito triste."
Veio ao Brasil. Conheceu o Maracanã. Ficou empolgado com os craques. "No Brasil, o ótimo jogador é chamado de craque. Não sabia muito bem o que quer dizer esta expressão, mas entendi quando fui ao estádio. O craque é um quase marginal, parece estar em conflito o tempo todo. Tem uma linha de observação e ação completamente diferente dos outros, é outro tempo, é mais espaço num reduzido campo". Deslumbrou-se com Garrincha. "Finalmente descobri um ponteiro-direito melhor do que Stanley Mathews. Um driblador que desconhece marcadores e adversários. Não entendo porque os jornalistas o chamam de individualista, como querem um ponteiro que não drible? O mundo precisa conhecê-lo". O mundo conheceu. Nunca mais esqueceu.
A maior surpresa de Tadrae foi Pelé. "Nunca tinha visto nada igual no futebol, tanto equilíbrio e precisão, quantos olhos ele tem? Neste jogo, ele driblou dois e foi derrubado, o árbitro marcou falta, todos nós vimos ele cair, ou pensamos ter visto, mas Pelé recuperou o equilíbrio, driblou dois e fez o gol. O árbitro pediu desculpas. Não sei o que dizer o que é Pelé! Um Deus, um Rei, um mago, um ser de outro planeta? Acho que ele não existe".
Dahlor Tadrae teve uma morte prosaica. Andava sobre um chafariz. Perdeu o equilíbrio, bateu a cabeça e morreu afogado numa pracinha no interior da Inglaterra em 31 de janeiro de 1960.

Assim como achei o livro, perdi. Talvez, num canto qualquer na casa de minha mãe ou caiu numa destas mudanças de minha vida. O que sobrou do livro foi esta coluna e algumas anotações em uma agenda, que não perdi!

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