quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Tonelada

Mauro Pandolfi

Noel Caminha percorreu todas as entranhas do futebol. Seus passos estão marcados nos vestiários, gramados e burocracia.  Foi um ícone no campo e na estrutura do esporte. Trabalhou no mundo e navegou no submundo da bola. Viu tudo. Craques, times espetaculares, subornos, títulos ganhos, perdidos. Noel Caminha é um sinônimo de futebol. É, também, um hábil contador de histórias.  Prefere a do 'mundo', a divertida, a épica.  Mas, há momentos em que revela o 'submundo'. São raros. Começa e para.  "Tenho família!", justifica'.  Na semana passada entrei no boteco do Ilgo em busca de uma coca de dois litros e o vi. Rodeado de amigos contava historias. Fiquei encostado no balcão, ouvindo. Sempre espero que Noel conte alguma falcatrua que viu, ouviu ou participou. Não era. Era do tempo de treinador de base.
"Eu tive dois grandes na minha mão. O Naldo era jogador de hoje. Espetacular! Jogava na defesa, na armação e concluía com precisão. Um craque. O outro foi o Celsinho. Muito habilidoso. Um domínio de bola, do lance e uma visão periférica que nunca vi na vida. Trocaram o Naldo pelo Walmor e o Alcebíades. Lembram disso? Pois, os bondes foram para o time de cima. Eu fiquei sem  o melhor jogador do meu time. Perdemos o primeiro turno. E o segundo turno estava no fim. Um ponto atrás e tinha o clássico. Não tive dúvida. Escalei o Celsinho.Tu é louco, Noel? Vai colocar o guri numa fria? me diziam.."
E, não era? perguntou um dos ouvintes.
"O futebol é assim, meu caro! Apareceu a chance, tem de aproveitar. O bom, jogador surge em jogos leves. O craque na pedreira, na podre, na dificuldade. O Celsinho tava pronto. Fomos para o jogo!"
Noel faz uma pausa. Pede mais um bolinho e bebe o copo de cerveja. Faz um suspense, um charme.. "Deixa de enrolar. Conta logo!", pedem os ouvintes.
Cara de brabo, Noel não gostou da pressão. Ele tem pouco mais de um metro e meio. Mas, é tinhoso, atrevido, brabo e não tem medo de nada. "Calma, porra!  O meu time era muito bom. Defesa firme, agressiva, que chegava junto. Do meio para frente, era um espetáculo. O melhor era o Celsinho. A equipe do Silva era rápida, veloz e não fugia do pau. E, jogava pelo empate. Quando vi que o juiz era o Cunha, entrei em desespero. Eu queria o Mangueira. Ele era dos nossos. O Cunha, sobrinho de um sargento da Marinha, era o xodó da federação, esperança e amigo do Silva. Pensei, tô fodido!....
A história é interrompida por um velho amigo de Noel. É Rui, antigo centroavante dos times dele. Se abraçam, trocaram gentileza até que que alguém reclama. "A história Noel, parou aí?" Noel dá um sorriso, um sinal com as mãos de calma e pede uma cerveja para o Rui. "Silva não conhecia o Celsinho. O guri começou barbarizando. Ocupava todo o campo, confundindo a marcação e já tinha metido uma bola na trave. Silva levantou do banco, chamou o Manuelzão, seu beque, e mandou baixar o sarrafo no Celsinho. Ele apanhou um monte. No chão, com pontapé, até admito. O Cunha só mandava seguir o jogo. Aí, o lateral dele apelou. Deu um soco na boca do Celsinho. O Cunha marcou falta de dois lances. Entrou médico, o jogou parou e chamei o Simão, meu centroavante, e disse: tu vai deixar o teu amigo apanhar assim? Dá também, porra! Pode deixar, chefe! falou ele. O jogo recomeçou. A bola foi para a área. Simão disputou com o Manuelzão. A cotovelada foi bonita, certeira, disparou sangue para todo o lado. Cercaram Simão e o Cunha já veio com o cartão vermelho na mão. Porém, não ergueu..."
Noel parou. Ele é assim. Vai contando em capítulos. Percebe a audiência, se todos estão interessados na história, continua com detalhes ou termina rapidamente se os ouvintes não dão muita bola. O bar estava todo ao seu redor. O Alemão, dono do boteco, é quem pediu. "Poxa, Noel! Termina a história!". Noel passou os dedos no bigodinho fino, estufou o peito e emendou: "...invadi o campo. Fui para cima do Cunha. Dedo em riste, na ponta do pé, o cavalo do Cunha tinha quase dois metros, fui falando: Tu é safado, ladrão, sem vergonha, tá na gaveta, ordinário, filho da puta, vou te encher de porrada! Dá arquibancada eu escutava: dá nele, seu Noel! Dá na cara que a gente ajuda! Levei ele de área a área, xingando e disse tu não vai expulsar o meu garoto, tá ouvindo? Se expulsar, eu te quebro! O Cunha tava assustado, com medo da minha reação e da torcida. O Cunha me empurrou e disse: vou dar amarelo para o jogo continuar. A próxima, expulso. O jogo retomou, e ficou calmo. Ele tava de olho no Simão, louco para expulsar. Então, chamei o Tonelada. Um galego de 1m88cm, mais de 115 kg. Um touro de forte. Gordo demais. Gente muito boa. Usava a camisa 15. Era a única que servia. Ele ficava espremido, ensacado, a barriga aparecia. Um bom atacante. Dei duas instruções. A primeira foi para ele avisar o Cunha. Se tivesse uma expulsão, apanharia lá fora. A segunda, vai com tudo".
A história fluía bem. Noel garantia a audiência. Mais uma cerveja, ele desatou a falar. "O jogo tava terminando. O Silva armou uma retranca para segurar o empate, que dava o título. Mas, a bola gosta do carinho. Caiu no pé do Celsinho na esquerda. Driblou o lateral e cruzou no meio da área. Tonelada entrou com tudo. De cotovelo no zagueiro, empurrou o goleiro com a mão e cabeceou para a rede. Os três se embolaram no chão. Mesmo caído, olhou para o Cunha apontando o centro. Golaço! Na saída, ele terminou o jogo. Aí, foi a vez do Silva complicar . Não gosto de gente que não sabe perder!"
'E, o seu time foi campeão, Noel?', perguntou alguém. Ele riu  feliz. "Claro! Aquela equipe ficou mais de cem jogos invicta. Ganhamos a final.." Eu interrompi: quem foi árbitro?  Noel respondeu: "O Mangueira, é claro!" Todos riram. E, já saindo do bar, perguntei: quanto custou o título? Noel riu mais ainda. "Porra, Mauro, tem parar com esta mania de achar que sempre subornei juiz. Ei, Alemão, uma rodada de cerveja para todos!".

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