Mauro Pandolfi
Foi
lá por 1973, céu aberto, verdes anos chumbados, que conheci Baliza.
Três anos mais velho, mais alto, mais pobre. Carlinhos, amigo de rua e
parceiro de time, me convidou para um torneio no Flodoardo Cabral.
Mítica escola de Copacabana que dividia o muro com o Vermelhão. No
segundo jogo, salvei um gol em cima da linha. "Tu me dá sorte, cara!",
me abraçou. Era o início de uma amizade. Fomos campeões. Baliza defendeu
dois pênaltis na decisão. A medalha e o pequeno troféu ficaram com o
Carlinhos. Ajudei Baliza a desmontar as traves e colocar no saco. "São
minhas. Nunca me traíram", disse. Sorridente com o imenso pacote nas
costas partiu. "Só joga com elas. Nunca vi jogar sem as balizas, como
ele as chama. É louco isto, Maurinho!", tentou me explicar Carlinhos.
Nos despedimos na primeira esquina.
Baliza
morava no alto do Copacabana. Uma pequena casa de madeira com a mãe
faxineira, o pai músico da noite, duas irmãs mais velhas e um irmão mais
novo. Vida dura como a de todos os pobres deste país. "A tua vida é
boa, Maurinho. Come bem todos os dias. Aqui em casa é tudo contadinho.
Só podemos comer quando o pai e a mãe estão em casa. Eles dividem a
comida. Ninguém pode comer fora de hora. Por isto gosto de filar o café
da tarde na tua casa, viu!". O sorriso maroto de quem confessava uma
esperteza. Ri com ele. "Então, vamos! O tio Cacildo trouxe queijo e
salame e a tevê veio do conserto, dá para ver National Kid". E, lá fomos
nós.
Uma
tarde, Baliza bateu lá em casa. Me chamou para ir com ele buscar o
dinheiro para seu pai numa boate da zona. Fiquei curioso, entusiasmado,
intimidado. A zona ficava ao lado do cemitério. Entramos num labirinto
de becos. Chegamos numa casa amarela. Na porta, uma mulher maquiada o
recebe com um beijo. "Vanda traz o dinheiro do Bastião que o filho veio
buscar!". Ela nos manda entrar. Nunca tinha visto tantos sofás e portas.
De uma delas, sai uma morena pequena enrolada numa toalha verde. Olhei
encantado. 'Nunca viu uma mulher, alemão?", perguntou. Vermelho, com
vergonha, respondi baixinho, quase sussurrando: "de toalha, não!". Ela
riu. Me encarou, acariciou meu cabelo e deixou cair a toalha. "E, sem?"
Corpo bonito, seios pequenos, os pelos ralos, coxuda, bundinha
redonda...um tesão!. "Qual é a tua idade?". "Treze!" A mulher maquiada a
repreendeu e mandou entrar num quarto. A cena nunca fugiu da memória.
Virou sonho, desejo, meu símbolo de prazer. Ainda penso na morena.
Futebol
ao sol e à sombra. Todo dia era dia de bola. Num deles, justo contra o
time do Carlo e do Orli, faltou goleiro. O Mosquito viajou. Lembrei do
Baliza. Fui até a sua casa. "Contra quem o jogo?", perguntou-me. "Lá no
Boldo, contra o time do Carlo", respondi. "O Fernando é que nem eu. Tem
as suas balizas, só joga com elas. Então não vou!" Sempre me intrigou a
histórias das traves. "Isto é uma bobagem, Baliza! Frescura!". Ficou
irritado. "A tua vida é boa, já disse isto. As balizas são as únicas
coisas que tenho. Fui eu que fiz. São extensão das minhas mãos, ficam
embaixo da minha cama, converso com elas, passo cera, cuido bem delas.
Nunca me traíram. Nunca uma bola bateu na trave e entrou. Ou vai para
fora ou cai no meu colo. Me sinto gente embaixo delas. Só neste momento
que sou respeitado", desabafou. As mãos grandes, seguras, ágeis
esconderam as lágrimas. Foi a última vez que falei com ele. Quatro dias
depois fui embora de Lages.
Março
de 99. Um sábado quente. O meu filho André era um bebê e fui num
casamento em Palhoça. O salão grande oferecia vários lugares. Escolhemos
um longe da banda. Logo em seguida chegou um casal. Conheci de cara.
Era o Carlinhos e a esposa. A noiva era prima da mulher dele e amiga da
minha. A festa começou. Falamos de tudo. Vida, filhos, família, trabalho
e Lages. Há um ano estava morando em Curitiba. Mas, falou de todos.
Descobri que o Bolacha se tornou bombeiro; o Abel , contador; João e o
Tonho assumiram a lanchonete do pai...de todos.
'E
o Baliza?' perguntei. "Não sabe da tragédia, Maurinho? Foi em 78, o pai
dele chegou bêbado e ninguém sabe como, tacou fogo na casa. Além do
velho, morreu uma irmã. Não sobrou nada. Até as balizas dele queimaram.
Ele desapareceu de Lages. Virei a cidade de cabeça para baixo e não
encontrei. A família sumiu", contou. Paramos um pouco a conversa. O
jantar foi servido. Mas, a cerveja era mais gostosa que a comida.
Carlinhos
é um ótimo contador de história. Ele notou a minha tristeza. "Não fica
assim, Maurinho. A história não termina aí. Em 87, estou fazendo um
trabalho de pesquisa no Coral e quem encontro. Magro, mal vestido, mais
silencioso: o Baliza. Almoçamos juntos. Contou o que aconteceu. A
família foi para Carazinho, cidade da mãe dele e agora resolveu voltar.
Pediu um emprego. Consegui na firma uma vaga para ele. Tu nem imagina o
que aconteceu? Tem sempre um torneio de Natal. Faltava um no meu setor e
convidei ele. Já foi avisando: não sou goleiro. Sou centroavante!", a
história é cortada pelos noivos para as fotos.
A
cerveja estava mesmo boa. Carlinhos não parava de falar com as pessoas,
familiares de sua esposa. Passou um tempo e ele voltou à minha mesa.
"Maurinho, o Baliza foi o artilheiro. Fazia gols de todo jeito. Uma
coisa curiosa, geralmente a bola batia na trave e entrava. Ele ia lá
beijar a goleira. Ele me dizia: sempre disse para vocês que o goleiro
não pode confiar nas balizas. São como a vida, traiçoeiras!". Chegou a
hora de ir embora. Dei um abraço forte, um beijo no rosto do Carlinhos e
nos despedimos. Nunca mais o vi.
Gosto
de ler os jornais das cidade que morei. Em novembro, no obituário do
Correio Lageano, vi está notícia: "...Antônio dos Santos, 58 anos,
morreu atropelado ao sair da Igreja Deus é Pai por uma caminhonete
dirigida por um motorista embriagado que foi detido pela polícia.
Antônio foi goleador do futebol amador de Lages, onde era conhecido por
Baliza..." A lágrima escapou no teclado. Lembrei dele, dos jogos, das
conversas. Eu nunca soube o seu nome. Baliza era mágico. Não precisava
saber o que estava escrito na certidão, fiquei surpreso ao ler que ele
era Antônio como eu.
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