segunda-feira, 20 de abril de 2020

Memórias...(4)

 

"Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso (...) ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo"
Entendi a frase de Caio Fernando Abreu ao rever 'Garrincha, a alegria do povo' e notar que o drible, a negaceada, o mesmo bailado de Carlitos, é eterna, imortal, para sempre, pois tudo termina num belo sorriso.

Mauro Pandolfi

Domingo de 2020 travestido de domingo de junho de 1970. Na poesia e na loucura. Na beleza da bola e no desvario do  insano milico expulso por demência berrando pela ditadura. Vi Pelé e sua realeza. O futebol em seu grande momento. No auge da transformação, o teatro de grama e paixão é a grande arte. Quase todos os mitos do futebol estavam presentes na rememoração do extraordinário. Menos, Mané Garrincha. O maior ausente de toda esta reverência da memória. Intrigado com tal ausência, tentando entender o sumiço, já de madrugada, no silêncio da casa, fui ao youtube em busca de Garrincha. Assisti, quase todo, o genial filme "Garrincha, a Alegria do Povo", de Joaquim Pedro de Andrade. E, não consigo entender como os 'intelectuais' do futebol, os modernos e nem tão modernos, ignoram Mané Garrincha na lista dos maiores craques de todos os termpos. Triste. Muito triste. Injusto!
Mané Garrincha foi o mais original, o mais encantador, o mais poético. Não era um driblador solitário. Era um bailarino de danças únicas, que ninguém repete. Um Chaplin, dito assim várias vezes, parecendo Carlitos nas idas e vindas do corpo, das pernas, que iludia todos os Joões que ficavam, feito pedras, no meio do caminho. A vida foi o marcador mais cruel, duro, violento contra o Mané. Ele descobriu que fora do campo, quase nunca, foi Garrincha. Foi, quase sempre, João.
Republico um texto que lembro de Garrincha. Nada biográfico, nada histórico. Quem sabe, poético. Foi um dia de saudades. Saudades do que não vi.

Asas do Desejo

Mauro Pandolfi
 
Acordei cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido, um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava. Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático. Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a minha resposta. Ele riu. Levantou e disse:  'Vem cá que vou explicar a magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O encantamento do jogo".
A chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui, neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo. Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço pequeno, miúdo e cria ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns, retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra no outro". Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva emendou para o gol.
Vou de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos. Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo. Perguntei  o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible, do povo.


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