sexta-feira, 7 de agosto de 2020

'Hipocrisia'

 

"São curtos os limites que separam a resignação da hipocrisia".
Acho que ultrapassei os limites que o escritor espanhol Francisco de Quevedo estabeleceu. Em nome de uma paixão, que parece adormecida, resignei a coerência e a transformei em hipocrisia.

Mauro Pandolfi

Ao preferir ver o Grêmio em vez de um filme a convite do André, ouvi uma resposta que me desconcertou. "Você é contra a volta do futebol durante a pandemia. Então, não deveria assistir o jogo. Tem que ser coerente, pai! Ideias, palavras, só valem com a prática". Meu único argumento foi a paixão. O amor descoberto aos sete anos, tornou-se 'vício', trabalho, até terapia, motivo para escrever como fuga da louca sanidade deste 'estado de sítio' necessário da vida. O André foi gentil comigo ao falar em 'coerência' e não em hipocrisia. Vi o jogo. Um belo jogo! Assisti em silêncio, sem nenhum gesto de torcedor, nem no grito de gol, nem no desespero do empate, sem críticas ao Renato. Faltou tesão ao ver a bela camisa tricolor ocupando toda a tela. Não sei se a frase balançou os meus conceitos, se foi a 'hipocrisia', se o exílio forçado, se a vida banalizada, se a tristeza flertando com a depressão, senti a paixão desmoronada, destruída, sufocada. Sobrou só o teatro de grama.
Lembrei do meu velho amigo Rai Carlos, o vidente cego, ao 'perder' a paixão pelo Grêmio. Quando falávamos de amores, Rai lembrava da primeira paixão. 'Nunca acaba. Ressurgia forte ao sentir outra paixão se formando. Sempre se impunha. Foi assim durante muito tempo em vida. Até que um dia, a neutralizei. Estou livre, pensei. Era só um engano. Estes dias, ao escutar sua voz, a paixão explodiu. Estava escondida, guardada em algum ponto da alma, para aparecer feito uma emboscada', filosofava em meio aos goles de gim nas madrugadas de outro tempo. O Grenal será o sinal da paixão sufocada? Vou desafiar a minha 'hipocrisia', pensei.
Quarta-feira, ligo a tevê para a sessão de terapia. Descubro que será no Premiére. O meu fracasso financeiro me obrigou a cancelá-lo no final do ano passado. Paciência! Resolvi assistir Cricíuma e Chapecoense. Triste. Muito triste. Lamentável o futebol daqui. Obsoleto na ideia, obtuso na realização, medíocre no ato. Parecem ter uma organização defensiva. É um engano. É só uma retranca. Os ataques dependem da ação individual. E, aí, faltou talento. A decadência do futebol catarinense não tem nenhuma elegância. Passei para o derbi paulista. Se resisti trinta minutos com a partida daqui, aguentei quinze minutos na final de lá. Faltou tudo. Da inteligência tática até a habilidade. Um futebol tosco, precário. Entendi a opção do Flamengo pelo auxliiar de Pep Guardiola. O clássico de São Paulo mostrou o velho treinador bolorento e o novo técnico sem coragem. Não entenderam que o jogo pede beleza, arte, entreterimento e não só resultado. Nem a 'hipocrisia' resistiu.
Desliguei a tevê, liguei o rádio para ouvir o Grenal. O quarto no escuro, tirei os óculos, virei para o lado e dormi. Acordei com os 'gritos' do narrador falando das expulsões de Orejuella e Patrick. Vi o placar, o bom do rádio no facebook, que há uma tela com as informações do jogo, estava dois a zero para o Grêmio. Escutei até o final. Gostei da vitória! Esbocei um sorriso, uma leve alegria surgiu na alma. Era a paixão? Não!  Foi só uma piscadela de um flerte.
O jogo de domingo acabou ao mesmo tempo do filme do André. Nos encontramos no corredor. Nos olhamos em silêncio. Não foi preciso falar nada. Velho, na reta final da vida, entendi a lição do jovem que começa a vida. E, feliz, percebi que o André será um homem melhor do que eu. E, tomará, com mais sorte.

 

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