Mauro Pandolfi
O tempo está indo embora. São quase quarenta do segundo. As unhas
do torcedor são esmagadas por dentes vorazes. Os músculos triscados de tensão.
Olhares atônitos. A aflição é maior que a esperança. A bola flutua perto área.
Os zagueiros estão firmes, atentos, seguros. O tempo voa. A organização tática
desmancha-se. A bola rola rápida e nervosa, sem rumo para os lados ou apressada
para frente.
O adversário erra. A bola encontra o pé santo no ar. Desce mágica,
mansa, serena. Cabeça erguida, atento, vai abrindo o espaço exíguo, célere,
escapa da falta, arma a tabela, recebe na frente, só o goleiro. Num átimo
dribla-o e toca leve a bola feliz para a rede.
Os gritos, os urros, os pulos explodem no estádio. O impossível é
um drible no futebol. Sempre acontece. O ídolo surge assim. No desespero, na
desesperança, no medo.
O espelho separa o torcedor do ídolo. Reflete nele o desejo, o
sonho, a frustração. O torcedor nunca erra, não falha, perde no equívoco do
outro, do árbitro, da injustiça. O ídolo é a certeza da vitória, da
entrega, do título. A camisa é o manto sagrado, o ídolo é o semideus, o
estádio é o templo de uma religião que não admite ateu. O torcedor batiza o
filho com o nome do ídolo. É a esperança de um dia o mito se materializar em
casa, próximo, ser alguém da família.
O ídolo nem sempre é o craque. Nunca é o comum. É o que lembra o
torcedor em campo. O que luta até a última gota de suor. O sangue na camisa é o
grande troféu do ídolo. A camisa suja de sangue dada ao torcedor é mais sagrada
que o Santo Sudário.
Ao ídolo tudo é consentido. Vira verso nos hinos, o rosto estampa
os trapos da torcida, entra na história. Tudo é permitido ao ídolo. Perder um
pênalti ou marcar um gol contra nada impede a idolatria. Ao ídolo não é
tolerado a troca de camisa. Jogar no rival é um crime de lesa clube, mortal.
Quando ocorre, o ídolo é imolado, destruído num ódio bíblico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário