sexta-feira, 5 de abril de 2019

Divino!

 

"Ademir impõe com seu jogo o ritmo do chumbo (e o peso), da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo".
João Cabral de Melo Neto decifrou em poucas linhas a elegância discreta de Ademir da Guia. O meia que dominava o jogo envolvendo o adversário com o seu ritmo morno, plácido, fatal.

Mauro Pandolfi

Acordei pensando em Ademir da Guia. Sonhei com as suas passadas largas, silenciosas, lerdas. Procurei no you tube alguns jogos, cenas dispersas, imagens de seu olhar vago, distante. Foi a derrota do Grêmio que me levou a pensar em Ademir. Foi Luan a causa de procurar Ademir da Guia. Luan foi lento, disperso, ausente. O close em seu rosto revelou o olhar angustiado, perplexo, extraviado. Um olhar que vi numa capa da Placar lá por 1973. Dudu e Ademir. Olhar confiante de Dudu. Desconfiado, o de Ademir. Desnorteado, vago, caído, exatamente como o de Luan, na derrota do Universidad Católica. Não é uma comparação de jogo. É de estilo, de passadas, de olhares, de quem parece estar ausente, fora, sumido. Os gremistas culpam Luan pelo fracasso na Libertadores. Ademir da Guia não é reverenciado como deveria. Não era somente um craque. Era Divino!!!
Futebol e poesia são duas paixões. Joguei pouco e brinco menos ainda com as palavras. As escalações são versos, rimados ou não, declamados como poemas livres, soltos, anárquicos. Leão; Eurico, Luís Pereira, Alfredo e Zeca; Dudu e Ademir; Edu. Leivinha, César e Nei. Poema épico, complexo, amplo, literartura pura. Poucos versos tem a dimensão de Dudu e Ademir. Duas palavras, dois nomes, dois símbolos, uma história moderna. Complementares de tão diferentes que eram. A segurança, a valentia, a liderança de Dudu. A imponência, a sutileza, a elegância, o estilo de Ademir. Nunca mais o Palmeiras repetiu versos como estes.
Ademir da Guia era o solista e o maestro do jogo. Cadenciava em seu ritmo cada movimento da partida. A saída de bola era determinada pela postura do adversário. Sabia a exata noção de tempo e espaço. Pouca gente gente percebeu que ele era um marcador implacável. Não combatia, apenas cercava, dificultando a ação do adversário. Um toque sutil e a bola escolhia seus pés divinos. Acelerava ou retardava o lance dependo da movimentação de seus parceiros. Ademir da Guia era um ritmista. Alongava o passe ou deixava ele curto. Ademir não era pictórico. Era inteligente e refinado. A lentidão era só uma bobagem de comentarista que nem o óbvio enxerga.
Nesta semana, Ademir da Guia fez 77 anos. Brinco com o meu passado Porém, não sou nostáligico em nada. Ah, quem sabe na música, mas, às vezes, sinto saudade de Ademir e de João Cabral de Melo Neto. E, declamo, sozinho no quarto, os versos de Cabral sobre Ademir: "Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro, impondo-lhe o que ele deseja, mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia, de água doente de alagados, entorpecendo e então atando o mais irrequieto adversário".

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