segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Os duelistas

Mauro Pandolfi
- Julião, presta atenção! Esquece o jogo. Cuida só do Marcelo. Cola nele. Não deixa jogar, não larga ele.  Marca forte. Porrada só no meio do campo. Perto da área, só cerca. O cara é foda, porra! A cobrança de falta é mortal. Vai Julião, bom jogo!
Foi a instrução de Galo Cego, o veterano técnico do Estrela, para o seu jovem zagueiro. Ele sabia o perigo que Marcelo representava. Centroavante habilidoso, de movimentação e de um chute preciso. A semana toda foi a preparação de Julião. Galo Cego utilizou o júnior Tunico para fazer o papel de Marcelo. A marcação de Julião foi tão vigorosa que o garoto foi parar no departamento médico. "Aquele teórico de merda vai entender que futebol se aprende no campo, na dureza do jogo, na fúria da torcida. Técnico de faculdade, porra! Acha que vou perder para canudo. Vou dar um nó tático nele" , resmungou para o seu antigo supervisor, Noel Caminha.
- Te cuida, Marcelo! O Julião é bandido, carniceiro. Arrasta ele para perto da área. Aí, velho, cave falta, provoque o cara, tira ele do sério. Usa os cotovelos. Catimba, porra! O título passa por você!
Amador Xavier é um ardiloso treinador. É a primeira oportunidade num time de ponta, o Aurora. Treinou um sistema que deixa fora das ações ofensivas o seu principal atacante. "O Marcelo vai tirar o Julião da área e abrir a defesa. O Galo Cego, quando perceber, já estará fodido", confidenciou ao seu auxiliar, Juninho Peixoto. "Aquele velho é uma anta", completou rindo com o assistente.
Os times estão lado a lado, esperando os hinos. Os gritos dos torcedores são abafados pelo som desafinado da banda do colégio militar. Os jogadores cumprimentam-se. Marcelo tenta um sorriso para Julião. O zagueiro o encara e resmunga algo. O árbitro chama os capitães e sorteia a saída.
Começa o jogo. Na primeira bola lançada ao ataque, Julião levanta o atacante.  Uma entrada violenta. O lance foi próximo da torcida do Estrela. Parecia gol.´"Julião, Julião", berravam os estrelistas. Já em pé, Marcelo riu debochado. "Não sou a bola, ô babaca! Tu sabe o que é uma bola, grosso?". Irritado, Julião ameaçou. "Vem de novo que te arrebento, bambi!". Salmo Toscano não teve dúvida. Amarelo para os dois. "Vocês não vão foder o meu jogo", gritou ele. "Boa, Julião", incentivou Galo Cego. "Porra, Marcelo, não cai na catimba!", pediu Amador.
.E foi assim o jogo inteiro. Olhares ríspidos, nariz com nariz, cotoveladas, arranhões, discussões. Toscano tolerou tudo. Não podia desfalcar nenhum dos dois para o outro jogo da final. Esta foi a  garantia dele ao presidente da federação, Merlin Fonseca. 0 a 0. Tudo para o último jogo. Na saída do túnel, Marcelo provocou Julião. "Domingo vou fazer um gol te dando um chapéu, bundão". Foi difícil segurar Julio. "Tenta que te quebro a perna, pipoqueiro". A polícia acalmou os ânimos.
Dez da noite. Marcelo sai para jantar. Estava sozinho. Era o único solteiro do grupo. Escolheu a pizzaria Das Massas, o novo point dos brotinhos. O lugar estava cheio. Numa mesa tinha um ocupante. Ele reconheceu Julião. O zagueiro o chamou. "O que é do jogo fica no jogo, aqui fora é outra coisa", disse. Marcelo agradeceu. Conversaram, riram, contaram histórias. Notaram que tinham a mesma origem, o mesmo sonho.  Escolheram a mesma pizza: marguerita. Riram com a coincidência. O gosto musical era o mesmo. Marcelo convidou Julião para irem ao show da dupla Carlos Bilardo e Juliano. Julião topou. Curtiram a noite, riram, comemoraram e foram embora. Dois ótimos amigos.
Durante a semana da final encontraram-se duas vezes. Num debate na rádio DCO. Os radialistas ficaram surpresos com a troca de gentileza dos dois jogadores. A outra, por acaso. Uma festa de aniversário de Delmar Lento, um empresário de atletas. Descobriram que eram agenciados pelo mesmo procurador. Contaram histórias, riram muito, divertiram. Eram, definitivamente, amigos.
Domingo. A final. Estádio lotado. As mesmas instruções. Marcação, porrada, catimba, o blábláblá de sempre. Julião apertou a mão  de Marcelo após o hino. No primeiro lance de ataque,  ele evitou a falta em Marcelo. "Porra. Porra, Julião!", berrou Galo Cego. Marcelo escapou pela esquerda e perdeu uma bola boba para o zagueiro. "Qual é Marcelo? Tá afinando?", questionou Amador. Nada lembrava o outro jogo. Esquerdinha e Rubinho trocaram socos. A briga generalizou. Todos partiram prá porrada. Nem todos. Julião e Marcelo ficaram escorados na trave conversando. Toscano escolheu dois de cada lado. "Rua! Ninguém avacalha jogo meu!" 
No intervalo, Julião e Marcelo foram substituídos. "Preciso de um zagueiro mais rápido", explicou Galo Seco. "Só a vitória interessa. Quero um centroavante dentro área", justificou Amador. Julião não gostou de ser sacado. Pegou suas coisa e foi embora. A surpresa foi encontrar Marcelo lá fora. Indignado, o atacante disse que o "ciclo no Aurora estava terminado".
Marcelo ofereceu carona para Julião. O carro do zagueiro estava no centro de treinamento do Estrela. Pararam num barzinho de estrada. Pediram para o dono desligar a televisão que mostrava a prorrogação. No lugar da bola, uma música suave. Eles conversaram muito, cada um contou a sua história, seus desejos. Julião tirou na bolsa a velha camiseta do Estrela e deu para Marcelo. 'É meu amuleto da sorte". O centroavante retribuiu com o troféu Bola de Zinco. "Sei que é o teu sonho como jogador. Vi num site sobre celebridades. Aceite!"  Comemoraram a amizade com champanhe e abraços
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Juntos há quase um ano. Estão próximos de realizar o desejo de todo jogador. A  Europa os espera. "Ju, tu vai ficar um tesão com a camisa rosa do Palermo", disse Marcelo. "E, você? Todo de amarelo do Villareal. Será o quindim do meu coração!", comentou Julião. A risada ecoou na primeira classe. Notaram que estavam sozinhos. Abraçaram-se, beijaram-se apaixonadamente.

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