domingo, 19 de abril de 2015

O drible 2. O medo de ser 'João'

Mauro Pandolfi

Chiko Kuneski é um hábil artesão de palavras. As frases são belos dribles de linha de fundo em busca do passe para o gol. Chiko é um velho ponteiro. O leitor é o centroavante. O gol depende do talento do leitor. Há gol de placa. Mas, às vezes, a bola sai do estádio.  Chiko é desafiador. Busca o confronto de ideias, a tabela e o passe. No entanto, ele gosta mesmo é do drible.

Cuidado! Tu tens tudo para virar um 'João'. Faz tempo que o conheço. Nem sempre consigo fugir da provocação. No texto sobre o drible, Chiko preparou o lance. Jogou a bola por um lado. Ensaiou a corrida pelo outro. Uma linda meia-lua poética. Serei um 'João'?

Gosto do passe. Da bola que flutua de um lado a outro. Ela vai e volta sem pressa, com um ritmo acelerando no compasso da movimentação do adversário. O jogo tocado num bailado que encaixota o rival. Cérebro é que define o talento, também, no futebol. Admiro a tabela. O pensado me atrai mais do que o instintivo. 

No entanto, não renego o drible. É mágico, devastador, nunca humilhante. É a capacidade de encontrar uma solução onde não há saída. O driblador é o anarquista. O coletivo é importante. Porém, nada impede a fúria da individualidade. O drible é só meu. O passe é de todos.

O drible é poesia. Lembro de Dener. Rápido, enérgico, insinuante. Partia em linha reta, como um poema de Fernando Pessoa. A obsessão era o gol ou o passe para o atacante. Só em linha reta. Dener não tinha um repertório vasto de dribles. Era sempre o mesmo. Seco, veloz, bola num lado, ele pelo outro. Simples e eficaz. Dener! Saudades de um tempo em que via futebol como poesia.

O tamanho era de beque, visão de meia e dribles de um ponteiro. Renato Portaluppi é a melhor lembrança que tenho da bola.  Meu ídolo! A maior alegria da minha vida futebolística foi ele o inspirador. Gols e dribles numa madrugada que era só a hora do almoço no Japão. Tão genial e genioso que transmutou o tempo.

O mais admirável em Renato era o drible. Já nem tão garoto passava dias treinando o lance. Renato Portaluppi é a 'quarta pessoa' da Santíssima Trindade -  mais reverenciado - da religião gremista. Meu irmão Mário o considera melhor - "muito melhor", ressalta ele - do que Cristiano Ronaldo. Fé é fé! 

Há o drible que me incomoda. Troco até de canal quando vejo. O drible firula me tira do sério. O jogador vai, volta, vai, volta, rebola, cisca, belisca e não sai do lugar. O narrador, a torcida, deliram. Neste país há uma obsessão pelo inútil, pelo fútil, pelo estéril. O lance não vai a lugar nenhum. Mas, vira vinheta. Denílson é ícone deste driblador. Se Dener é poesia, Fernando Pessoa. Denílson é pagode. Tem o ritmo, a indolência e o lirismo do falso samba.

As tardes são dias de futebol. As melhores ficam no meio da semana. É complicado compartilhar com o trabalho. Procuro o jogo pelo computador. Nas brechas, espio os lances. E, que lances! Como Suarez achou o espaço entre as pernas de David Luiz? Percepção, inteligência, instinto? Tudo! Foram dribles sonhados por qualquer menino que ama o futebol. E, Messi? Dribla tanto em curva, como em linha reta. Messi é o futebol!

Da janela do quarto do Pedro vejo o pequeno campinho do condomínio onde moro. É um espaço dividido por grama - a menor parte -, areia - a maior - e terra. Nas férias escolares há jogos que parecem não ter fim. E, feito uma Carolina, fico na janela olhando e sonhando com um passado cada vez mais distante. Os meninos são exatamente como eu quando era menino. A bola é o grande brinquedo. O craque ainda é quem dribla, fica mais tempo com a bola.

 Lucas é um guri loiro, 15, 16 anos, que dança o tempo todo. Pega a bola, segura, dribla, solta só no aperto ou para o gol. É sempre o primeiro a ser escolhido. Leonardo, tem 16 anos, é o contrário. Simples, direto e dono de um passe preciso. Raramente erra, nunca dribla. Os gols, geralmente, saem de seus pés. É dos últimos a ser escolhido. É um candidato a craque. Porém, prefere ser engenheiro. Que pena!

O drible é imortal. É onde o mortal comum se destaca. É poético. Tem a rapidez de um repente ou de uma trova. Não há muito o que pensar. É o agir que surpreende o rival. O drible é a última instância do futebol romântico. É o lado atávico da sobrevivência. É animalidade do homem em contato com as forças naturais. É o signo do arcaico e o antigo. O passe, o jogo planejado é o civilizatório do homem. O instintivo é substituído pelo cerebral. 

Para um treinador é mais fácil lidar com o estudado, arquitetado do que o inesperado. Sempre haverá lugar para o drible. Quando o jogo estiver duro, sem saída, difícil, há duas opções: um grandalhão e um driblador. Nem sempre dá certo. O driblador deixa a partida viva, ligeira, rápida e alegre. É um leve encontro com o passado. Nada mais do que isto.

Poxa! Tentei fugir dos dribles poéticos em forma de texto. Quem sabe, consegui antecipar alguns lances, roubar umas bolas sem cometer nenhuma falta, partir para o ataque. Mas, a dúvida permanece: Fui um 'João'?


PS: Me indagaram o que é ser 'João'? Era a maneira que o grande Mané Garrincha chamava seus marcadores. Formavam uma linha, uma fila indiana. Um a um eram driblados do mesmo jeito. Simples, eficaz, em linha reta. Todos iguais, todos 'João'.

Um comentário:

  1. Depois o artesão das palavras sou eu. Tua definição da diferença do drible e do passe é pura dança de letras sem esquemas predefinidos. É poesia. Mas ainda acho que o que torna o futebol mágico é o drible, a genialidade impossível de marcar e ser tolhida. Um dos times com esqueça tático mais brilhante e com passes milimétricos que vi na vida foi o Flamengo de 81, campeão mundial. Mas era também um time de gênios dribladores, que desmontavam os técnicos estudiosos que tentavam esquemas para marcar os 11 do Flamengo. Soccer sem drible vira football.

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