sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A outra partida

 

Mauro Pandolfi

É difícil atravessar a cidade com um campo de botão. Entrar no ônibus, também, foi complicado. A sorte foi um cobrador gentil, atencioso e jogador de futebol de botão. Ele permitiu a nossa entrada e saída pela porta de trás. A aventura aconteceu num sábado de 1993. Eu e o Márcio fomos até a Fedato Sports, que ficava na Jerônimo Coelho, em busca de um campo que ele tinha visto, cobiçado, desejado e sonhado. Parecia um campo de futebol como o Serra Dourada. Listrado em tons de verde claro e escuro. Cercado por um metal que lembrava a geral. Aproveitamos e compramos duas traves novas. As redes eram do tipo 'véu de noiva'. Aqueles que balançam e aninham a bola como um ato de amor. Belo estádio!.
Dois ' piás' em um sonho. O gerente da loja veio nos atender. Ele também gostava de jogar botão. Trocamos dicas, regras, macetes. Havia três tamanhos de campo. O Márcio queria o maior. "Dá para fazer lançamentos e distribuir o time", explicou. Eu preferia o menor. Márcio protestou. "Não, não, não! Campo pequeno é para retranqueiro. Nem pensar.  Te conheço", disse. Ficamos com o médio. Foi muito engraçado andar no calçadão com aquele trambolho. Cada um segurando um lado. Ás vezes, um na frente do outro. Noutras, lado a lado. As pessoas olhavam e nós ríamos. Só de lembrar, fico com vergonha que naquele dia não tive.
Campo instalado. Lustrado. Em cima da mesa da sala. "Não vão arranhar a mesa, viu?", reclamou a dona Lídia. Não ligamos, não ouvimos, o pedido da mãe.  Um em cada lado. Times escolhidos. Os goleiros eram os que vinham com o jogo. A caixinha de fósforo com peso dificultava o gol. Os botões eram antigos. Comprei em 1971. Foi uma fase de jogo de botão na rua e no colégio. Sempre cuidei deles com carinho. O Márcio os mantém até hoje. Passei várias tardes da adolescência jogando. Bons tempos, hein?
Corinthians x Cruzeiro. O jogo escolhido. Como os dois queriam o Grêmio, ele foi tirado do sorteio. Eu peguei o Timão de Sócrates e Palhinha. Os botões tinham os retratos dos jogadores. O Cruzeiro de Dirceu Lopes e Nelinho foi a escolha do Márcio. Times armados, distribuídos em campo. Confirmamos as regras do jogo. Três toques a parir do meio-campo. Chute a gol só da intermediária. Quem tinha a posse de bola, em cada toque, podia mexer em dois jogadores. Três faltas, cartão amarelo; na quarta, expulsão. A regra era clara.
O Márcio é um hábil jogador de botão. Tem lances ensaiados que detonam qualquer adversário. Falta a favor dele é um perigo. O cruzamento é meio gol. Seus botões pareciam cabeceadores fenomenais. Ele gostava de jogar com bolas longas. Bem armado taticamente. Um craque!
Eu era mais pragmático. Gostava de armar uma boa defesa. Três defensores fechavam a grande área. Dois laterais e três meias preenchiam o meio-campo. Um atacante pelo centro. Outro, aberto, entre o lateral e o zagueiro. Futebol moderno. "Retranca!", berrava o Márcio. É uma questão de olhar.
O jogo flui. Márcio procura o gol. Tenta as bolas longas. Mas, elas geralmente paravam nos meus jogadores. Aí, eu tocava sem pressa. A bola no meu campo. Analisava o posicionamento. Só aí buscava o gol. O Márcio é sanguíneo, ficava irritado com a demora e a posse de bola. 'Vem pro jogo, porra! Saí da retranca!", explodia. Eu, feito um estrategista, um Rinus Michels, especulava o jogo. Ah, cada um narrava os seus lances. Também, comentava. Era um tal de retranqueiro ou de futebol moderno. Exatamente como é hoje.
O Márcio atacou. Confiou demais na sua habilidade. Deixou um espaço no lado esquerdo. Ele errou a jogada. A bola ficou comigo. Sócrates segurava o disco. Mexi em Vaguinho. Posicionei Palhinha. A jogada deu certo. Palhinha, cara a cara com Raul, tocou no canto. "Timão! Timão!", simulei o grito da torcida. 1 a 0 bem no final do primeiro tempo.
Furioso, Márcio amassou o meu time no segundo tempo. Armou uma estratégia que encaixotou o Corinthians. Não consegui sair. Não armei nenhum contra-ataque. Estava encurralado. Mas, o gol não saía. Eu era um bom goleiro. E, tinha uma 'leiteria' danada. Bola na trave, no zagueiro. A pressão foi intensa. Numa cobrança de falta. Nelinho acertou o ângulo. Não sei como aquela bola pegou altura. Fim de jogo. Empate. O sorriso do Márcio era de uma vitória que não veio por detalhes. Trocamos abraços depois da epopeia. A mãe chegou na sala aquela hora. "Pensei que vocês estavam brigando. Eram gritos, assobios, xingamentos", disse. Explicamos, abraçados, que era apenas um jogo de futebol de botão.
Não sei onde foi parar o campo. Os botões estão guardados numa caixa. André e Pedro chegaram a brincar quando pequenos. O Márcio deu um campo e eu, os times. O tempo passou. Veio o playstation e os botões ficaram presos na memória. Será que não é hora de libertá-los?

Um comentário:

  1. Bah... que saudades daquele tempo...
    Eu não tinha campo. Criava linhas nas tábuas do chão da sala. Eu tinha Grêmio e Inter em acrílico, botões maiores para os zagueiros, médios para os meias e pequenos para Renato e mais um. Quantas horas jogando sozinho ou com algum amigo que topasse trocar a grama do quintal pela sala de casa.
    Mais um jogo para relembramos dia desses, meu amigo!
    Grande abraço.

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