segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Baliza

 

Mauro Pandolfi

Foi lá por 1973, céu aberto, verdes anos chumbados, que conheci Baliza. Três anos mais velho, mais alto, mais pobre. Carlinhos, amigo de rua e parceiro de time, me convidou para um torneio no Flodoardo Cabral. Mítica escola de Copacabana que dividia o muro com o Vermelhão. No segundo jogo, salvei um gol em cima da linha. "Tu me dá sorte, cara!", me abraçou. Era o início de uma amizade. Fomos campeões. Baliza defendeu dois pênaltis na decisão. A medalha e o pequeno troféu ficaram com o Carlinhos. Ajudei Baliza a desmontar as traves e colocar no saco. "São minhas. Nunca me traíram", disse. Sorridente com o imenso pacote nas costas partiu. "Só joga com elas. Nunca vi jogar sem as balizas, como ele as chama. É louco isto, Maurinho!", tentou me explicar Carlinhos. Nos despedimos na primeira esquina.
Baliza morava no alto do Copacabana. Uma pequena casa de madeira com a mãe faxineira, o pai músico da noite, duas irmãs mais velhas e um irmão mais novo. Vida dura como a de todos os pobres deste país. "A tua vida é boa, Maurinho. Come bem todos os dias. Aqui em casa é tudo contadinho. Só podemos comer quando o pai e a mãe estão em casa. Eles dividem a comida. Ninguém pode comer fora de hora. Por isto gosto de filar o café da tarde na tua casa, viu!". O sorriso maroto de quem confessava uma esperteza. Ri com ele. "Então, vamos! O tio Cacildo trouxe queijo e salame e a tevê veio do conserto, dá para ver National Kid". E, lá fomos nós. 
Uma tarde, Baliza bateu lá em casa. Me chamou para ir com ele buscar o dinheiro para seu pai numa boate da zona. Fiquei curioso, entusiasmado, intimidado. A zona ficava ao lado do cemitério. Entramos num labirinto de becos. Chegamos numa casa amarela. Na porta, uma mulher maquiada o recebe com um beijo. "Vanda traz o dinheiro do Bastião que o filho veio buscar!". Ela nos manda entrar. Nunca tinha visto tantos sofás e portas. De uma delas, sai uma morena pequena enrolada numa toalha verde. Olhei encantado. 'Nunca viu uma mulher, alemão?", perguntou. Vermelho, com vergonha, respondi baixinho, quase sussurrando: "de toalha, não!". Ela riu. Me encarou, acariciou meu cabelo e deixou cair a toalha. "E, sem?" Corpo bonito, seios pequenos, os pelos ralos, coxuda, bundinha redonda...um tesão!. "Qual é a tua idade?". "Treze!" A mulher maquiada a repreendeu e mandou entrar num quarto. A cena nunca fugiu da memória. Virou sonho, desejo, meu símbolo de prazer. Ainda penso na morena.
Futebol ao sol e à sombra. Todo dia era dia de bola. Num deles, justo contra o time do Carlo e do Orli, faltou goleiro. O Mosquito viajou. Lembrei do Baliza. Fui até a sua casa. "Contra quem o jogo?", perguntou-me. "Lá no Boldo, contra o time do Carlo", respondi. "O Fernando é que nem eu. Tem as suas balizas, só joga com elas. Então não vou!" Sempre me intrigou a histórias das traves. "Isto é uma bobagem, Baliza! Frescura!". Ficou irritado. "A tua vida é boa, já disse isto. As balizas são as únicas coisas que tenho. Fui eu que fiz. São extensão das minhas mãos, ficam embaixo da minha cama, converso com elas, passo cera, cuido bem delas. Nunca me traíram. Nunca uma bola bateu na trave e entrou. Ou vai para fora ou cai no meu colo. Me sinto gente embaixo delas. Só neste momento que sou respeitado", desabafou. As mãos grandes, seguras, ágeis esconderam as lágrimas. Foi a última vez que falei com ele. Quatro dias depois fui embora de Lages.
Março de 99. Um sábado quente. O meu filho André era um bebê e fui num casamento em Palhoça. O salão grande oferecia vários lugares. Escolhemos um longe da banda. Logo em seguida chegou um casal. Conheci de cara. Era o Carlinhos e a esposa. A noiva era prima da mulher dele e amiga da minha. A festa começou. Falamos de tudo. Vida, filhos, família, trabalho e Lages. Há um ano estava morando em Curitiba. Mas, falou de todos. Descobri que o Bolacha se tornou bombeiro; o Abel , contador; João e o Tonho assumiram a lanchonete do pai...de todos.
'E o Baliza?' perguntei. "Não sabe da tragédia, Maurinho? Foi em 78, o pai dele chegou bêbado e ninguém sabe como, tacou fogo na casa. Além do velho, morreu uma irmã. Não sobrou nada. Até as balizas dele queimaram. Ele desapareceu de Lages. Virei a cidade de cabeça para baixo e não encontrei. A família sumiu", contou. Paramos um pouco a conversa. O jantar foi servido. Mas, a cerveja era mais gostosa que a comida.
Carlinhos é um ótimo contador de história. Ele notou a minha tristeza. "Não fica assim, Maurinho. A história não termina aí. Em 87, estou fazendo um trabalho de pesquisa no Coral e quem encontro. Magro, mal vestido, mais silencioso: o Baliza. Almoçamos juntos. Contou o que aconteceu. A família foi para Carazinho, cidade da mãe dele e agora resolveu voltar. Pediu um emprego. Consegui na firma uma vaga para ele. Tu nem imagina o que aconteceu? Tem sempre um torneio de Natal. Faltava um no meu setor e convidei ele. Já foi avisando: não sou goleiro. Sou centroavante!", a história é cortada pelos noivos para as fotos.
A cerveja estava mesmo boa. Carlinhos não parava de falar com as pessoas, familiares de sua esposa. Passou um tempo e ele voltou à minha mesa. "Maurinho, o Baliza foi o artilheiro. Fazia gols de todo jeito. Uma coisa curiosa, geralmente a bola batia na trave e entrava. Ele ia lá beijar a goleira. Ele me dizia: sempre disse para vocês que o goleiro não pode confiar nas balizas. São como a vida,  traiçoeiras!". Chegou a hora de ir embora. Dei um abraço forte, um beijo no rosto do Carlinhos e nos despedimos. Nunca mais o vi.
Gosto de ler os jornais das cidade que morei. Em novembro, no obituário do Correio Lageano, vi está notícia: "...Antônio dos Santos, 58 anos, morreu atropelado ao sair da Igreja Deus é Pai por uma caminhonete dirigida por um motorista embriagado que foi detido pela polícia. Antônio foi goleador do futebol amador de Lages, onde era conhecido por Baliza..." A lágrima escapou no teclado. Lembrei dele, dos jogos, das conversas. Eu nunca soube o seu nome. Baliza era mágico. Não precisava saber o que estava escrito na certidão, fiquei surpreso ao ler que ele era Antônio como eu.

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