O sonho e a batalha
"Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que, não sei onde, alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi".
Clare
é a personagem de 'A mulher do viajante do tempo', de Audrey
Niffemegger, que acompanha o marido Henry, que tem um distúrbio
genético, que faz seu relógio biológico flutuar entre o futuro e o
passado, levando a momentos extraordinários de sua vida. Escrever é
pouco isto. Navegar no passado, para inventar o futuro, não devolver o
presente e descobrir que o amor, a paixão, resiste a tudo,
principalmente, ao tempo.
Mauro Antônio Pandolfi
'Maurinho,
Levanta!' Era a voz de minha mãe. Mas, o que ela está fazendo aqui em
casa? Não me avisou que vinha! A Elaine poderia ter me chamado! Ao sair
da cama, vi tudo diferente. O quarto era outro. A casa não era a minha.
Não vi a minha cama e nem a Elaine. Percebi uma velha camisa no Grêmio
na porta da geladeira, que em outro tempo, servia de armário. Me senti
mais leve, mais rápido, mais disposto. Ao chegar no banheiro notei as
diferenças. Era cabeludo, a barba não era branca, e no banho, a barriga
era quase um tanquinho. Que milagre foi este? 'Mauro, vem!' Agora era
voz do pai. Como é bom ouvir a voz firme dele. Certa vez vivi este
insight, com uma outra turma, este flerte com o buraco de minhoca,
devaneio ou só um sonho... E, foi ótimo!
'Pronto!
Estou aqui! disse para a mãe ao chegar na cozinha. O beijo gostoso
tinha sabor de café. O pai estranhou o meu meu abraço forte, amoroso e o
beijo ruidoso da careca. 'Saudades de você, véio!' Ele riu, não
entendeu nada, ouvi o resmungo dele para a mãe: 'é a ressaca!'. O
Márcio, guri e lindo, vestia uma camisa do Grêmio. O Mário, revi ele
rapaz e bonito, conversa animadamente com o primo Juca, que abriu um
sorriso ao me ver. 'Afinal, vocês vão ganhar alguma coisa?' 'Vamos!" foi
o máximo que consegui responder. Tudo era estranho e mágico, ao mesmo
tempo.
Olhei
as paredes! Entendi o dia: Três de maio de 1981. A casa estava forrada
de fotos, de posters, de cartazes, de frases falando do Grêmio Campeão
Brasileiro. Gargalhei alto, assustando as gatinhas Vila e a Toga e o meu
pai. 'Que foi? Tá louco? O que tu bebeu ontem, Mauro?' É somente
alegria em estar com vocês, ver o Grêmio ser campeão brasileiro. Até
cantei: 'É a vida, é bonita e é bonita. Viver e não ter a vergonha de
ser feliz". 'Que lindo, Maurinho! É um poema teu?', perguntou a mãe.
Disse para ela que não. 'No futuro, a senhora vai gostar muito desta
música'. Não disse nada, só riu.
O
almoço foi estupendo, como eram aqueles almoços. Comida saborosa,
histórias deliciosas, risos. A vida é mais do que bela. É iluminada!
Logo veio o jogo. Juca saiu antes. Como era um cara especial, o querido
Juca! Colorado, não quis acompanhar, secar, estragar a festa dos
gremistas. Estávamos tranquilos, calmos, quietos, sentados no mesmo
sofá. Afinal, bastava o empate. Tudo mudou quando Paulo Roberto levantou
a bola para a área. Renato Sá escorou de cabeça. Baltazar acariciou no
peito, enquadrou o corpo, o chute foi mortal. A bola não tinha estufado a
rede e os gritos já invadiam a sala. Um misto de 'gol!', 'é campeão!',
'Grêmio!!'. A nossa pequena festa durou até a madrugada. Dormimos
poucos. O outro dia era segunda. Trabalho e escola. Felizes, como nunca
tínhamos sido antes no futebol!
O
relógio despertou. Poucos antes da sete da manhã. Reconheci o som. Era o
celular da Elaine. A vida voltou ao normal. 'Que dia é hoje?',
perguntei. 'Não lembra mais do 26 de novembro? Achei que era
inesquecível? Me enganei?', me provocou. 'Jamais!', respondi. A nossa
maior vitória. 'Impossível! O substantivo masculino do imponderável se
transmutou em um outro extraordinário: inacreditável!' Foi assim num
texto para este Crônicas Por Tubo defini a Batalha dos Aflitos, sábado
de 2005. O jogo que nos tornou 'Imortal' - termo que detesto - e capaz
de todas façanhas para servirem de modelo para toda a Terra. 'É hoje o
jogo contra o Bahia, não é? Vão repetir a história - aliás, como farsa
ou tragédia, como você sempre diz - ou confirmar a queda?'. Fiquei em
silêncio. Ela entendeu o meu silêncio. Me deu um beijo, se despediu e
foi trabalhar. Não sei o dia de hoje. Apenas, gostei que o buraco de
minhoca que abriu foi de um dia feliz. Depois de tanta tristeza, merecia
um dia de festa. Tenho dúvida se haverá festa logo mais, em Salvador.
Porém, como dizem por aí, enquanto tem bambu, tem flecha! E, como
descobri no futebol e na vida, o impossível não existe.
Dá-lhe Grêmio!!!
Esta
crônica é uma singela homenagem a Francisco Dalla Costa. O futebol não
teve tempo para se encantar com o talento do Chico, o garoto que virou
lenda e brilha no meu campo dos sonhos.