sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Os meninos do Brasileirão

 Mauro Pandolfi

Dois lances. Bola no meio. O passe para o lado esquerdo do ataque é certeiro. Corre em linha reta. Rápido. Ergue o braço, pede a bola. Recebe. Um só toque. Gol! Um lance planejado, armado numa prancheta. Aula de modernidade. A bola no lado direito. Corre para área. Recebe quase no fundo. Domina. Chama o goleiro. Um drible, uma dança. Um bolero. Dois para lá. Dois para cá. O chute seco de pé esquerdo envolve a bola na rede. Um gol que 'revisita um passado glorioso'. Dois lances de Gabriel Jesus. Um craque que desponta aos 18 anos. Há outros meninos soltos por aí. Tão mágicos como ele. O futebol brasileiro nunca morre. Se renova, reinventa-se no desespero. E, o treinador da seleção convoca Robinho.
O futebol é um jogo para meninos. Hábeis e abusados. Dos que tem certeza de tudo. Dos que não duvidam do talento. Dos imodestos. Nunca dos soberbos. Garotos que não sacrificam o drible. Guris que tem a métrica do passe. Moleques que sabem o valor da bola e do prato de comida. Meninos com consciência de homens. A maturidade é desenvolvida pelo tempo, pelo vento e pela beleza do jogo. Garotos que são só garotos. Que sempre jogarão como meninos.
Há uma plêiade de meninos no campeonato brasileiro. Leiam o guia da Placar, prestem atenção nas escalações. Há candidatos a craques em todas posições. Todos com menos de 22 anos. Em cada clube há, no mínimo, um jogador de qualidade nesta idade. Alguns, são titulares. Em outras, é só uma questão de tempo, de técnico ou de um empresário.
O rápido Allison é uma muralha no gol do Inter.  Valdívia e Dourado, também, são ótimos. Marlon é o chefe da segurança do Fluminense. Jemerson, do Galo, é um bom parceiro. Pena que o Fluminense trocou a jovialidade, inteligência de Gérson pela malemolência preguiçosa de Ronaldinho. Jorge do Flamengo já pode ser chamado de 'Seu..Jorge'. No Santos, o leitor escolhe. Há Geuvânio, Gabigol (mortal!), Alison, Leandrinho. Lucas Lima fica fora da lista, pois tem 24 anos.
Driblador e artilheiro. Clayton trouxe a medalha de prata do Pan. É especulado em vários times. É o craque do Figueira. Mas, prestem atenção em Iago. Tem a sabedoria e a qualidade dos armadores. Sempre arruma o time quando entra. A titularidade esbarra nos medalhões decadentes, como Carlos Alberto, Rafael Bastos, João Vítor e até num clone medíocre do Ronaldinho: Celsinho. Bruno Alves já é o melhor beque do time. Seguro, calmo, técnico e preciso. Zagueiraço!
O que mais me encanta é Luan. O genial armador do Grêmio. Joga de cabeça erguida. Não precisa olhar a bola. Sabe que ela está lá, obediente. Dribla em linha reta. O passe é preciso. A movimentação é coordenada com a estruturação tática do time. E, arrisca! Não tem medo do erro. Repete, tenta. Bate falta como os velhos mestres. O Grêmio ainda tem Walace. Parece um volante europeu. Um Pogba. Elegante, marcador duro, saída rápida. Um dono do meio-campo. O tricolor ainda esconde Lincoln (tem a qualidade de Lucas Lima, no mínimo!) e Balbino - um espigado volante canhoto, hábil cobrador de faltas. Estes dois, só o ano que vem mostrarão o talento.
Uma lista de jovens espalhados pelo brasileirão da série A. Atenção aos nomes: Anderson Lopes, Rômulo, Renan, Marcos Guilherme, Douglas Coutinho, Eric, Carlos, Dodô, Pedro Rocha, Junior, Hyoran, Vinicius Araújo, Mike, Renê, Diego  Macedo, Luan (zagueiro do Vasco). Muitos deles nunca serão titulares. Alguns disputarão vaga à Olimpíada. Poucos serão testados na seleção. Muitos, quase todos, serão negociados com clubes do exterior. Só saberemos a sua qualidade pela televisão, assistindo os campeonatos europeus. Serão os novos Douglas Costas e Roberto Firminos. Aí, os idiotas de microfones e tablets duvidarão do seu talento. Afinal, não jogaram nos seus times, nos estados, perto dos seus olhos embotados de preconceitos e conceitos superados. Eles são 'os tambores' da verdade.

domingo, 23 de agosto de 2015

O Brasil reencontra o tesão


Chiko Kuneski

Os otimistas acreditam que as grandes transformações vêm da crise. No futebol já tivemos inúmeros exemplos que esse credo é verdadeiro. Talvez sejamos mesmo um povo otimista que leva a máxima “ao pé da letra”. O brasileiro está reencontrando o desejo, a vontade de participar. De ser ativo.

O futebol nacional, apenas com os jogadores que atuam em nossas arenas (para ser contemporâneo), voltou a ter bons jogos, com mais dribles, toques, passes, assistências (termo também contemporâneo) e vibração. A volta do bom futebol nos faz voltar a gostar do futebol.

Torcedores indo aos estádios. Êxtases coletivos dos cidadãos comuns, sem a insanidade das torcidas organizadas, recuperando o prazer de ver futebol. De torcer. Reencontramos o tesão numa  relação que era apenas de amor, às vezes platônico.

Como no futebol, o brasileiro recriou seu desejo pela política. Esse, mais impelido por um divórcio inevitável de um casamento desgastado e construído em enganos, logros e mentiras, que faz procurar o novo desejo, a busca do algo mais, do novo tesão. O êxtase da negação do cômodo, da mesmice, para a busca de uma realização maior.

Como nas arenas, os brasileiros vão às ruas por desejo, espontaneamente. Querem voltar a ser vencedores e não eternos perdedores enganados por discursos de dirigentes corruptos e de falsos técnicos. Voltam a acreditar que as mudanças são possíveis e inevitáveis.


Os brasileiros estão reencontrando o tesão por suas eternas paixões.

sábado, 22 de agosto de 2015

Conversas com Rai

Mauro Pandolfi
Manhã. Quase madrugada. Saio para caminhar. O sol tenta escapar das nuvens. Toca o celular.  O nome na tela é de Rai Carlos, o vidente cego, meu grande amigo. "Este suor é a glória de tua, manhã, hein Mauro? E o olhar feliz, leve e esperançoso. É o Grêmio?" O riso escapa pelo fone de ouvido. Procuro um banco e continuo a conversa. "O futebol ainda me provoca alegria, prazer. Ainda mais quando o motivo é gerado pelo Grêmio. Será que vamos para o título?", comento A gargalhada explode no meu ouvido. "Tu és um sonhador! Nunca perde a ilusão, a esperança. Que bom que tu és assim, Mauro. Mas..." A ligação caiu. Volto a música e a caminhada. Sonhador, ilusão, esperança? Rai contesta a minha versão de cético saudável. Fazer o que!
O que seria o 'mas' do Rai? A dúvida varou o dia. Comentei no almoço, no trabalho, a conversa. Vários palpites, insinuações e, até, desejo do que é o 'mas...' No silêncio do quarto perco-me nas divagações e nas possibilidades. A mais provável é de 'não chegou a hora da festa'. Pode ser! Há times mais fortes, com treinadores com mais tempo que o do Grêmio. Equipes bem definidas, organizadas, com jogadores de seleção. O Grêmio é um time de três meses, não mais que isto. É articulado, arrojado, com uma estética moderna de jogo. Não é candidato ao título. Ficar entre os quatro é uma boa colocação. Ou, não?
Sonhar é uma forma poética de ver, viver a vida. Rai Carlos é um otimista. Ligo para ele para tirar a dúvida. Primeiro ele filosofa. "A vida é para quem acredita no impossível, no imponderável, naquilo que nunca vai acontecer. Tudo é possível. A vida é aleatória. A cegueira não tirou a minha visão. Fez eu enxergar o que poucos olham. Olho para o céu e vejo o movimento das estrelas. Não sei explicar o que ocorre. No movimento dos astros interpreto a vida. Não sou adivinho. Sou um vidente. Interpreto que vejo. Só o que vejo". Fala e completa com a gostosa gargalhada. "Sou um fraude? Depende de quem me entende e escuta. Sou verdadeiro. Mas, aqui a verdade é próxima da fraude".
E, o Grêmio? Vamos finalmente ganhar um título. "O movimento astral e arbitral favorece o Corinthians. Há uma queda de qualidade de jogo em outubro. Se somar pontos suficiente até lá, ninguém tira o título. Os mineiros estão em baixo astral. O Atlético não tem chance e o Cruzeiro corre sério risco de rebaixamento", explica. O buraco astral do Corinthians será aproveitado por quem?, pergunto. "Se até a data do aniversário, o Grêmio for o líder ou o segundo colocado será campeão. Aliás, ganhará, também, a Copa do Brasil. Se for o terceiro ou quarto até 03 de setembro, ficará fora da Libertadores. O Palmeiras, Sport e Atlético Paranaense aproveitarão os erros do Corinthians e do Grêmio. O Fluminense fez um pacto com o diabo, os tempos são de Deus, não chegará a lugar nenhum. A tendência é o desabamento". Ele alerta. "É um indício. O futebol também é aleatório e todos podem modificar o seu futuro. Ele está escrito. Porém, não é definitivo".
Não resisto a curiosidade e pergunto sobre o Brasil. "O Brasil está louco. Estamos todos doidos. Esquizofrênicos e paranoicos. Estamos presos em conceitos, berramos por eles, xingamos por eles. No entanto, não os vivemos. Não somos o que imaginamos ou pensamos. Somos outros. Os políticos brasileiros e todos, como gostam de falar, os atores sociais são bipolares. Não distinguem mais conceito e interesse pessoal.  Há uma tentativa de conchavão. Porém, todos sabotam o acordo. Desde governo até a oposição. A conjugação astral, o inferno de Cunha e a inércia da alquimia tucana favorece Dilma. Mas..." A ligação caiu. É tarde! Vou esperar os fatos.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A goleada

Mauro Pandolfi

O apito é um alívio. Os braços estendidos do árbitro é o sinal do fim. O massacre terminou. Os perdedores, de cabeça baixa, olham o céu, procuram um sentido na goleada. O resultado é mais que um desastre. É aviltante, desesperador. A humilhação marcada na história, na carreira. Perplexos, alguns erram o caminho da saída. Escondem os rostos com as mãos, as camisas. Confundem-se. Ignoram os outros. Fogem dos jornalistas. Os gritos de revolta dos torcedores serão eternos. A goleada é um tsunami. Terra arrasada. Moralmente devastadora. Os jogadores são um pouco mais que coisa alguma. Para os torcedores, são usurpadores da paixão. Traidores das cores. São zumbis que perambularam até a vingança. Nem o título absolve a goleada.
O apito é de carnaval. Os braços estendidos do árbitro lembra um mestre de bateria. A festa nunca terá fim. Os vencedores, de olhar altivo, miram o céu, procuram as estrelas que se tornaram. O resultado é um delírio. É alegria, entusiasmo. A vitória celebrada marcará a carreira. Demoram a sair do campo. Tudo é êxtase. Divino e maravilhoso. Abraçam-se todos. Procuram os holofotes. Cantam os cantos da torcida. Confundem-se com eles. Serão mitos de uma eternidade perene. A goleada é um baile de gala. Nação em festa. A moral elevada. Os craques são quase tudo. Para os torcedores, heróis de uma epopeia. Deuses das cores.  Guerreiros que forjaram a vingança. A goleada é maior que o título que nunca vem.
Nem o jogo épico, da vitória arrancada no último instante, é maior que a goleada no rival. Não aquela diferença banal de três ou quatro gols. Mas, a eterna, que dura um século a vingança. Nada é maior. A goleada redime. No teatro de grama e paixão é a grande arte. O encontro do impossível e do inacreditável. Da dor sublime com a euforia carnavalesca. Da glória com a desgraça. Do fantástico com o fracasso retumbante. De Shakespeare com Nelson Rodrigues. O futebol é o maior espetáculo da Terra. Não é um jogo. É a vida bem vivida por lunáticos, poetas, visionários e os amantes do nada. Afinal, o futebol é pouco mais que nada.

sábado, 8 de agosto de 2015

Nos ombros dionisíacos

Chiko Kuneski

Hoje é dia dos pais. Mas o que isso tem com o futebol? Provavelmente, pela profissão, muitos pais jogadores estarão longe dos filhos. Mas a lembrança do dia dos pais lacrimejou. Não foi meu pai que incentivou minha paixão pelo futebol. Talvez tenha sido seu maior gesto, de pura felicidade, o motivador.

Não foi uma camisa para induzir-me a gostar do que gostava. Acho mesmo que meu pai apenas assistia futebol para me assistir. Era minha alegria. Meu entusiasmo. Meus gritos de gol que o levavam a torcer comigo. Dizia torcer para meu time, mas nunca tive certeza disso. Torcia pela minha alegria de torcer.

Demorou para entender que meu pai torcia por mim. Pela mesma felicidade de uma criança de sete anos vibrando com o Brasil campeão. Era a Copa do Mundo do México de 1970. O maior jogo de futebol que trago comigo, mesmo tendo que revê-lo a cada Copa para ter a certeza que a memória da criança não foi induzida pela observação crítica do adulto, ainda uma criança vibrante com o futebol.

A imagem do tubo era pura magia. Em preto e branco. Era o sonho. Era a euforia pueril. Na proteção do colo de meu pai levantava a cada drible desconcertante, a cada magia do passe, que só entendi bem mais tarde, a cada grito de gol. Era minha euforia encontrando a dele. Talvez a dele, mais por mim.

Uma vibração simbiótica. Depois da vitória incontestável de 4 X 1 sobre Itália. Do Tricampenato. O primeiro e último mundial nos braços de meu pai, veio o maior triunfo. Do colo protetor para os ombros vencedores. E assim, menino, sentando em seus ombros, dei a maior volta olímpica da vida. O único a olhar a alegria de toda a rua como um campeão

Aquele gol!

Mauro Pandolfi
 

Vi aquele gol outra vez. Não tenho dúvida. Aquele gol é meu!  Eu driblei Jacobs e chutei no canto. Saí correndo de braços abertos. Todos atrás para me abraçar. Vi a festa que provoquei no mundo tricolor. A Terra era definitivamente azul. Branco e negro completam o cenário colorido gremista. Eu fiz aquele gol! Não entendo por que dizem que foi o Renato. Estão doidos, todos? Falam nos vídeos, nas narrações, nos textos. É tudo imaginação.  Está noite sonhei outra vez com o gol. Quem dribla, corta para o meio, executa? Quem? Eu! Aquele gol é meu!
Entre o imaginário e o real  há uma fronteira frágil. Tênue, pequena, imperceptível. O pensamento, ainda, é o divisor. Somos o que somos. Não o que gostaríamos de ser. Nossos conceitos são mais reais no imaginário. No real, adaptamos conforme a rudeza da vida. Antes de morrer, Jean Baudrillard afirmou que 'a fronteira não existirá mais. Tudo será uma coisa só'. O filme Matrix mostra uma sociedade assim. Acho que já vivemos numa Matrix. Poxa! O meu gol então é mais real do que nunca!
O sonho é um devaneio do imaginário. Um descuido do real. Os apaixonados entendem melhor o sonho do que os outros. O apaixonado do futebol tem as cores do seu time tatuada na alma. É mais que um signo, sinal. É identidade. Repetir a escalação do time é decifrá-lo como poesia. Corbo; Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Vitor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder não é a melhor poesia e nem o melhor time que vi. É a que me emociona, me encanta, me deixa feliz, me entusiasma. A que me libertou da dor e da derrota. A que me ensinou vencer e amar a vitória. O mundo imaginário do futebol é um sonho. Libertário no conceito e na ação. O futebol ainda é uma esperança de um real melhor.
Imaginário e real é um duelo na vida. Na campanha eleitoral, trocam de lugar. Não como poesia. Como farsa. O mundo idealizado, transformador, igualitário não é obra de um poeta ou visionário. É só um conto! Geralmente, do vigário. A mistificação do imaginário é uma trapaça tão bem elaborada que o real é destroçado, esmigalhado, retalhado para não revelar o engodo. Após a vitória, o imaginário se revela. Às vezes, cínico. Outras, cruel. No futebol, o imaginário é um sonho. Na política, um pesadelo.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Os duelistas

Mauro Pandolfi
- Julião, presta atenção! Esquece o jogo. Cuida só do Marcelo. Cola nele. Não deixa jogar, não larga ele.  Marca forte. Porrada só no meio do campo. Perto da área, só cerca. O cara é foda, porra! A cobrança de falta é mortal. Vai Julião, bom jogo!
Foi a instrução de Galo Cego, o veterano técnico do Estrela, para o seu jovem zagueiro. Ele sabia o perigo que Marcelo representava. Centroavante habilidoso, de movimentação e de um chute preciso. A semana toda foi a preparação de Julião. Galo Cego utilizou o júnior Tunico para fazer o papel de Marcelo. A marcação de Julião foi tão vigorosa que o garoto foi parar no departamento médico. "Aquele teórico de merda vai entender que futebol se aprende no campo, na dureza do jogo, na fúria da torcida. Técnico de faculdade, porra! Acha que vou perder para canudo. Vou dar um nó tático nele" , resmungou para o seu antigo supervisor, Noel Caminha.
- Te cuida, Marcelo! O Julião é bandido, carniceiro. Arrasta ele para perto da área. Aí, velho, cave falta, provoque o cara, tira ele do sério. Usa os cotovelos. Catimba, porra! O título passa por você!
Amador Xavier é um ardiloso treinador. É a primeira oportunidade num time de ponta, o Aurora. Treinou um sistema que deixa fora das ações ofensivas o seu principal atacante. "O Marcelo vai tirar o Julião da área e abrir a defesa. O Galo Cego, quando perceber, já estará fodido", confidenciou ao seu auxiliar, Juninho Peixoto. "Aquele velho é uma anta", completou rindo com o assistente.
Os times estão lado a lado, esperando os hinos. Os gritos dos torcedores são abafados pelo som desafinado da banda do colégio militar. Os jogadores cumprimentam-se. Marcelo tenta um sorriso para Julião. O zagueiro o encara e resmunga algo. O árbitro chama os capitães e sorteia a saída.
Começa o jogo. Na primeira bola lançada ao ataque, Julião levanta o atacante.  Uma entrada violenta. O lance foi próximo da torcida do Estrela. Parecia gol.´"Julião, Julião", berravam os estrelistas. Já em pé, Marcelo riu debochado. "Não sou a bola, ô babaca! Tu sabe o que é uma bola, grosso?". Irritado, Julião ameaçou. "Vem de novo que te arrebento, bambi!". Salmo Toscano não teve dúvida. Amarelo para os dois. "Vocês não vão foder o meu jogo", gritou ele. "Boa, Julião", incentivou Galo Cego. "Porra, Marcelo, não cai na catimba!", pediu Amador.
.E foi assim o jogo inteiro. Olhares ríspidos, nariz com nariz, cotoveladas, arranhões, discussões. Toscano tolerou tudo. Não podia desfalcar nenhum dos dois para o outro jogo da final. Esta foi a  garantia dele ao presidente da federação, Merlin Fonseca. 0 a 0. Tudo para o último jogo. Na saída do túnel, Marcelo provocou Julião. "Domingo vou fazer um gol te dando um chapéu, bundão". Foi difícil segurar Julio. "Tenta que te quebro a perna, pipoqueiro". A polícia acalmou os ânimos.
Dez da noite. Marcelo sai para jantar. Estava sozinho. Era o único solteiro do grupo. Escolheu a pizzaria Das Massas, o novo point dos brotinhos. O lugar estava cheio. Numa mesa tinha um ocupante. Ele reconheceu Julião. O zagueiro o chamou. "O que é do jogo fica no jogo, aqui fora é outra coisa", disse. Marcelo agradeceu. Conversaram, riram, contaram histórias. Notaram que tinham a mesma origem, o mesmo sonho.  Escolheram a mesma pizza: marguerita. Riram com a coincidência. O gosto musical era o mesmo. Marcelo convidou Julião para irem ao show da dupla Carlos Bilardo e Juliano. Julião topou. Curtiram a noite, riram, comemoraram e foram embora. Dois ótimos amigos.
Durante a semana da final encontraram-se duas vezes. Num debate na rádio DCO. Os radialistas ficaram surpresos com a troca de gentileza dos dois jogadores. A outra, por acaso. Uma festa de aniversário de Delmar Lento, um empresário de atletas. Descobriram que eram agenciados pelo mesmo procurador. Contaram histórias, riram muito, divertiram. Eram, definitivamente, amigos.
Domingo. A final. Estádio lotado. As mesmas instruções. Marcação, porrada, catimba, o blábláblá de sempre. Julião apertou a mão  de Marcelo após o hino. No primeiro lance de ataque,  ele evitou a falta em Marcelo. "Porra. Porra, Julião!", berrou Galo Cego. Marcelo escapou pela esquerda e perdeu uma bola boba para o zagueiro. "Qual é Marcelo? Tá afinando?", questionou Amador. Nada lembrava o outro jogo. Esquerdinha e Rubinho trocaram socos. A briga generalizou. Todos partiram prá porrada. Nem todos. Julião e Marcelo ficaram escorados na trave conversando. Toscano escolheu dois de cada lado. "Rua! Ninguém avacalha jogo meu!" 
No intervalo, Julião e Marcelo foram substituídos. "Preciso de um zagueiro mais rápido", explicou Galo Seco. "Só a vitória interessa. Quero um centroavante dentro área", justificou Amador. Julião não gostou de ser sacado. Pegou suas coisa e foi embora. A surpresa foi encontrar Marcelo lá fora. Indignado, o atacante disse que o "ciclo no Aurora estava terminado".
Marcelo ofereceu carona para Julião. O carro do zagueiro estava no centro de treinamento do Estrela. Pararam num barzinho de estrada. Pediram para o dono desligar a televisão que mostrava a prorrogação. No lugar da bola, uma música suave. Eles conversaram muito, cada um contou a sua história, seus desejos. Julião tirou na bolsa a velha camiseta do Estrela e deu para Marcelo. 'É meu amuleto da sorte". O centroavante retribuiu com o troféu Bola de Zinco. "Sei que é o teu sonho como jogador. Vi num site sobre celebridades. Aceite!"  Comemoraram a amizade com champanhe e abraços
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Juntos há quase um ano. Estão próximos de realizar o desejo de todo jogador. A  Europa os espera. "Ju, tu vai ficar um tesão com a camisa rosa do Palermo", disse Marcelo. "E, você? Todo de amarelo do Villareal. Será o quindim do meu coração!", comentou Julião. A risada ecoou na primeira classe. Notaram que estavam sozinhos. Abraçaram-se, beijaram-se apaixonadamente.

domingo, 2 de agosto de 2015

O pesadelo

Chiko Kuneski

A vida sempre lhe foi um sonho. De ser jogador. Famoso. Nos campos improvisados da rua se impunha. Era de porte. Tinha porte. Rápido, muito mais do que sua adolescência explicava, jogava como titular no time da cidade. Mas a cidade era pequena demais para seu sonho. O time também.

Sonhava em ser internacional. Não local. E a cada bola disputada via o futuro que a juventude vislumbra. O sucesso. Jovem demais para entender que o sonho nem sempre vira sucesso. E o sucesso nem sempre é o sonhado.

Até que a realização do sonho chegou. Chegou-lhe ainda moço, juvenil. Jogar num grande time do Brasil. Todos os chutes para impedir o gol. Todas as marcações para impedir o gol. Todo treino para ser o que se destacasse em impedir o gol, a bola na rede, o grito eufórico da torcida valeram a pena.

O sonho se materializava. Era o passo para ser um jogador internacional. E o acordar do sonho seria fora da cidade, fora do estado, fora do país. Acordaria seu sonho sonhando.

Na estréia o nervosismo da realidade tremeu-lhe as pernas. A vida real é bem mais cruel do que imaginamos. Era apenas um amistoso. Para os demais em campo apenas mais um jogo. Para ele o sonho real. Tinha que ser o melhor.

Mas o sonho acaba quando acordamos. A bola chutada para área acordou o sonho da sua vida. Logo a bola, que dormia abraçada com ele desde menino. Foi real, traiçoeira. Cruel no giro. Cruel no toque. Cruel no som do estufar a rede.


Solitário, sem mais seu sonho de ser um zagueiro internacional, teve tempo de virar a cabeça e ver a cruel bola envolta pela realidade que marca o gol. Foi contra. Seu primeiro e único gol. Contra.