Mauro Pandolfi
Noel
Caminha percorreu todas as entranhas do futebol. Seus passos estão
marcados nos vestiários, gramados e burocracia. Foi um ícone no campo e
na estrutura do esporte. Trabalhou no mundo e navegou no submundo da
bola. Viu tudo. Craques, times espetaculares, subornos, títulos ganhos,
perdidos. Noel Caminha é um sinônimo de futebol. É, também, um hábil contador
de histórias. Prefere a do 'mundo', a divertida, a épica. Mas, há
momentos em que revela o 'submundo'. São raros. Começa e para. "Tenho
família!", justifica'. Na semana passada entrei no boteco do Ilgo em
busca de uma coca de dois litros e o vi. Rodeado de amigos contava historias.
Fiquei
encostado no balcão, ouvindo. Sempre espero que Noel conte alguma
falcatrua que viu, ouviu ou participou. Não era. Era do tempo de
treinador de base.
"Eu
tive dois grandes na minha mão. O Naldo era jogador de hoje.
Espetacular! Jogava na defesa, na armação e concluía com precisão. Um
craque. O outro foi o Celsinho. Muito habilidoso. Um domínio de bola, do
lance e uma visão periférica que nunca vi na vida. Trocaram
o Naldo pelo Walmor e o Alcebíades. Lembram disso? Pois, os bondes
foram para o time de cima. Eu fiquei sem o melhor jogador do meu time.
Perdemos o primeiro turno. E o segundo turno estava no fim. Um ponto
atrás e tinha o clássico. Não tive dúvida. Escalei o Celsinho.Tu é
louco, Noel? Vai colocar o guri numa fria? me diziam.."
E, não era? perguntou um dos ouvintes.
"O
futebol é assim, meu caro! Apareceu a chance, tem de aproveitar. O bom,
jogador surge em jogos leves. O craque na pedreira, na podre, na
dificuldade. O Celsinho tava pronto. Fomos para o jogo!"
Noel
faz uma pausa. Pede mais um bolinho e bebe o copo de cerveja. Faz um
suspense, um charme.. "Deixa de enrolar. Conta logo!", pedem os
ouvintes.
Cara
de brabo, Noel não gostou da pressão. Ele tem pouco mais de um metro e
meio. Mas, é tinhoso, atrevido, brabo e não tem medo de nada. "Calma,
porra! O meu time era muito bom. Defesa firme, agressiva, que chegava
junto. Do meio para frente, era um espetáculo. O melhor era o Celsinho. A
equipe do Silva era rápida, veloz e não fugia do pau. E, jogava pelo
empate. Quando vi que o juiz era o Cunha, entrei em desespero. Eu queria
o Mangueira. Ele era dos nossos. O Cunha, sobrinho de um sargento da
Marinha, era o xodó da federação, esperança e amigo do Silva. Pensei, tô
fodido!....
A
história é interrompida por um velho amigo de Noel. É Rui, antigo
centroavante dos times dele. Se abraçam, trocaram gentileza até que que
alguém reclama. "A história Noel, parou aí?" Noel dá um sorriso, um
sinal com as mãos de calma e pede uma cerveja para o Rui. "Silva não
conhecia o Celsinho. O guri começou barbarizando. Ocupava todo o campo,
confundindo a marcação e já tinha metido uma bola na trave. Silva
levantou do banco, chamou o Manuelzão, seu beque, e mandou baixar o
sarrafo no Celsinho. Ele apanhou um monte. No chão, com pontapé, até
admito. O Cunha só mandava seguir o jogo. Aí, o lateral dele apelou. Deu
um soco na boca do Celsinho. O Cunha marcou falta de dois lances.
Entrou médico, o jogou parou e chamei o Simão, meu centroavante, e
disse: tu vai deixar o teu amigo apanhar assim? Dá também, porra! Pode
deixar, chefe! falou ele. O jogo recomeçou. A bola foi para a área.
Simão disputou com o Manuelzão. A cotovelada foi bonita, certeira,
disparou sangue para todo o lado. Cercaram Simão e o Cunha já veio com o
cartão vermelho na mão. Porém, não ergueu..."
Noel
parou. Ele é assim. Vai contando em capítulos. Percebe a audiência, se
todos estão interessados na história, continua com detalhes ou
termina rapidamente se os ouvintes não dão muita bola. O bar estava todo ao seu redor. O Alemão, dono do
boteco, é quem pediu. "Poxa, Noel! Termina a história!". Noel passou os
dedos no bigodinho fino, estufou o peito e emendou: "...invadi o campo.
Fui para cima do Cunha. Dedo em riste, na ponta do pé, o cavalo do
Cunha tinha quase dois metros, fui falando: Tu é safado, ladrão, sem
vergonha, tá na gaveta, ordinário, filho da puta, vou te encher de
porrada! Dá arquibancada eu escutava: dá nele, seu Noel! Dá na cara que a
gente ajuda! Levei ele de área a área, xingando e disse tu não vai
expulsar o meu garoto, tá ouvindo? Se expulsar, eu te quebro! O Cunha
tava assustado, com medo da minha reação e da torcida. O Cunha me
empurrou e disse: vou dar amarelo para o jogo continuar. A próxima,
expulso. O jogo retomou, e ficou calmo. Ele tava de olho no Simão, louco
para expulsar. Então, chamei o Tonelada. Um galego de 1m88cm, mais de
115 kg. Um touro de forte. Gordo demais. Gente muito boa. Usava a camisa
15. Era a única que servia. Ele ficava espremido, ensacado, a barriga aparecia. Um bom atacante. Dei duas instruções. A
primeira foi para ele avisar o Cunha. Se tivesse uma expulsão, apanharia
lá fora. A segunda, vai com tudo".
A
história fluía bem. Noel garantia a audiência. Mais uma cerveja, ele
desatou a falar. "O jogo tava terminando. O Silva armou uma retranca
para segurar o empate, que dava o título. Mas, a bola gosta do carinho.
Caiu no pé do Celsinho na esquerda. Driblou o lateral e cruzou no meio
da área. Tonelada entrou com tudo. De cotovelo no zagueiro, empurrou o
goleiro com a mão e cabeceou para a rede. Os três se embolaram no chão.
Mesmo caído, olhou para o Cunha apontando o centro. Golaço! Na saída,
ele terminou o jogo. Aí, foi a vez do Silva complicar . Não gosto de
gente que não sabe perder!"
'E,
o seu time foi campeão, Noel?', perguntou alguém. Ele riu feliz. "Claro! Aquela equipe
ficou mais de cem jogos invicta. Ganhamos a final.." Eu interrompi: quem foi árbitro? Noel respondeu: "O Mangueira, é claro!"
Todos riram. E, já saindo do bar, perguntei: quanto custou o título?
Noel riu mais ainda. "Porra, Mauro, tem parar com esta mania de achar
que sempre subornei juiz. Ei, Alemão, uma rodada de cerveja para
todos!".
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