quarta-feira, 20 de março de 2019

Boneca Russa

 

"A rotina é algo incrível. Nos tornamos o que repetimos"
Frase de Nadia, que morre, revive, morre, revive, numa rotina sufocante na ousada Boneca Russa. Isto é um pouco mais exagerado do que ocorre em nossa vida. Morremos, não de uma vez. Mas, devagar, aos poucos, aos pedaços, para ser mais dolorido.

Mauro Pandolfi

A vida e a morte conectadas numa espiral angustiante, de inícios e fins que sempre se repetem. Espaço e tempo definidos eternamente num vai e volta desesperador. 'Boneca Russa' é uma fascinante série da Netflix. A história de Nádia que sai da festa de seu aniversário e morre atropelada. Mas ressurge na festa como se a ação fosse inédita. As mortes se sucedem de várias formas. E ela renasce no mesmo banheiro da casa. Menos poética e romântica do que 'Feitiço do Tempo', Boneca Russa é um delírio de multiversos, de universos paralelos, de que o tempo e o espaço são somente fantasia, assim como a vida e a morte. O final da série é surpreendente. Como diz meu filho André, nada de spoiler. Largado, quase entediado, nada para fazer neste feriado de São José, brinco de Nádia. O que gostaria de reviver no futebol e na vida?
Maurinho é quase uma obsessão. A psicóloga de meu filho sugeriu terapia. Ri e recusei. 'Deixe meus monstrinhos em paz. Estão muito bem enclausurados, ao lado da alma', expliquei. Queria encontrá-lo e entender o fascínio e a paixão pelo Grêmio. Seria encantador rever ou reviver aquela manhã de 1967. A descoberta do Grêmio no Vermelhão de Copacabana. Todos de branco. Alcindo vestia uma camiseta elegante, vistosa, mágica, quase sagrada. Descobri o amor em três cores. Decidi ser negro, branco e azul. O chute de Alcindo, que estourou no travessão, é o ápice do encantamento. O barulho ainda é poesia nos meus ouvidos. Outro instante que faz parte parte da paixão é 1977. O voo da liberdade de André Catimba. Entendi a doce alegria, a magia de ser campeão, de ser vencedor (algo inédito em minha vida de torcedor), de ter o poster tão sonhado que nunca encontrei na Placar. Seria uma imensa felicidade reencontrar aquele domingo.
Doce madrugada foi aquela no dezembro de 1983. Renato Portaluppi desvendou o mundo para os gremistas. A Terra era mais do que azul. Preto e branco completavam aquela loucura. Não escolheria a Batalha dos Aflitos. Chorei, sofri, abracei meus filhos pela emoção ou pelo medo, gritei, vibrei. Dolorido demais! O Grêmio de Roger Machado e depois de Renato gostaria de ver sempre. O melhor que vi. O mais belo. O que jogou melhor. O que ainda joga bem. Este Grêmio que gosta da bola. Ama o jogo. Não preciso ser 'Nádia' para ver e rever este time que alimenta a minha alma. Tenho algumas partidas gravadas. No entanto, todas estão na minha memória. E, às vezes, mesmo por engano, o Grêmio de hoje revive o melhor que vi jogar. Este Grêmio é eterno. Acho que Maurinho se apaixonaria por este time.
Escolher um instante do que vivi é mais complicado. Durante muito tempo sonhei em reencontrar aquela turma do Copacabana. Onde comecei a descobrir a vida, o futebol, a amizade, a festa, o cinema,  os livros e o doce encanto das meninas. Ou, quem sabe, olhar, outra vez, a bela loirinha que morava na casa verde, na esquina de casa lá por 1977. Trocar mais do que olhares. Talvez, dizer algo que nunca foi dito. Como esquecer de 1982. O jornalismo, amigos para o resto da vida, as paixões, as ilusões que se perderam, o sonho de ser alguém e de um país muito diferente. Será que conseguiria avisar ou convencer alguém para evitar a abertura do hospício de 2019?
A vida passa pelos dedos, na tela do notebook, escolho datas, vivências, todas fundamentais. Como não escolher o dia que conheci Elaine? Seu rosto bem desenhado, quase uma sessão áurea de Da Vinci, sua suavidade e delicadeza. Nunca mais paramos com as trocas de olhares. A saudade bateu no coração e as lágrimas molharam o teclado. Lembrei do pai, de suas histórias, de sua generosidade, de sua gargalhada gostosa. Rever todos na mesa de domingo, na alegria da convivência...Seria fantástico! Poxa! A minha vida foi muito boa. Divertida e emocionante. Gostaria de rever André e Pedro pequenos, alegres por me ver chegar em casa. Os brinquedos espalhados e o convite tentador: vamos brincar! E, brincaria, outra vez, mais tempo, com mais intensidade, inventaria outras brincadeiras até eles se cansarem. E o meu prêmio seria ouvir a poesia que mais embalou a alma: eu te amo, pai!
Mas, não sou 'Nádia'. Vivo num único universo - às vezes, desconfio que é um paraleo - e cada dia é diferente. Muitas vezes, pesado; outros, suave.  Acho ótimo ter que descobri e viver o encantamento deste tempo, com as pessoas que completam o meu cotidiano, que fazem da vida uma doce - e louca - aventura. Afinal, se for reescrever este texto em 2032, certamente vou recordar deste agora.  Lembrei de Gonzaguinha: 'Viver e tão a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz...A vida é bonita, é bonita, e é bonita'.

2 comentários:

  1. Mais um belo texto... profundo, reflexivo, poético.
    Obrigado, meu amigo, por compartilhar teus escritos.
    Grande abraço.

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  2. Alexandre, meu solitário leitor, agradeço a leitura e o elogio. Abraços.

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