quarta-feira, 11 de março de 2015

As laranjinhas

Chiko Kuneski

Na sua crônica de domingo Mauro Pandolfi usou a memória afetiva para externar como o lúdico que envolve o futebol encantou sua infância/adolescência. E o título não podia ser mais feliz: “meninos de Kichute”. Quem já chegou aos 50 sabe o valor que era ter um Kichute com travas de borracha. As chuteiras eram para os profissionais.

Mas, pegando uma carona no Kichute do Mauro Pandolfi, minha infância tinha, além do calçado, outro objeto de desejo. A “laranjinha”. Laranjinha era um refrigerante nacional que tentava rivalizar com o Cruch. Vinha em garrafas de 200 ml e matava a sede depois das peladas dos meninos da rua. Isso quando se tinha dinheiro para pagar ou a autorização dos pais para “por na conta”.

A turma do Beco, que na verdade era uma rua com saída que dava no descampado de barro, a beira-rio e bem abaixo de um barranco, que unia três ruas, se encontrava nessa “covanca”, transformada em campo de pelada. As traves eram de eucalipto, sem redes e as dimensões poderiam ser o que atualmente se chama de “futebol sete”. Mas era o nosso campo. O “covanca”.

Como futebol sem rivalidade não existe, depois de muitas peladas que misturavam os da rua da direita, com os da rua do meio e da rua da esquerda em amistosos de puro prazer, alguém resolveu que, como os adultos nos casados contra solteiros que terminavam em cervejada, tínhamos que montar dois times e jogar “às veras”. O cobiçado troféu seria uma caixa com 36 laranjinhas. Somente os vencedores beberiam o refrigerante. Aos perdedores caberia a água da bica.

Alguém teria que montar os times rivais. Eu e o Kido, amigo da rua da esquerda, como somos deficientes físicos, acabamos sendo os técnicos. Destino interessante e sabedoria infantil, aos dois que não poderiam ganhar as laranjinhas jogando coube o direito de escolher quem as ganharia vencendo a partida.

Pela primeira vez os amigos da “turma do beco” levaram o futebol a sério. Durante uma semana foram conversas ao pé do ouvido, encontros, conchavos buscando os melhores para seu time. No sábado mágico, com a caixa de laranjinhas, comprada com dinheiro de uma “vaquinha” de todos, garantida, e ai estava o melhor sentido dessa disputa, veio a contenda.

O jogo mais pareceu um clássico, até com juiz, um adulto para impor respeito, disputado a cada lance, a cada bola, a cada jogada. O Time do Kido tinha o Farias, mais velho, mais forte, o craque e goleador do barro do “covanca”. Mas o que eu montei tinha o Maninho, baixo, troncudo e veloz, um “carrapato” no próprio conceito de volante de marcação, muito tempo antes de saber que isso existiria.


Naquele jogo, como se fosse uma decisão de mundial das três ruas do Beco, as 36 laranjinhas valiam bem mais que a diversão de jogar futebol. O craque tudo tentou, mas o volante não deixou a bola passar dentro da marca dos três paus de eucalipto. Tudo acabou na “venda do “seo Venâncio” com as 36 garrafinhas de laranjinha sendo saboreadas por todos da Turma do Beco, no melhor zero a zero da minha vida.

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