domingo, 11 de setembro de 2016
Olhos nos olhos
Mauro Pandolfi
A dor nos olhos levou-me ao oftalmologista. Míope e com degeneração macular, me assusto com qualquer problema. A visão já é pequena. Tenho dificuldades na leitura noturna. Prefiro o livro a tela. Porém, a luminosidade da tela gera mais conforto, nitidez, clareza. No terminal urbano, sentado, olhando o vazio, levo uma cutucada na perna. "Perdido, meu querido Mauro! O que procuras no horizonte? A luz que te escapa? Ou, o tempo que passa sem você querer?". Era o meu amigo Rai Carlos, o vidente cego. Dei um abraço longo, como um desabafo, cheio de receio e contei a minha visita ao médico.
'Preciso aprender a olhar sem os olhos. Entender como a alma vê melhor o mundo. Quero descobrir a cor do vento. Qual é a cor do vento, Rai?' Ele desarma a bengala. senta no banco e a gargalhada se espalha no terminal. "A memória está te enganando, Mauro? Já te perguntei isto. Acho que é azul. O vento esparrama tudo, varre tudo, não sobra nada. Ele é livre. Descoberta a liberdade, vivida a liberdade, ninguém aprisiona mais. Vão os grilhões. Uma vez livre, sempre livre", me explica. Azul é a cor que adoro. Se tiver preto e branco junto é paixão. Dolorida paixão.
Nunca entendi o olhar de Rai. Coração e alma, disse-me uma vez. Tem dias que paro, fecho os olhos e encaro o nada. Procuro olhar como os olhos de Rai. Nada vejo. Só um escuro que me incomoda. "Tu não entendeste que os olhos são como um televisor. Recebe a imagem. Ela não produz a imagem. Comigo também é assim. A alma produz o que vejo. Vem das entranhas, da memória, dos sonhos. Não tenho o televisor. Mas capto todas as imagens". Escuto, penso, pergunto: 'então é tudo imaginação? Tu nada vé?' Ele ri, quase sussurrando, filosofa. "Nem toda a realidade é concreta. O real é só o lado sem graça, duro do imaginário. Não é uma invenção e nem uma mentira. Houve um tempo que o real e o imaginário eram um só. Tudo era possível. Aí, dividiram. Subjugaram o imaginário. Transformaram em fantasia e delírio. Mistificaram. O real passou a ser só certeza, o comprovado, o cientifico. Até as ideologias igualitárias enganam todos com a baboseira da mudança da realidade. São farsescas ao não entender que a imaginação é que muda o real. Fracassam se totalizando, impedindo outros olhares, tornam-se ditaduras. A tecnologia esta reaproximando os 'mundos'. O Pedro não caça Pokemon? O encontro chama-se realidade aumentada. Bonito nome, não?", explica.
O ônibus estaciona. Pergunto se vai comigo. Disse que não. "Tenho problemas para resolver. Para viver a realidade tenho que sair do meu imaginário. Vou trabalhar numa campanha para vereador", disse rindo. "O sujeito quer uma ajuda esóterica. Vou poder pagar as contas"., conta Raí. 'Então vais elegê-lo?', pergunto. "Eu não! Não voto aqui. Aliás, há anos que não voto. Sou um anarquista. O problema de quem é eleito, é de quem votou nele!" Rai é muito prático, concreto em muitas coisas.
O motorista abre a porta do ônibus. Antes de embarcar, Rai fala sobre a goleado do Coritiba. "Desabamos, outra vez! Sofreste muito, Mauro?" Na fila, quase entrando, respondo.'Não! Depois do terceiro gol, assisti sem paixão. Absorto, esperava mais e mais. Me vi outra vez diante da Alemanha. Nada mais me entristecia. O lombo, o coração, a alma se habituaram a dor, a derrota, ao infortúnio. Nem o procuro mais para desabafar. Entendi que é assim, será sempre assim, até que um dia tudo acabe'. Rai me abraça, nos despedimos. Rindo, contou-me: "Sete de setembro, independência. Cada gol, imaginava dom Pedro I, nas margens do Ipiranga, erguendo a espada e bradando: gol do coxa!", a bela gargalhada estremece o terminal. Na fila todos riram. Ao passar na roleta, o cobrador se solidariza. "Tá feia a coisa, moço! Ainda bem que os vermelhos vão conhecer o inferno da segundona". Não sei! Os deuses do futebol são cruéis, cínicos, impiedosos. E, para nosso azar, acho que são colorados.
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