Mauro
Pandolfi
"A
mentira é uma verdade que não aconteceu"
Mário
Quintana
Domingo
de manhã. Lá por 98. Faz muito tempo, eu sei! Busquei na tevê um joguinho de
futebol. Achei um torneio de seniores na TVE do Rio. "Cariocas x Paulistas.
Encontro de craques". Era assim a chamada do jogo. Levei um susto quando
narrador anunciou 'Luís Fernando, o craque da democracia corinthiana'. Para
completar, o comentarista chamou Delacir de 'um virtuose do meio-campo'. Dois
bondes no auge da carreira. Gremistas, flamenguistas e corinthianos sofreram
com estes 'craques'. Entre perplexo e pensativo passei a desconfiar das
verdades do futebol, dos seus mitos, dos deuses, dos heróis, dos textos.
Entendi que é um jogo de mistificações, trapaças e mitologias.
Tostão
é um artesão. Produziu joias como ponta de lança. Como colunista de futebol é
um arguto observador. Olha por dentro e percebe de fora. Na coluna de 23 de
maio de 2015, na Folha de São Paulo, dissecou o 'mito' Vanderlei Luxemburgo.
Revelou que ele é apenas 'um reflexo no espelho'. Alguém que acreditou quando o
chamaram de 'mago estrategista'. Para Tostão, Luxemburgo, e outros
supertécnicos, não perceberam a transformação do futebol. Repetem os erros, os
treinamentos, a observação, as soluções.
Continuam
com os sistemas de 20 ou 30 anos atrás. Um futebol de pegada, marcação com três
volantes - um cabeça de área e dois de lado, cobrindo o avanço dos laterais - e
um meia para aproximar com o ataque. O jogo truncado, com bola aérea, chutões e
muita correria. Mantém a setorização, a separação das linhas e um jogo longo e
previsível. Tostão culpa os treinadores pelo fim dos armadores.
O
ex-centroavante do Figueirense, Barbosa, amplia a crítica de Tostão. "O
problema é a falta de treinamento. Os técnicos não corrigem e não ensinam os
jogadores. Os fundamentos são precários. Observe os erros de passes,
posicionamentos, chutes e dribles. Poucos acertam. Os treinadores não trabalham
a correção. Há só coletivos e poucos táticos. Quase nenhum técnico",
afirmou.
Quem
sou eu para contestar Tostão e Barbosa. Mas, vamos lá! Sempre foi assim. O
futebol brasileiro é uma ilusão, um devaneio, uma ficção, uma romantização de
estilo. Poucas equipes foram diferentes. Esquadrões que conta-se nos dedos.
Reparem quantos times de qualidade teve seu clube na história? Três ou quatro.
O restante eram medianos. Isto é em qualquer clube do Brasil.
O
futebol genial é aleatório. Não sei como se produz. No entanto, de tempos em
tempos, surgem jogadores fantásticos, criam equipes espetaculares, partidas
mágicas. Tornam-se referências históricas. Passam a impressão de que sempre foi
assim. No entanto, infelizmente, é um engano. É apenas um hiato de qualidade.
'Realidade'
foi uma revista revolucionária dos anos 60. Pegou a ditadura distraída e
produziu grandes reportagens. Tenho uma delas guardada em um canto da casa da
minha mãe. Usei no meu trabalho de conclusão de curso em jornalismo. Era sobre
o futebol brasileiro. 'A decadência. O fim dos craques. Os grandes ídolos já não
eram os melhores e os novatos não passavam de promessas'. O ano da revista?
1968! A matéria temia pela não classificação para a Copa do Mundo de 1970.
Todos sabem o que aconteceu dois anos depois. E, aqueles campeões nunca mais
repetiram a performance do México. Ah, ficar fora da Copa do Mundo parece um
desejo. Falaram isto, além de 68, em 77, 85, 89, 93 e 2001. A esperança se
renova agora.
Bill
James desmontou as 'verdades eternas' do beisebol. Em Baseball Abstracts,
reinventou as analises do jogo. Estudou as estatísticas históricas e descobriu
que "uma grande parcela do conhecimento tradicional do esporte é baboseira
ridícula". James estudou o beisebol com "o mesmo rigor e disciplina
intelectual normalmente aplicados por cientistas renomados e desconhecidos, na
tentativa de solucionar os mistérios do Universo, da sociedade, da mente humana
ou do preço de sacos de estopas". Vários consultores de clubes passaram a
adotar as analises de Bill James. Os mitos foram demolidos. Sobraram as lendas.
Mas, somente como lendas.
Um
estudo equivalente a este no futebol brasileiro produziria o mesmo estrago. Fim
de mitologias, de craques e de equipes. Vamos descobrir que somos defensivos.
Ganhamos cinco copas com ótimas defesas. O futebol sonhado dos anos 50, 60 e 70
é uma fantasia. Invenção de cronistas, de narradores e produto de uma história
oral fascinante. A imprensa esportiva ainda acredita nisto. Vivem suspirando
por um dez que nunca existiu - ou, já terminou - e desesperam-se por um
centroavante arcaico, de 'referência'.
Um
destes jogadores comentarista daqui, depois do jogo Avaí x Grêmio, reclamou a
ausência de Douglas na Seleção de Dunga. Douglas? A estéril habilidade que se
perde na indolência e nas firulas. Um vetusto meia perdido no tempo e no espaço
do futebol. Um criador de lances pictóricos inúteis. Este é o padrão da análise
da imprensa esportiva no Brasil que não distingue um drible vertical de um mero
malabarismo estético. A revolução no futebol tem de ser total. No campo, na
gestão, na análise. Abandonar conceitos obsoletos, chavões, o 'achismo', o
clubismo e a linguagem.
O
futebol era 'tão ofensivo' que em 1975, a CBD criou um ponto extra para
vencedores por uma diferença de dois gols. Os placares mais comuns nesta década
eram o 1 a 0 e o 0 x 0. A média de gols mais baixa no campeonato brasileiro é
de 1971: 1,83 por partida. E, ainda havia Pelé, Tostão, Jairzinho, Dario,
Rivelino etc. O campeonato brasileiro chegou a ter 92 clubes. Esquadrões como o
Ceub de Brasília, Tiradentes do Piauí e Saad de São Caetano. Times que só
loucos por futebol e videoteipe lembram. Porém, como dizem por aí, quando a
lenda é mais interessante que a verdade, permanece a lenda. No futebol
brasileiro ainda é assim.
Nunca
se jogou tão bom futebol como hoje. Há todas as valências em ação. Vontade,
habilidade, técnica, física, tática e poder mental. Os principais campeonatos
europeus são assim. No Brasil, é outra história. Somos o que sempre jogamos.
Não há os candidatos a mitos. Os jogadores vão embora ainda garotos. Sobram os
medianos. Assistimos os clássicos europeus. Queremos, desejamos, torcemos para
sermos iguais. Estamos longe, distante, como sempre tivemos destes jogos. Não
há como comparar.
No
passado um time era formado em dois ou três anos. Isto criava uma equipe sólida.
Produzia a ilusão de grandes craques. Jogadores medianos pareciam melhores do
que eram. A mecânica da equipe criava esta magia. Hoje, a cada três ou quatro
meses, muda-se tudo ou quase tudo. Os times são formados por veteranos
decadentes, comuns e promessas, que muitas vezes, ficam só na promessa.
O
futebol não é feito só de gols. Além dos dribles e passes, há uma história
intensa que move uma cidade, um estado, um país, o mundo. Um jogo em que tudo
pode acontecer. O craque vira bonde. O bonde torna-se gênio. A derrota
transforma-se em vitória. A vitória desmancha-se em um lance fortuito,
acidental, mágico. O futebol é uma farsa. Uma deliciosa mentira que de tanto
ser contada, torna-se verdade. Mas, o que é mentira? A verdade do jogo foi tão
esquecida que parece mentira. Porém, o que é verdade?