"A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão"
Li em José Saramago esta frase. Mas, só entendi o significado conversando com meu amigo Rai Carlos, o vidente cego.
Mauro Pandolfi
Há
tempos que não via Rai Carlos. Fui ao
boteco do Alemão, seu 'escritório' de todo final de tarde, para uma
conversa sobre a vida, os amores, as paixões, os dramas, ou seja,
futebol. Cercado de amigos, o copo de gim na mesa, ele centraliza o
papo. "Vocês, e o Tite, não enxergam nada além do lance. Não percebem a
alma, a energia, a força vital de um craque. Vocês só olham, e o pior,
por cima, superficialmente. Maicon e Lucas Paquetá nunca deveriam ficar
de fora. Eles inventam o jogo, fazem o time jogar, fluir, são os que
chamam hoje de ritmista. Quem vai dar ritmo a este time? Fernandinho,
Renato Augusto? Com a ausência de Daniel Alves, só Marcelo tem este dom.
Se for marcado, a seleção desaba, some, perde. Escutei no rádio que
Tite convocou o Fred e desistiu do Luan devido aos treinos. Alguém
precisa dizer a ele a frase do grande Didi: 'treino é treino, jogo é
jogo'. Então, chamou um leão de treino! Tite usou a cegueira da
razão. Não viu ninguém depois das eliminatórias. Escolheu os mesmos.
Usou a estupidez da coerência. Um dia, quem sabe após a copa, entenderá
que a coerência não é estática, parada, definitiva. Sempre muda, sempre
avança, progride. Como diz aquele macaco, o Simão, quem fica parado é
poste!". Terminou de falar, bebeu o gim e me encarou.
"Olha
só quem não vejo há tempos! Mauro Pandolfi! Tu deves estar frustrado
pelas ausências de Luan e Arthur? É mais um cego que não vê Maicon!" O
abraço e o beijo fraternal vem em seguida. 'São jogadores
diferenciados, dão um dinamismo ao Grêmio que não vejo em nenhum outro
time daqui. Tu não defendes a convocação deles?' , indaguei. A gargalhada famosa do
bairro Nossa Senhora do Rosário explode no bar. "Então, acha que prefiro
Fred e Taison? Tento escapar do Grêmio, da paixão, fugir da lógica do
jogo do Renato. Tite tem outra lógica, outro padrão. Ele consolidou, não
vai quebrar nem na hora do sufoco. Maicon ou Paquetá não fogem tanto
dele', explicou.
Fiquei
desoncertado com a explicação. Lembrei da observação do Matheus que
chamou os gremistas de 'cegados por Luan', por verem um jogador que 'só o
gremista vê'. Ainda confuso, perguntei: 'A páixão é cega, Rai?'. Não riu, pediu outro Gim, armou
os
braços na mesa e filosofou. "Só a estupidez é cega. A paixão abre a
mente, expande o córtex, libera os hormônios, faz você acreditar em algo
que só você vê. O Luan tem um jogo que é melhor visto pelos gremistas,
que são apaixonados por ele, que acompanham todos os passos no campo,
percebem os seus olhares para os companheiros, os passes, a movimentação
é mais intensa a partir do seu olhar. Todo apaixonado, todo torcedor é
assim. O desejo, o craque são mais do que são na verdade. Não por serem menos. Mas,
por acrescentarmos mais virtude, mais encantamento, mais brilho. Luan é
ótimo. Foi bom ele não ser convocado. Seria reserva, não entraria, que
fique jogando no Grêmio. Lá ele é o maestro".
Gosto
de Adenor Bachi. Recuperou a imagem da seleção, criou um time bom de se
ver, que gosta da bola. 'Tu não gosta do Tite, Rai?'. O rosto triscou,
pediu mais um gim, riu e diisse:"Não é uma questão de gostar, admirar,
elogiar. Tite não é Pep Guardiola. Não viu Maicon, nem Paquetá e muito
menos, Arthur, que será o substituto de Iniesta. Tite
é um italiano. É um Capello, um Anceloti ou Conte. Está no seu dna. Seu
time joga bem, é prático, dogmático, e por mais contraditório, namora
com o acaso. Às vezes, envolvente. Nunca sedutor. Eu gosto do
imprevisível,
nunca do acaso. Tite usou o vácuo da falta de gente decente no poder
deste país. Encantou as pessoas com a ética, o caráter. Porém, acho
muito vaidoso, tem uma soberba disfarçada de humildade, de gente comum.
Tenho medo disto".
Antes
de ir embora, Rai complementou. "Tite deve saber que só há duas
possibilidades na Copa. Ou a glória ou a desgraça. Quem o elogia hoje,
os jornalistas que mudam de opinião a cada rodada, cada derrota ou
vitória, serão os seus algozes ou seus laudatórios. Aqui, o futebol para
a imprensa é um ensaio sobre a cegueira. Não há passado recente e nem
futuro, só o mitificado. Importa apenas o triunfo do agora. A imprensa
esportiva nada vê, nada enxerga, ergue, mítifica, endeusa quem vence.
Destrói, esconde, anula quem perde".
Perto
da porta, depois do abraço e do beijo fraterno, da despedida, tento uma
previsão. "Esquece, Mauro! Me aposentei. Estava errando mais do que
acertando. Mas, cuidado com a Argentina. Os deuses do futebol devem algo
para Messi. A conta pode ser paga no Mundial. Ainda mais que Sampaoli
vai para o suicídio ofensivo. Não esqueçam dos meninos ingleses e nem
dos negros maravilhosos da França. Mas, deve dar o de sempre. Sinto
muito!" Já de saída gritou: 'Vou torcer para uma zebra colossal. Meu
time é o Panamá de Baloy!" Um pouco longe, já dobrando a esquina,
escutei e reconheci a linda música que Rai assobiava. Era de Lupi.
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