Mauro Pandolfi
Manhã nublada.
Gosto de caminhar com o tempo assim. Fui cedo, na hora que a Elaine
levou o André à escola. Fiquei na Beira-mar. Olhei o mar antes de
caminhar. Estava bonito. Agitado, triscado, como um rebelde. Quis
escapar do bairro, das ruas conhecidas, das pessoas. Ficar longe.
Sozinho. Refletir, pensar, desabafar baixinho para não incomodar
ninguém. Ando lentamente. Não tenho pressa. Sou ultrapassado por todos.
Gente rápida que procura forma e beleza. Eu busco paz.
Num
banco, de frente para o mar, a silhueta que conheço. Chego perto.
Escuto a voz. "Bom dia, Mauro! Achei que tu não viria mais". Rai Carlos,
o vidente cego, me cumprimentando. 'Longe de casa, meu amigo! Bom te
ver!'. Nos abraçamos, dei um beijo no rosto e o questiono. 'Como
sabia que era eu?' Ele ri. "Ainda não sabe quem sou. Não vejo com os
olhos. Enxergo com o cérebro e o auxílio luxuoso dos ouvidos. Sei como
são seus passos, a intensidade, o barulho. Hoje ele está um pouco
diferente, mais pesado. Triste, Mauro?", disse. O 'sim' saiu
melancólico. Não falei mais nada.
Rai
quebrou o silêncio. "Sabia que iria te encontrar aqui. Vim mais cedo
para ver o mar, pensar o que te dizer, refletir sobre a vida, a amizade,
como te orientar, te ajudar", explicou. Nunca entendi esta ligação com
Rai. Sabe os meus passos, os pensares, as minhas angústias. Está sempre
disponível. "Alma, Mauro! Somos ligados pela alma. Em algum momento do
universo, da existência nos cruzamos ou fomos um só. Separados pelas
vidas. Mas, unidos. Eu sei quem é você. E, você, sabe quem sou eu.
Porém,
não identifica isto, pois ainda não entendeste a metafísica, o sentido,
quem somos, o que somos. És racional demais, materialista demais,
espiritual de menos.
Tu tens a cabeça aberta", argumentou.
Tentei
interromper. Rai sinaliza silêncio com o dedo na boca. "Não fale.
Escute. A tua alma é fechada. Presa a vida atual, ao cotidiano, ao
dia-a-dia, a sobrevivência do corpo. A tua tristeza é do corpo. A tua
alma suspira por vida, felicidade, alegria, vitalidade. Falta energia na
sua alma. É a alma que tem um corpo. O corpo é descartável. Deixe o
físico de lado. As
dificuldades econômicas, isto é que te angustia, serão eternas para
você. São as suas escolhas de vida. O caminho que percorreste levou a
isto. E foram ótimas as tuas escolhas. Elas te transformaram, te
moldaram. A tua humanização passou por isto, pela dificuldade do
dinheirinho contado, pelo aperto, pelo sufoco. Elas te tornaram um homem
decente, íntegro, um bom pai. Isto é o que importa!", explicou. Em
seguida, tirou uma garrafinha de água,
deu um gole e me ofereceu. "Não é benta, viu? É só gelada!", riu da boa
piada.
Olhei
o mar. Tentei ver como Rai o vê. Parei, pensei, falei. "A vida é um
espanto, Rai! Quando guri achava que era uma estrada reta, longa, com
algumas curvas. Tudo já era definido, que a vida nos levava. Que a vida
e alma fossem uma coisa só. Na maturidade descobri que não é. Que a
vida não é por pontos corridos, com turno e returno. Onde o erro, o equívoco
fosse consertado, redimido e tudo voltava para os trilhos. Percebi que a
vida é um mata-mata. Não há lugar para o erro, tudo é competitivo. Não é
para os fracos. Somos as nossas escolhas. A alma é o retrato de nossas
escolhas". Rai ficou em silêncio. Mudo. Olhava para o céu, bem centrado.
Parecia buscar uma palavra.
Então, continuei. "Ando angustiado. Será que as minhas escolhas foram
as melhores? Quem eu seria? Aonde estaria? Com quem viveria? Tento
imaginar outras vidas. Aí, noto que nada adianta. Não há o returno para
refazer as escolhas. Enxugo as lágrimas, dou um beijo no Pedro e toco a
vida. O olhar dele, as frases que fala e o abraço vale por tudo. As
minhas escolhas foram as melhores? Não sei! Mas, se... Como no futebol, a
vida não tem 'se'! A vida é! Já a falta de dinheiro é eterna. Isto eu
sei, Rai. Sempre foi assim".
A última palavra é interrompida pelo abraço dele. "Meu querido, Mauro!
A vida tem momentos que parece uma tempestade. Não se assuste com a
escuridão. A tempestade passa e o céu ressurge. Além disso, pelas tuas
escolhas, tu nunca atravessará sozinho. Alguém te dará a mão e
atravessarão juntos. Fique tranquilo!", disse-me. E, completou: "Vou
para casa mais sereno. A tua alma está intacta. Achei que estivesse
despedaçada, como os astros me avisaram. Fico feliz. Reencontre a alma e
aproveite as tuas escolhas. Viva bem com elas. Elas são belas
escolhas". Pegou suas coisas no banco. Ajeitou o boné, guardou
a garrafinha de água, firmou a bengala. "Hora de ir embora. Aproveite o
dia. Faça uma boa caminhada. Conversaremos quando o céu nos encontrar.
Tchau!".
Antes de partir, perguntei ao Rai. "Como faço para reencontrar
com a minha alma?" Rai deu a gargalhada que sempre acorda o Pablito,
seu velho papagaio. "O que te levou a torcer pelo Grêmio? Não foram os
títulos e nem os craques. Foi a camisa. As belas cores da linda túnica
tricolor. Azul, branco e negro, para você, são mais do que cores. É
vida! É alegria! É felicidade! Volte a ver o Grêmio assim. Sinta a dor e
a delícia de ser gremista. A tua alma está aí. Está na emoção, no
grito, na felicidade, no choro. A alma é aquilo que faz viver. Alma é
vitalidade, energia. Alma é o olhar do Pedro, do André, da Elaine, da
tua família, dos amigos. A alma é você. Ria com você. Viva!" Partiu,
lentamente, cantando "You'll never walk alone".
Mauro, meu amigo, que bela reflexão.
ResponderExcluirGrande abraço!