"Muita
coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no
filtro da memória. Mas o sorriso (...) ah, esse resistirá a todas as
ciladas do tempo"
Entendi
a frase de Caio Fernando Abreu ao rever 'Garrincha, a alegria do povo' e
notar que o drible, a negaceada, o mesmo bailado de Carlitos, é eterna,
imortal, para sempre, pois tudo termina num belo sorriso.
Mauro Pandolfi
Domingo
de 2020 travestido de domingo de junho de 1970. Na poesia e na
loucura. Na beleza da bola e no desvario do insano milico expulso por
demência berrando pela ditadura. Vi Pelé e sua realeza. O futebol em seu
grande momento. No auge da transformação, o teatro de grama e paixão é a
grande arte. Quase todos os mitos do futebol estavam presentes na
rememoração do extraordinário. Menos, Mané Garrincha. O maior ausente de
toda esta reverência da memória. Intrigado com tal ausência, tentando
entender o sumiço, já de madrugada, no silêncio da casa, fui ao youtube
em busca de Garrincha. Assisti, quase todo, o genial filme "Garrincha, a
Alegria do Povo", de Joaquim Pedro de Andrade. E, não consigo entender
como os 'intelectuais' do futebol, os modernos e nem tão modernos,
ignoram Mané Garrincha na lista dos maiores craques de todos os termpos.
Triste. Muito triste. Injusto!
Mané
Garrincha foi o mais original, o mais encantador, o mais poético. Não
era um driblador solitário. Era um bailarino de danças únicas, que
ninguém repete. Um Chaplin, dito assim várias vezes, parecendo Carlitos
nas idas e vindas do corpo, das pernas, que iludia todos os Joões que
ficavam, feito pedras, no meio do caminho. A vida foi o marcador mais
cruel, duro, violento contra o Mané. Ele descobriu que fora do campo,
quase nunca, foi Garrincha. Foi, quase sempre, João.
Republico
um texto que lembro de Garrincha. Nada biográfico, nada histórico. Quem
sabe, poético. Foi um dia de saudades. Saudades do que não vi.
Asas do Desejo
Mauro Pandolfi
Acordei
cedo para encarar a chuva. Há dias que não caminho. Um agasalho batido,
um tênis velho e uma capa. Parti! A garoa me incomodava.
Resolvi parar num ponto de ônibus. Não havia ninguém. Atrás do ponto, um
campo de futebol. Fiquei de costas para a rua e prestei atenção nos
meninos brincando de bola. Eram dez ou doze. Muita
diversão, tombos, risadas. Então, ele chegou de mansinho. Pediu licença e
sentou ao meu lado. Um homem comum. Meio moreno, meio índio, simpático.
Encarou-me e perguntou. 'Tu gosta de futebol, gente boa?' Adoro, foi a
minha resposta. Ele riu. Levantou e disse: 'Vem cá que vou explicar a
magia da bola. A felicidade do futebol. A poesia do drible. O
encantamento do jogo".
A
chuva estava mais forte. Os meninos abandonaram o jogo. A bola ficou
solitária no canto do campo, quase no escanteio. Ele foi caminhando
lentamente ao encontro da bola. Acariciou a bola com o pé. 'É aqui,
neste canto, que o jogo é mágico. Perceba como domino a bola. Olhe o meu
bailado, a ginga. O corpo vai, o corpo volta. Tudo muito rápido. O
marcador fica perdido. E, aí, encontro o centroavante. Nunca cruzo.
Passo a bola, parceiro, com carinho. E, nos encontramos no fundo da
rede. Entendeste, gente boa!". Olhei para ele e comentei. 'Isto é um
ponteiro! Não há mais lugar para ele no futebol atual".
Com
a bola dançando em volta do pescoço, desceu no peito, amorteceu na
coxa, deixou rolar no pé e entregou-me na mão. "Gente boa, estão te
contando a história errada. Um ponta não é só isto. O pensador não está
só no meio. Ele, também, joga pelo lado. Articula o jogo num espaço
pequeno, miúdo e cria
ilusões. Voa, flutua pelo campo todo. Já reparaste que acabaram com o
retângulo, que é o campo? Transformaram em vários triângulos. Alguns,
retos; outros, escalenos. Só com um ponteiro todo espaço é preenchido. O
futebol é sonho quando a bola vai para um lado. E o ponteiro a encontra
no outro".
Pediu a bola e fez um cruzamento medido. Um menino que desafiou a chuva
emendou para o gol.
Vou
de primeira, pergunto. "Um ponteiro que você viu jogar?". Ele mais
rápido, como um drible, respondeu: 'Garrincha. O melhor de todos.
Conhece?" De leitura, respondi. 'Eu vi. O dono do campo. Navegava pela
direita. Entrava em diagonal e tinha um passe estupendo. O drible era
simples, o mesmo, o de sempre. E todos tornavam-se Joões. Foi maior que
Pelé. Agora, está esquecido. Ninguém lembra dele. Fez aniversário e
ninguém comentou". Ele completou: "Garrincha perdeu fora do campo. Foi
um João, driblado pela vida e pela bebida. Aquela imagem no carnaval é
sua negação. O homem triste, abatido, destruído é também uma imagem do
futebol. O futebol, gente boa, perdeu a alma ao abandonar o drible, o
ponta, o sonho, a imaginação, a mitologia".
Olhou
para a rua. Viu um ônibus chegando. largou a bola e saiu correndo.
Perguntei o seu nome. "Manoel. Mas sou conhecido como Mané!". Ao entrar
no ônibus percebi as pernas tortas e as penas que escapavam de sua capa
de chuva. Era um anjo. O anjo do futebol. A alegria da bola, do drible,
do povo.
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