quinta-feira, 2 de julho de 2015

Gols, mentiras e videoteipe

Mauro Pandolfi

"A mentira é uma verdade que não aconteceu"
Mário Quintana

Domingo de manhã. Lá por 98. Faz muito tempo, eu sei! Busquei na tevê um joguinho de futebol. Achei um torneio de seniores na TVE do Rio. "Cariocas x Paulistas. Encontro de craques". Era assim a chamada do jogo. Levei um susto quando narrador anunciou 'Luís Fernando, o craque da democracia corinthiana'. Para completar, o comentarista chamou Delacir de 'um virtuose do meio-campo'. Dois bondes no auge da carreira. Gremistas, flamenguistas e corinthianos sofreram com estes 'craques'. Entre perplexo e pensativo passei a desconfiar das verdades do futebol, dos seus mitos, dos deuses, dos heróis, dos textos. Entendi que é um jogo de mistificações, trapaças e mitologias.

Tostão é um artesão. Produziu joias como ponta de lança. Como colunista de futebol é um arguto observador. Olha por dentro e percebe de fora. Na coluna de 23 de maio de 2015, na Folha de São Paulo, dissecou o 'mito' Vanderlei Luxemburgo. Revelou que ele é apenas 'um reflexo no espelho'. Alguém que acreditou quando o chamaram de 'mago estrategista'. Para Tostão, Luxemburgo, e outros supertécnicos, não perceberam a transformação do futebol. Repetem os erros, os treinamentos, a observação, as soluções.

Continuam com os sistemas de 20 ou 30 anos atrás. Um futebol de pegada, marcação com três volantes - um cabeça de área e dois de lado, cobrindo o avanço dos laterais - e um meia para aproximar com o ataque. O jogo truncado, com bola aérea, chutões e muita correria. Mantém a setorização, a separação das linhas e um jogo longo e previsível. Tostão culpa os treinadores pelo fim dos armadores.

O ex-centroavante do Figueirense, Barbosa, amplia a crítica de Tostão. "O problema é a falta de treinamento. Os técnicos não corrigem e não ensinam os jogadores. Os fundamentos são precários. Observe os erros de passes, posicionamentos, chutes e dribles. Poucos acertam. Os treinadores não trabalham a correção. Há só coletivos e poucos táticos. Quase nenhum técnico", afirmou.

Quem sou eu para contestar Tostão e Barbosa. Mas, vamos lá! Sempre foi assim. O futebol brasileiro é uma ilusão, um devaneio, uma ficção, uma romantização de estilo. Poucas equipes foram diferentes. Esquadrões que conta-se nos dedos. Reparem quantos times de qualidade teve seu clube na história? Três ou quatro. O restante eram medianos. Isto é em qualquer clube do Brasil.

O futebol genial é aleatório. Não sei como se produz. No entanto, de tempos em tempos, surgem jogadores fantásticos, criam equipes espetaculares, partidas mágicas. Tornam-se referências históricas. Passam a impressão de que sempre foi assim. No entanto, infelizmente, é um engano. É apenas um hiato de qualidade.

'Realidade' foi uma revista revolucionária dos anos 60. Pegou a ditadura distraída e produziu grandes reportagens. Tenho uma delas guardada em um canto da casa da minha mãe. Usei no meu trabalho de conclusão de curso em jornalismo. Era sobre o futebol brasileiro. 'A decadência. O fim dos craques. Os grandes ídolos já não eram os melhores e os novatos não passavam de promessas'. O ano da revista? 1968! A matéria temia pela não classificação para a Copa do Mundo de 1970. Todos sabem o que aconteceu dois anos depois. E, aqueles campeões nunca mais repetiram a performance do México. Ah, ficar fora da Copa do Mundo parece um desejo. Falaram isto, além de 68, em 77, 85, 89, 93 e 2001. A esperança se renova agora.

Bill James desmontou as 'verdades eternas' do beisebol. Em Baseball Abstracts, reinventou as analises do jogo. Estudou as estatísticas históricas e descobriu que "uma grande parcela do conhecimento tradicional do esporte é baboseira ridícula". James estudou o beisebol com "o mesmo rigor e disciplina intelectual normalmente aplicados por cientistas renomados e desconhecidos, na tentativa de solucionar os mistérios do Universo, da sociedade, da mente humana ou do preço de sacos de estopas". Vários consultores de clubes passaram a adotar as analises de Bill James. Os mitos foram demolidos. Sobraram as lendas. Mas, somente como lendas.

Um estudo equivalente a este no futebol brasileiro produziria o mesmo estrago. Fim de mitologias, de craques e de equipes. Vamos descobrir que somos defensivos. Ganhamos cinco copas com ótimas defesas. O futebol sonhado dos anos 50, 60 e 70 é uma fantasia. Invenção de cronistas, de narradores e produto de uma história oral fascinante. A imprensa esportiva ainda acredita nisto. Vivem suspirando por um dez que nunca existiu - ou, já terminou - e desesperam-se por um centroavante arcaico, de 'referência'.

Um destes jogadores comentarista daqui, depois do jogo Avaí x Grêmio, reclamou a ausência de Douglas na Seleção de Dunga. Douglas? A estéril habilidade que se perde na indolência e nas firulas. Um vetusto meia perdido no tempo e no espaço do futebol. Um criador de lances pictóricos inúteis. Este é o padrão da análise da imprensa esportiva no Brasil que não distingue um drible vertical de um mero malabarismo estético. A revolução no futebol tem de ser total. No campo, na gestão, na análise. Abandonar conceitos obsoletos, chavões, o 'achismo', o clubismo e a linguagem.

O futebol era 'tão ofensivo' que em 1975, a CBD criou um ponto extra para vencedores por uma diferença de dois gols. Os placares mais comuns nesta década eram o 1 a 0 e o 0 x 0. A média de gols mais baixa no campeonato brasileiro é de 1971: 1,83 por partida. E, ainda havia Pelé, Tostão, Jairzinho, Dario, Rivelino etc. O campeonato brasileiro chegou a ter 92 clubes. Esquadrões como o Ceub de Brasília, Tiradentes do Piauí e Saad de São Caetano. Times que só loucos por futebol e videoteipe lembram. Porém, como dizem por aí, quando a lenda é mais interessante que a verdade, permanece a lenda. No futebol brasileiro ainda é assim.

Nunca se jogou tão bom futebol como hoje. Há todas as valências em ação. Vontade, habilidade, técnica, física, tática e poder mental. Os principais campeonatos europeus são assim. No Brasil, é outra história. Somos o que sempre jogamos. Não há os candidatos a mitos. Os jogadores vão embora ainda garotos. Sobram os medianos. Assistimos os clássicos europeus. Queremos, desejamos, torcemos para sermos iguais. Estamos longe, distante, como sempre tivemos destes jogos. Não há como comparar.

No passado um time era formado em dois ou três anos. Isto criava uma equipe sólida. Produzia a ilusão de grandes craques. Jogadores medianos pareciam melhores do que eram. A mecânica da equipe criava esta magia. Hoje, a cada três ou quatro meses, muda-se tudo ou quase tudo. Os times são formados por veteranos decadentes, comuns e promessas, que muitas vezes, ficam só na promessa.


O futebol não é feito só de gols. Além dos dribles e passes, há uma história intensa que move uma cidade, um estado, um país, o mundo. Um jogo em que tudo pode acontecer. O craque vira bonde. O bonde torna-se gênio. A derrota transforma-se em vitória. A vitória desmancha-se em um lance fortuito, acidental, mágico. O futebol é uma farsa. Uma deliciosa mentira que de tanto ser contada, torna-se verdade. Mas, o que é mentira? A verdade do jogo foi tão esquecida que parece mentira. Porém, o que é verdade?



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