"Fui como Cristo, na vida particular e também no futebol. Já sei que, quando os dirigentes tentam passar os jogadores para trás, eles chiam e dizem: vocês pensam que sou um Garrincha? É isso aí, gente boa, virei um símbolo do que não se deve ser na vida".
Garrincha foi um 'prisioneiro' de Manoel Francisco do Santos. Só conseguia a liberdade de voar com a bola no pé. Aí, era o 'anjo torto' que alegrava o povo com o seu balé encantado...
Mauro Pandolfi
A tevê ligada me pega distraído. De soslaio vejo o Maracanã. Sem ninguém. Lembrei da música de Moacyr Franco. Vi a ilusão no estádio vazio. Sem torcida. Sem vida. O aplauso já foi um sonho. Agora, é quase um pesadelo sombrio. A saudade dos dribles aperta o peito. Nenhum craque repete as suas jogadas. A emoção molha o teclado. Com saudade viajo na memória em busca dos lances perdidos. O 'anjo torto' é um espírito aprisionado no esquecimento. Quase ninguém lembra dele. Numa reportagem sobre as estrelas de outubro não foi citado. Na votação dos melhores do futebol de todos os tempos, de uma revista européia, é um dos menos votados. Mané Garrincha não é mais a alegria do povo. É só um fantasma da ópera do teatro de grama e paixão.
Desiludido com o jogo da tevê busco o desejo no passado. Copa do mundo de 1958. Brasil e URSS. Dois minutos. Didi lança para Garrincha. Ele para. Há um soviético na sua frente. Negaceia o corpo, ilude o marcador e vai... Dez minutos. Outra vez Didi. Mais uma vez Mané. Já são dois soviéticos. Ele vai, volta, engana os marcadores e segue rumo ao gol. 32 minutos. Didi com a bola. O campo está vazio no lado esquerdo. Ele escolhe Garrincha. São cinco em fila indiana para impedir a jogada. Mané para como sempre. O corpo vai, lá foi um. O corpo volta, outro se passou. Toca na bola em velocidade. O terceiro não consegue acompanhar. Mané para, retorna. O quarto o espera. Não cai no conto do drible. Encurta o espaço e o quinto rouba a bola. Nada aconteceu. Não se transformou em gol e nem lance perigoso. Foi apenas poesia. O balé das pernas, das idas e vindas, do olhar feliz do torcedor, do riso alegre do teatro de grama e paixão. O espírito santo do futebol é o drible. O futebol é mais imaginário que real.
Manoel Francisco dos Santos foi um homem brasileiro que inventou o mais original jogador de futebol que o mundo viu. Mané era descendentes de indígenas e negros, operário, sobreviveu as tragédias e a miséria dos brasileiros como ele. Garrincha sempre foi a antítese de Pelé. No corpo e no jogo. O atleta perfeito e o 'torto'. O cerebral e o intuitivo. Pelé era o todo. Garrincha foi aprisionado na margem do campo. O profissional e o amador. Outra diferença é que Pelé sempre escondeu o Édson. Se impôs. A sua 'majestade' enquadrou o homem comum. Já Garrincha nunca se libertou de Manoel. Fora do jogo, viveu como o Manoel. Caçava, pescava e bebia com os amigos de infância de Pau Grande. Garrincha só 'incorporava' com a camisa sete no corpo. 'Era uma criança', disse seu protetor, padrinho, amigo até os últimos dias, Nilton Santos. 'Era um matuto, meio selvagem, meio índio, criado num submundo de miséria e ignorância, um lugar atrasado onde nem o trem parava', afirmou João Saldanha, numa descrição impiedosa, cruel e profundamente real. 'Garrincha, como disse o meu irmão Mário, foi a vingança do brasileiro pobre e sem futuro. Quando parou de jogar, a sociedade deu o troco em Manoel'. A vida sempre foi um João para o Mané Garrincha.
28 de outubro. A ponta mais bela e original da Santíssima Trindade da bola está de aniversário. Até Diego Maradona, o outro vértice do triângulo, foi meio Pelé. Garrincha foi único. "Pelé e Maradona foram geniais. Puskas e Cruyff sensacionais. Mas, o maior de todos foi o 'homem das pernas tortas' - Garrincha. Nunca vi ninguém fazer com a bola o que ele fazia". Quem disse isto foi Di Stéfano que disputa com Pelé e Maradona o título de melhor jogador de todos os tempos.
Garrincha sempre foi um enigma para mim. Gênio incomparável e ou personagem marcante para ressaltar a miséria neste país? Futebol ou sociologia? Arte na bola ou arquétipo na vida brasileira? Agora, rumo ao final, descubro jogos inteiros do Botafogo e da seleção e entendo o fascínio que despertava. que gerou a mais fantástica manchete de um jornal: 'De que planeta veio Garrincha?', jornal El Mercurio, do Chile em 1962. Elza Soares respondeu: fome! Mané deve ter dito o mesmo.
Recordo um texto que falo de futebol, paixão e as asas do desejo.
Asas do desejo
Mauro Pandolfi
Acordei cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido, um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava. Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático. Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a minha resposta. Ele riu. Levantou e disse: 'Vem cá que vou explicar a magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O encantamento do jogo".
A chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui, neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo. Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço pequeno, miúdo e cria ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns, retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra no outro". Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva emendou para o gol.
Vou de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos. Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo. Perguntei o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible, do povo.
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