Mauro Pandolfi
É campeão!! Há tempos queria soltar o grito. Abrir a janela e desabafar, Berrar a paixão, a vitória. Mas, não consegui. Nem vibrei muito durante o jogo. Estava emocionado com as homenagens. O silêncio, o som do silêncio na corneta solitária, nos aplausos, nos rostos comovidos, nas crianças de verde, nos jornalistas, nas equipes misturadas, no choro do Vitor, nas lágrimas que escapavam, deixavam o jogo em outro plano, sem sentido, sem nexo, perdido. Eu continuava triste. No domingo tinha desistido de ver a final. A paixão foi mais forte que a tristeza. Por instantes, por momentos, sorri, vibrei. A felicidade veio nos abraços dos meus filhos. Eles que não ligam para o futebol, e sabem o que significa para mim, vibraram comigo. 'É campeão!' O grito tímido, quase silencioso, escapou.
Poxa! Sempre imaginei que seria uma festa. Vibrar como em 1977. O time de Telê, de Oberdan, de Iúra, de André, de Éder, livrou-me de um pesadelo infantil. Quanta gozação sofri por torcer por um time que não ganhava nada. O voo do André, após o gol tentou um mortal e caiu estatelado de peito no chão, foi uma salto de liberdade, de futuro, de conquista. Tive câimbra de tanto vibrar, de tensão, de primeira vitória. Era só um garoto de 17 anos, apaixonado por uma menina loira que morava na esquina, por Chico Buarque, Mário Quintana e que assistia Trinity escondido. Agora, velho e maduro, não tinha motivo em expressar alguma alegria. Acho que a idade molda, outra vez, o coração. Quando tu pensa que está endurecido, revela-se mole. Incapaz de resistir a uma emoção de uma novela ou filme, imagine de uma tragédia.
Toca o telefone. É o meu amigo Rai Carlos, o vidente cego, com um convite que lutei para escapar. "O gremista sem fé venha comemorar com os amigos no boteco do Alemão. Te espero". Fiz um pequeno silêncio. 'Não dá, Rai. Ainda estou desolado pela tragédia da Chapecoense. Tá difícil achar um motivo...'.. Rai me cortou. "Imaginei que recusaria. Continuo triste, também. Mas a melhor maneira de reverenciar aquele time é não abandonar a vida, o jogo, alegria da bola. A tua recusa ao futebol, a tua paixão, não é uma forma de respeito ou compaixão. É modo de perpetuar a dor, de vibrar com a dor. Imagina se todos que amam o futebol, que torcem para a Chapecoense, abandonarem o jogo? As pessoas da Chape, aonde eles estiverem, vão se sentir culpados, responsáveis pelo fim do prazer do futebol. Reverencie eles, continue assistindo e escrevendo. Estou te esperando no bar do Alemão. Venha!". Troco de roupa. Coloco a camisa branca do tricolor grafada com nome do Messi (um sonho, uma utopia, uma esperança. Pena que não acredito em nada!) em cima do número dez e lá vou eu.
O bar estava à cunha. Sempre tive vontade de escrever esta frase. Rai era o centro, comandava a turma cantando os belos versos de Lupicínio Rodrigues. 'Até a pé nos iremos. Para o que der e vir. Mas o certo é que nós estaremos, com o Grêmio onde o Grêmio estiver'. Ele notou a minha presença. "Eis um homem sem fé. Não acreditou nos astros, nas estrelas e no velho amigo cego. Eu avisei que agonia acabava este ano. Um ídolo iria nos libertar. Achei que era o Roger. Mas, o libertador é um guerreiro com ousadia, fúria e, até, uma pequena dose de soberba. Tinha que ser o Portaluppi. Bravo, Renato!". Termina de falar e me abraça. O beijo estalado me enrubesce. Deveria estar acostumado. Tento explicar. 'Sou um cético, tentando ser saudável, que duvida de tudo, que perdeu os sonhos, descartou a utopia e transformou a esperança numa farsa qualquer'. Ganho um abraço forte, quase solidário. " Tu já sabe como é a dor, a tristeza, a perda, a finitude. Tudo isto passa. Nunca se restaura a situação anterior. Molda-se outra. Tu não és o mesmo depois da partida de seu pai. Foi difícil continuar, eu sei! A tragédia da Chapecoense foi muito forte. Te abalou. Mexeu com algo que te sustenta como pessoa, como vida, como prazer. O futebol é muito mais para você. Não é só um jogo. É a tua essência. Não abandone. Descubra, outra vez, o amor. E, viva este amor. Vem cá, vamos a cantar o nosso amor. O nosso caminho é tão poderosos, mágico, como o caminho de Santhiago de Compostela." O bar embalou nos belos versos de Lupicínio Rodrigues. "Até a pé nós iremos..."
As lágrimas escaparam duas vezes. Lá e agora. Rai e o Alemão me abraçam. "Sou forjado na derrota. A dificuldade me fez homem. Aprendi sofrendo. Tive desilusões, fracassos pessoais, amorosos, profissionais. Descobri uma filha tarde demais. Nada abalou a minha fé. Ao contrário, aumentou. Há tempo que não experimentava uma vitória, Mauro. Ela veio misturada na dor. Mas, não quero perder o sabor da vitória. Sei que é passageira. Alivia o coração, a alma suspira leve e o mundo tem uma cor que não consigo explicar. Como faz bem um título, meu caro Mauro! É bom vencer! Daqui a pouco estarei fazendo as minhas orações para aqueles que perderam a vida. Ela é assim. A dor e alegria são gêmeas. Segundos, trocam de lugar. Mas a vida segue. Dolorida, eu sei. Não abandone o futebol, Mauro. Não sinta vergonha, pena, remorso em vibrar com o título. É, também, uma maneira de homenagear todos do futebol que partiram. Vamos brindar a felicidade. Como é bonita a felicidade, Mauro!", filosofa Rai. Abraçados, a cantoria volta. 'Até a pé nós ...'.
O sol já vem saindo. O bar esvaziou. Eu, Rai e Alemão estamos bebendo a saideira. Falamos de tudo. Do time, da história, dos mitos, dos derrotados. Alemão lembrou de Flecha e Alcindo. Rai citou Gessy e Milton Kuelle. "Ídolos de meu pai!', disse. Carlos Miguel e André são as minhas melhores lembranças. Hora de ir embora. Alemão quer fechar o bar. Alegre demais, Rai nos convida. "Vamos fazer um almoço de fim de ano lá em casa. Galo ao molho pardo e de sobremesa, mousse de morango", A gargalhada explode no amanhecer silencioso. Nos despedimos e vou para casa assobiando os mais lindos versos de Lupicínio Rodrigues.
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