terça-feira, 2 de maio de 2017

O narciso do plasma

Chiko Kuneski

Demorei para entender o olhar para os telões dos estádios a cada gol de Cristiano Ronaldo. Cena repetida. Pernas abertas mãos erguidas, olhar ao céu, céu dos deuses do futebol. Um mero narciso do século XXI a se olhar no espelho cibernético, contemplando sua face alegre, tão feliz como o grito de gol dos milhares de torcedores.
Mas, depois de muito ver sua arte dos pés pelos tubos, entendi que não era um simples olhar para si mesmo. Voltava sua perspicácia aos telões para ver as pinceladas de sua arte de fazer gols eternizada no plasma. Um “expressionista” de si mesmo.

Revi os conceitos. Os conceitos imutáveis são radicalismos tacanhos próprios dos ranzinzas, que não têm idade. Mudar, às vezes, depende do tempo e do que se extrai dele.
Seis gols em dois jogos decisivos. Uma marca incontestável. Gols de pênalti dirão os ranzinzas. Pênalti faz parte do jogo e do gol. Ouse perder e vem a execração. Hoje, mais uma vez vociferarão alguns, meramente mais  um gol. Mas foi uma pintura expressionista do dono do espaço.

Cristiano Ronaldo domina uma bola espirrada da defesa, impensada, menos para ele, ajeita o corpo, esguio, olhar altivo para o gol e goleiro, faz a barreira corporal no marcador, libera todo o espaço no exíguo tempo de raciocínio. Sem olhar para os pés sai o chute seco de peito do pé. O couro da chuteira pincelando o couro da bola. Voadora. Bola ligeira num sonoro roçar da rede inflada pela potência que inflama. Torcida efusiva. Gol do craque.
Não consegui saber se o algoz do adversário mirou-se no plasma do estádio, certamente querendo rever sua obra. Apenas contemplei o repetir do lance por várias câmeras. Num olhar mais ousado aprendi que somos todos narcisos do plasma. As redes sociais com seus aplicativos, sejam eles quais forem, transforam o comum num adorador de si mesmo. Da sua obra. Do que escreve, desejoso para ser lido e visto. Não escapo disso. Sou um mais um deles. Um narciso do plasma.

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