segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Gaia bola

 

"A vida necessita de ilusões...então, para viver, necessitamos de arte a cada momento".
Desconfio que Friederich Nietzsche treinou algum time alemão ou escreveu algum texto sobre futebol. Entendeu, como poucos, a função da arte e do imaginário no teatro de grama e paixão.

Mauro Pandolfi

O futebol é imaginário! A realidade é uma ilusão de ótica. A poesia é mais encantadora que a técnica. É mais apaixonante! Transforma em vida aqueles gritos de festa, de desespero, de chamada para a luta. A prosa sobrepõe a tática. Quebra a estratégia de um pensar com seu jogo encandeado, organizados em parágrafos, cerebrais ou intuitivos, mais poderosos que uma solidez defensiva. O drible, aquele dado por quem tem 'asas na chuteira' - o grande achado poético de Chiko Kuneski -,  não é um jogo de corpo para enganar o adversário. É um passo de uma dança, um balé requintado, tão surpreendente, tão envolvente, como se fosse uma metáfora de uma reflexão filosófica sobre ética e moral. O passe é um discurso silencioso mais eloquente do que o mais sagaz dos políticos. Há tempos que o futebol deixou de ser uma disputa tribal. A arena lembra mais um teatro de grama e paixão, onde a vida é encenada, como um espelho. O futebol é o mais espetacular engano da  vida. Quando o futebol perde o imaginário, ele se torna o mais lúdico e triste olhar da realidade.
O futebol de agora é real! Duro, seco, previsível. Não há mais poesia e nem prosa. O teatro de grama e paixão ficou vazio. Assim, como o jogo. Não foi a pandemia que destruiu a beleza da jogo. Ela, a pandemia, ressaltou o passado que desfilou dias e dias nas tevês cheia de ilusões, de farsas, de histórias, de heróis e semideuses. Foi a volta do futebol que aniquilou o imaginário. O futebol ficou mais burocrático, sem alma. Virou um evento chato, frívolo, muitas vezes, insuportável. Não há o grito que inventa vitórias e impede derrotas. Não há mais o canto que transforma o homem comum num 'superhomem' para nos redimir de nossos fracassos. Estamos vendo 'o crepúsculo dos deuses', onde Leonel Messi perdeu a divindade, assim com Pep Guardiola e Jurgen Klopp. Os grandes times pré pandemia se desmoronam jogo a jogo, tornando-se saudades. A solidez desmanchou no ar. Só Cristiano Ronaldo sobrevive. Mas, sempre duvidei que fosse humano.
Gosto de escalações. São poesias declamadas. A última que me doía tanto recitar era: Diego Alves; Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Mari e Filipe Luís; Arão, Gérson, Arrascaeta e Everton Ribeiro; Gabigol e Brino Henrique. Obra de Jesus, o mágico e sedutor. Parecia eterno, para sempre. É para sempre! No imaginário, na paixão de um torcedor. O tempo moveu a ilusão para a realidade. Jesus, depois do terceiro mês, partiu. O encanto foi sumindo, desaparecendo, surge por instantes, só por instantes. assim é o futebol! É efêmero e perene, na doce contradição do viver. Um flamenguista, assim como um gremista saudoso do Grêmio 2017 - já foram os santistas os botafoguense, os vascaínos, os colorados, todos os torcedores que amaram um supertime, esperam sempre o retorno da extrema felicidade vivida. O futebol é imaginário como memória. Só como história! Iguais aquelas contadas nas rodas dos bares, num almoço de domingo, num reencontro de velhos amigos. Era uma vez...
Nem todos os jogos tem noventa minutos. Às vezes, pouco mais de vinte ou dez. Vou desistindo quando a bola não é poética. Quando os passes não tem nexo. Chutados, largados, perdidos. Só Grêmio me mantém até o fim da partida. É o suspiro da paixão. Mas, não sofro mais. Nem grito gol com a fúria saindo das entranhas. Vejo por esperança, por desejo, por um drible de Pepê, por um gesto elegante de Jean Pierre, por reconectar com o Maurinho e o Vermelhão, por, ainda, amar o futebol.


 

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