Mauro Pandolfi
Acordei
cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido,
um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava.
Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um
campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos
meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita
diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e
sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático.
Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a
minha resposta. Ele riu. Levantou e disse: 'Vem cá que vou explicar a
magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O
encantamento do jogo".
A
chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou
solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando
lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui,
neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu
bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O
marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo.
Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da
rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um
ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com
a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na
coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te
contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está
só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço
pequeno, miúdo e cria
ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o
retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns,
retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O
futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra
no outro".
Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva
emendou para o gol.
Vou
de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais
rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos.
Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela
direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era
simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que
Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e
ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi
um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é
sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do
futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o
ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou
para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo.
Perguntei o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar
no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa
de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible,
do povo.
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